Era 31 de outubro de 1517. Martinho Lutero, na época com 34 anos, era monge e professor de Estudos Bíblicos da Universidade de Wittenberg, na Alemanha. Insatisfeito com a doutrina católica, decidiu pregar na porta da igreja do Castelo de Wittenberg um cartaz com 95 teses contra as cartas de indultos (uma espécie de certificado da salvação, comprado pelos fiéis para garantir a ida direta ao paraíso).
Sem saber, iniciava o que anos mais tarde foi chamada de Reforma Luterana. O legado de valores e princípios interferiu na formação da sociedade moderna. A necessidade da ética, da liberdade de expressão e do acesso à educação estão entre as grandes heranças do religioso alemão para o mundo.
Na época, Lutero não queria criar uma nova igreja, ou prejudicar os católicos, queria mudar certos aspectos, para que a igreja pudesse ser mais fiel à Bíblia. Mas sua opinião foi rejeitada, e ele acabou excomungado pelo papa.
Eric Nelson atua em Lajeado faz nove anos. Para ele, é preciso rememorar os ensinamentos
Mesmo ameaçado pela igreja, passou a lutar pelo direito das pessoas de expressarem sua opinião.
“Não que Lutero inventou a democracia, longe disso. Mas a luta dele contribuiu para que as pessoas conquistassem o direito de opinar e questionar”, afirma o pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) de Lajeado, Eric Peter Nelson, formado pela faculdade Luther Northwestern, nos Estados Unidos, e atuante em Lajeado faz nove anos.
Lutero ainda traduziu os ensinamentos sagrados do latim para o alemão, possibilitando que outras pessoas lessem as escrituras. Seu desejo era que cada um pudesse tirar as próprias conclusões.
Junto disso, passou a defender o direito das crianças irem à escola, tanto meninos quanto meninas. Para ele, príncipes, reis, enfim, governantes deveriam oferecer educação, e os pais teriam a obrigação de encaminhar os filhos à escola. “Os ensinamentos deles partem de preceitos religiosos, que desencadeiam no social”, resume o pastor.
Cultos têm como principais referenciais, além das Sagradas Escrituras, os credos cristãos, a Confissão de Augsburgo e o catecismo de Lutero
Alegria na religiosidade
Lutero ainda lutava pela remissão a um Deus mais confortante, e menos repreendedor, numa época em que o medo de ir para o “inferno” era uma preocupação do povo. Vítimas da peste negra, os cristãos temiam o que lhes esperava após a morte, e acabavam pagando para garantir uma “cadeira no céu.”
Situação ainda presente na atualidade, afirma o teólogo, professor e doutor em História Martin Dreher. “ Há movimentos cristãos que estão comercializando novamente o amor de Deus. Algo totalmente combatido por Lutero que ainda persiste. Para ele, a pessoa cristã já tem o céu, de graça, e não precisa fazer boas obras para si próprio, mas para preservação e salvação do mundo.”
Nelson concorda. “O objetivo deles é atrair pessoas por uma mensagem que promete melhora de vida financeira, material. E nós temos um perfil diferente. Buscamos a melhora espiritual, para o coletivo”, afirma o pastor.
IECLB de Lajeado inaugurou nesse domingo um busto em homenagem a Martinho Lutero
Valores perdidos
Para Dreher, essa venda religiosa coincide com a falta de ética presente na sociedade. “Teriam perguntado a ele: Se o mundo acabasse hoje, o que você faria? Primeiro pagaria suas dívidas. Segundo lugar, plantaria uma macieira. Mas que tem um grande significado. Não deixaria de ser ético, e manteria a criação de Deus. Qual de nós faria isso?”, questiona.
Nelson acredita que o fator desencadeante desse problema pessoal, que afeta o social, está na falta de limites para a liberdade. “O amor me leva a perguntar: o que isso acarreta ao meu próximo? A minha atitude prejudica ou colabora com os outros?” Do baixo ao alto escalão, todos são corrompidos quando esquecem dos outros.
