A morte na visão de diferentes religiões

Vale do Taquari - DIA DE FINADOS

A morte na visão de diferentes religiões

Na data em que os fiéis do cristianismo ritualizam a lembrança dos mortos, representantes de diferentes religiões, doutrinas e filosofias explicam como enxergam o momento de partida. Para a psicóloga Ana Maria Goes, a melhor forma de compreender a morte é falar sobre ela

A morte na visão de diferentes religiões
Vale do Taquari

Tradição cristã, o Dia de Finados leva milhares de pessoas aos cemitérios para rezar pelos que partiram. Arrumar e ornamentar os túmulos pode ser encarado como parte do ritual de compreensão e aceitação da morte.

A peregrinação de católicos e evangélicos nesta data é uma das principais diferenças entre as duas religiões mais populares no Vale e outras filosofias, doutrinas e cultos. A exceção é de algumas religiões de matriz africana, que no Brasil tem fundamentos que se assemelham ao cristianismo.

Fora da filosofia cristã, são poucas as religiões com um dia específico para lembrar dos mortos. Mesmo assim, todas explicam a morte, que está necessariamente ligada às atitudes das pessoas em vida.

Independente do tipo de religião, doutrina ou filosofia, todas enxergam a morte como um espelho das atitudes em vida. A própria essência religiosa está diretamente ligada à noção de vida e morte, e à relação das atitudes no plano terrestre e as consequências após o desencarne.

Neste Finados, seguidores de diferentes linhas religiosas explicam como cada uma lida com esse que é um dos momentos mais difíceis: a perda de um ente querido e a certeza da finitude terrena.

Terapeuta holística e psicóloga, Ana Maria Goes apresenta formas de como o tema pode ser tratado após a perda de um familiar.

DSC_0205

(SEM LEGENDA)

 

Reencontro após a morte

Seguidor da doutrina espírita, Flávio José Schuh afirma que o espiritismo não celebra o Dia de Finados por acreditar que a morte não existe. Segundo ele, os espíritas acreditam que somos todos uma parte matéria e uma essência que é o espírito. “A morte é apenas do invólucro material, e o espírito é eterno.”

Conforme Schuh, os espíritas acreditam em reencarnação. Segundo a doutrina, tudo o que passamos na terra representa um aprendizado, para encontrarmos a evolução, como em uma escola. “Temos o livre arbítrio para escolher as coisas e experiências, boas ou ruins, e depois somos responsabilizados pelo que plantamos.”

Segundo ele, toda a perda é temporária e todos vão se reencontrar com os entes queridos, seja numa próxima vida ou no plano astral. “Respeitamos a tradição de finados, mas sabemos que o espírito não está no cemitério, ele está evoluindo em outro plano.”

Schuh explica que a doutrina espírita é consoladora, por mostrar caminhos para as pessoas. “Ninguém quer perder um ente querido, porque é uma dor grave e pesada, mas temos que ter aceitação e nos preparar para o reencontro.”

Os seguidores do espiritismo não acreditam em milagre ou coisas extraordinárias, e sim na existência de leis naturais que regem a nossa vida e morte. Para Schuh, as pessoas de uma forma geral têm um sentimento egoísta em relação à morte, pois pensam demais na perda do ente querido e se esquecem em como está a caminhada do falecido no outro plano.

“Temos que pensar que a vida continua e pensar nas coisas positivas desse ente querido. Não adianta tentar trazer ele de volta, essa passagem já foi, não tem como voltar. “

2017_11_01_Divulgação_Pastora Miriam

(SEM LEGENDA)

 

Para os protestantes a vida é um dom

Para a pastora Miriam Diefenthaeler, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLE), a morte sempre é uma perda, mas diante dela é preciso reconhecer que Jesus ressuscitou. “Essa mensagem deve ser acolhida pelo coração mortificado, sem esperança.”

Segundo ela, o cristianismo coloca a morte sob a perspectiva de “Deus”, ou seja, numa perspectiva da fé. Afirma que isso não elimina a morte, mas lhe dá outro rosto, muda comportamentos e desenvolve força libertadora.

“Para a fé cristã, a vida ultrapassa em muito um simples ‘dado’, pois é um dom” aponta. Conforme a pastora, a experiência religiosa descobre por trás do mistério da vida a vontade superior de um criador, comprometendo a criatura com a gratidão e o respeito.

“Assim sendo, a morte passa a ser o principal distintivo entre Deus e os demais seres viventes”, acredita. Afirma que o ser humano, em sua finitude e temporalidade, não se iguala a Deus. Para ela, se a vida é um presente de Deus, precisa ser assumida e vivida dessa forma, com sabedoria e coletividade.

