“Pela primeira vez desde a morte de Pátroclo, Aquiles teve uma sensação de prazer, ao ver a armadura…
O Livro de Ouro da Mitologia, obra de Thomas Bulfich
Certo momento da festa desse Ano-Novo, flagrei o sorriso irônico de Ana, minha mulher, enquanto eu rememorava um causo de Bagé. Saquei o teor da mensagem suave: “Amigos são tão previsíveis quando se reencontram”. Gentil, mesmo assim, ela se debruçou sobre a sacada daquele mundo de memórias afetivas – algumas capazes de invocar fantasmas mais amistosos com o passar dos anos – e ouviu como da primeira vez.
Histórias com a dimensão humana do afeto formam a argamassa das amizades mais forte que a consanguinidade, essa conexão biológica que ainda mantém um arcaísmo chamado a nobreza de sangue azul.
VINGANÇA. Ilíada, de Homero, é um dos maiores poemas da humanidade. Nele, peleam deuses e homens, gregos e troianos até um episódio mudar o curso da história. Quando o príncipe Aquiles afasta-se da refrega por discordar de Agamênon e Pátroclo, melhor amigo do príncipe, assume seu lugar. Ferido por um guerreiro obscuro, Pátroclo é abatido por Heitor, comandante troiano e a sorte parece sorrir para Troia. Em O Livro de Ouro da Mitologia, Thomas Bulfinch descreve a cólera que tudo muda: “Aquiles, então, lançou-se à batalha excitado pela ira e pela sede de vingança, que o tornavam irresistível. Os mais bravos guerreiros fugiam dele ou caiam sob sua lança”. Após matar Heitor, invade Troia dentro do ardiloso cavalo. Só não obtém a vitória completa pois é atingido no vulnerável calcanhar por uma flecha envenenada lançada por Páris, causador do conflito.
Morre por amor ao amigo.
BABÁS. A comunicação é entrópica no tempo da velocidade. Mensagens pululam nos smartphones, onde digita-se muito e diz-se pouco. É olho na tela, sem o desafio do olho no olho. “Antes as pessoas só escreviam cartas se tinham algo importante a relatar. Em vez de escrever a primeira coisa que lhes vinha à cabeça, consideravam cuidadosamente o que queriam dizer e como expressá-lo. Esperavam uma resposta atenciosa… Hoje recebo dezenas de e-mails todos os dias, todos de pessoas que esperam uma reposta imediata”, escreve Yuval Noah Harari, em Uma Breve História da Humanidade – Sapiens. Pouco antes do Whats App encher os espaços das palavras com “emojis”, “rs”, “rs”, “rs” e “k”, “k”, “k”. É tempo de entregar as crianças aos dispositivos móveis – babás que as tornarão infensas ao diálogo essencial à empatia. Então, em nossa loucura, saudemos o autismo tecnológico à formação de amigos que não sejam virtuais.
DIFERENTES. O comediante Groucho Marx mantinha uma amizade improvável com o melancólico poeta T. S. Eliot. Haydn orientou Mozart e o gênio barroco retribuiu com Quartetos Dedicados a Haydn. Mark Twain, escritor, e Nikola Tesla, cientista, auxiliavam-se fraternalmente. Platão imortalizou Sócrates com seus escritos e foi leal a ponto de acompanhar o suicídio do mestre. Tão diferentes, mas amigos.
Bem cantou Milton Nascimento:
“Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração…”
Faço coro, pois me apraz continuar pertinho de quem amo.
“Pois seja o que vier, venha o que vier./Qualquer dia, amigo, eu volto/A te encontrar…”
Verso de Canção da América, música de Milton Nascimento