“Para os cristãos, a morte é uma barreira para nossas ambições e ter essa consciência nos coloca numa concepção antropológica relacional e de horizontalidade com os demais”, reforça. Nesse sentido, alega, a fé em Deus desilude, pois aniquila a ideia de poder conquistar a imortalidade, seja através da depuração moral, seja através de conquistas científicas.

Miriam reforça o significado da Páscoa como a esperança na ressurreição dos mortos. Segundo a pastora, não se trata de alimentar utopias humanas ou anseios individuais por imortalidade, nem projetar compensação para as frustrações desta vida.

“O que está em jogo é de quem será o governo no Cosmo, qual é a realidade última, a destinação verdadeira da criação e do ser humano”, acredita. Dessa forma, a esperança da ressurreição não tem em vista o mero reavivamento dos mortos, pois não existe sem a morte que a precede, mas não reconduz às condições anteriores da vida.

DSC_0178

(SEM LEGENDA)

 

Sob a bênção dos orixás

Mãe de santo da religião denominada de Nação Kabinda, Helena D’ogm afirma que, nas religiões de matriz africana, a morte representa o desligamento entre a alma e o corpo. Segundo ela, para a nação dos orixás, enquanto o corpo material fica na terra, o espírito segue para outra dimensão.

“Nós tratamos muito sobre a ancestralidade, seres e divindades que passaram pela terra, que são os orixás”, aponta. Conforme a mãe de santo, a morte de um ente querido dói por ser irreversível, mas a religião procura lembrar das coisas positivas deixadas pelas pessoas que se foram.

“Procuramos até crescer com essas perdas, que se tornam uma suavidade chamada saudade”, alega. Segundo ela, existe um ritual de desligamento do corpo, que é fechado. Na celebração, são realizadas manobras para que a pessoa desencarne de forma adequada, além de uma missa, semelhante à católica, no templo de orixás.

Conforme a mãe de santo, o ritual serve para que o desencarne ocorra sem sofrimento ou revolta, e para que haja um entendimento do espírito de que terminou o seu tempo no plano material. Afirma que os espíritos são almas inofensivas, e que existe um plano onde são acolhidos e preparados para a reencarnação.

“Para nós, Deus ou Oxalá, são vários caminhos que nos levam ao mesmo lugar. Cada um escolhe o caminho e a religião para alcançar esse lugar”, aponta. Conforme Helena, a religião de matriz africana acredita que as pessoas vieram predestinadas a passar por determinadas situações e cumprir uma missão.

“Os pais e mães de santos servem para remover as dificuldades para que você cumpra a sua missão. Não se muda destino de ninguém, mas podemos fazer esse caminho ser menor tortuoso”, ressalta.

DSC_0188

(SEM LEGENDA)

 

Tempo determinado

Praticante do islamismo, Akran Isa Bakri Qadan afirma que a relação dos muçulmanos com a morte é muito semelhante ao cristianismo ou o judaísmo. Segundo ele, os islâmicos acreditam que todas as pessoas nascem com os dias, horas e minutos contados para a morte.

“A morte é certa e o islamismo nos explica que Deus nos criou, portanto, pertencemos a Ele”, afirma. Conforme Qadan, quando o ser humano morre, significa que ele está sendo levado de volta para Deus.

Lembra que os muçulmanos também acreditam na ressurreição e no juízo final, onde cada um será responsabilizados pelos seus atos em vida.

Conforme o islamista, enfrentar a morte de um ente querido não é fácil e se torna pesado para as pessoas que ficam. Porém, ressalta que a religião acredita em um Deus muito mais misericordioso com o ser humano que o próprio homem.

“Nós encaramos a morte como algo que te leva a não adiar as coisas para amanhã”, reforça. Segundo ele, a existência da morte, que pode acontecer a qualquer hora, ajuda a sempre ser correto, sempre fazer o bem e não ser uma pessoa presunçosa.

“Rico ou pobre, você vai para a terra”, acredita. Para Qadan, se todo o ser humano pensasse na morte como deveria, ela seria encarada como um fato positivo, não negativo.

2017_11_02_Gisele Feraboli_Padre heres pergher_encantado 002

(SEM LEGENDA)

 

Esperança da ressurreição

A morte no catolicismo significa o fim da missão de cada um na terra, conforme o padre da Paróquia São Pedro de Encantado, Hermes Pergher. “É o fim de uma etapa. O encerramento de uma missão e ao mesmo tempo uma abertura.”

“A razão da nossa fé é a superação da vida e a ressurreição de Jesus Cristo. Nós celebramos a vida que nasce da morte”, alega. Conforme o padre, o Dia de Finados é a celebração da vida que surge da morte depois de cumprida essa missão.

“Tudo aquilo que é material, física, permanece aqui e todo o bem, o amor, que vem em favor da vida que nós realizamos brota em frutos de esperança como uma semente.” De acordo com Pergher, as lembranças dos entes queridos e a saudade que vem disso se transformam pela fé na ressurreição em esperança da paz, da realização dos sonhos e da plenitude da vida.

Conforme o catolicismo, afirma, a superação é um convite de aproveitar cada momento da vida para fazer o bem. “Isso significa justamente fazer o que Jesus pediu: estar a serviço da vida”, aponta. Para os católicos, todos recebem uma tarefa para cumprir.

“Nós celebramos o cumprimento dessa missão no Dia de Finados”, ressalta. Segundo ele, a data representa a ação de graças a Deus pela vida dos queridos e a ressurreição para a eternidade. “Além da recordação, ao mesmo tempo, recordar o legado, a história o exemplo de valores pelos quais doaram a sua vida. Por isso celebramos a vida e não a morte”.

Entrevista

“Falar de morte é falar de sentimentos”

07_AHORA

Como podemos abordar a morte de entes queridos?

Ana Maria Goes – A primeira coisa fundamental é falar sobre. Como é algo que não acontece, acabamos alimentando muito esse tabu da morte e coloca o tema em um lugar onde as pessoas não conseguem tocar em vida, nem para conviver. A primeira coisa é fazer a morte existir no cotidiano, porque ela existe. Desde que nascemos, morte está presente, e fazemos de conta que não. É muito comum as pessoas dizerem que não têm medo de morrer, mas de sofrer. O sofrimento remete a essa ideia de que existe algo maior do que nós, e que não podemos controlar. A única coisa certa na vida é que um dia você vai morrer. Não falando disso, é como se a morte não existisse, e então fica esse fantasma circulando, algo que por si só já traz um sofrimento maior do que a própria morte representaria, se é que morre significa algum sofrimento.

Conversar ajuda a reduzir a dor de uma perda?

Ana – Ajuda, inclusive, a vivenciar a perda de outro modo. Tudo que não é falado se torna uma energia armazenada dentro de nós. Isso fica no nosso inconsciente, não fica claro e não sabemos o que fazer com isso. Se você lida com a realidade, fica mais fácil. Não estou dizendo em tornar a morte uma coisa comum. Sempre que vemos na televisão as notícias sobre a morte, estamos na realidade falando sobre violência. Falar de morte é falar de sentimento. É falar do medo, da insegurança e dessa fragilidade do ser humano. Pois chega uma hora que algo independente da gente nos tira desse lugar. O medo da morte está por trás de todos os outros medos. Conversando sobre isso, as pessoas têm condições de viver com mais qualidade de vida e menos doentes.

Quando a morte é repentina, a dor da perda é diferente do que quando acontece de forma mais natural?

Ana – Não diria que a dor é diferente, mas a experiência sim. A pessoa que passa por um processo natural, ou que adoece e esse acontecimento é acompanhado pela família, inevitavelmente a morte acaba se tornando mais real e temos um tempo para nos preparar. Claro que nunca estaremos preparados para não sofrer, mas é possível fazer um preparo consciente, importante tanto para quem fica quanto para quem vai. Nesse processo da morte natural, temos a chance de elaborar melhor tudo isso. A morte repentina vem para nos lembrar da nossa fragilidade, que somos finitos e que tudo começa e acaba. Nós vivemos uma cultura, especialmente no Ocidente, onde fica muito difícil admitir que existe algo maior que nós. E existe.

Como a fé se insere nesse processo de perda?

Ana – A fé alimenta a vida. É o sentimento e nese sentido não falo de dogmas ou religiões, mas sim de um estado de ser que nos dá a tranquilidade da existência. Pessoas que têm fé encaram a morte de uma forma muito mais tranquila. Seja a fé de que haverá outra vida depois da morte ou de que serão cuidadas por seres superiores neste momento de partida. A pessoa que tem fé vive e morre com mais tranquilidade. Os budistas têm a visão mais confortante da morte que já encontrei e que procuro utilizar no meu cotidiano e nas pessoas que trato. Para eles, o momento da nossa morte reflete a forma como vivemos. Acreditar nisso, ter essa fé, faz com que eu viva da melhor forma possível, porque quero uma boa partida. Falar em morte é sempre falar em vida, e quando falamos em vida, sempre estamos falando em morte.

Thiago Maurique: thiagomaurique@jornalahora.inf.br | Colaboração: Gisele Feraboli

Acompanhe
nossas
redes sociais