“Quando furamos a fila, colamos na escola, fraudamos concursos públicos é apenas uma base para o que ocorre na política. Lutero pregava uma vida justa, honesta e livre. Mas talvez as pessoas não aprenderam a usá-la.” Dreher questiona: “Vivemos numa sociedade regida pelo mercado, e o mercado desconhece parâmetros éticos. É possível ética numa sociedade assim?”
Para Nelson, se o ímpeto revolucionário de Lutero fosse mais presente na sociedade, talvez problemas como esses poderiam ser combatidos com mais eficácia. “Às vezes falta para nós essa determinação de lutar pelo que consideramos correto. Sair da acomodação. Nos expor. Deixar os interesses individuais de lado para fazer algo necessário ao coletivo.”
Evangelização versus ciência
Disseminada por todos os continentes, a doutrina luterana – denominação não aceita por Lutero, que se considerava apenas alguém utilizado por Deus – buscava, sobretudo, a retomada das raízes. Queria reviver a evangelização, a importância de descobrir e valorizar o que Deus fez pelos seres humanos.
Desafio para a igreja atual, tendo em vista a expansão da ciência. Como ela explica a criação do mundo, qual seria o papel de Deus nessa construção. Nelson vê dois campos necessários, e complementares. “A ciência não responde perguntas importantíssimas, como: Por que existimos? Por que estamos aqui? Qual o sentido da nossa vida? Uma sem a outra é estéreo. Retomar a evangelização hoje em dia é uma grande batalha.”
Algumas das 95 teses de Lutero
6 O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.
21 Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.
24 Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.
27 Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu].
36 Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão pela de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.
A história da igreja luterana
1 – O cristianismo se distanciou das bases evangélicas. Diversas pessoas procuraram chamar atenção para essa realidade. Buscaram reformas no interior da igreja. Contestadoras, acabaram, ou assimiladas pela instituição ou perseguidas, proscritas e mortas.
2 – No caso de Lutero, os desencontros com a Igreja Católica tinham como pano de fundo a interpretação das Sagradas Escrituras. Em 31 de outubro de 1517, ele pregou 95 teses contra o pagamento de indulgências pelos fiéis à igreja.
3 – Seus esforços para chamar atenção de desvios e abusos de autoridade não encontraram eco. Ele acabou excomungado pelo papa Leão 9. Escapou da fogueira só pela ajuda do povo.
4 – O insucesso, no entanto, não freou o movimento da Reforma na igreja. Martinho Lutero tornou-se um dos principais protagonistas. Graças à grande receptividade, o movimento se espalhou pela Alemanha e outros países europeus.
5 – Por causa da liderança de Lutero e também pelo fato de as pessoa serem o centro das tensões e dos conflitos com a Igreja Católica, os pregadores começaram a ser chamados de “luteranos”.
6 – Em 1530, o luteranismo tem sua origem oficial na aprovação da Confissão de Augsburgo. Essa confissão tornou-se um documento básico de todas as igrejas luteranas no mundo.
7 – O luteranismo expandiu-se para as Américas e a Oceania com o advento do processo emigratório europeu. A expansão colonial europeia fez com que chegasse à África e Ásia.
8 – No Brasil, a organização comunitária da igreja luterana deu-se apenas com o advento do Império. Porém, havia restrições, tendo em vista que a Igreja Católica era considerada a igreja do Estado.
9 – Mesmo assim, dentro desse cenário, surgiram e se desenvolveram as primeiras comunidades. Em 1824 um grupo de imigrantes alemães evangélicos chegou a Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e um outro aportou em São Leopoldo.
10 – No Vale do Taquari, a igreja luterana chegou em 1850. As primeiras igrejas teriam sido instaladas em Novo Paraíso, Estrela, e Westfália. Hoje, o Sínodo do Vale do Taquari abrange 20 municípios, onde estão instaladas 59 igrejas, e há 33,8 mil integrantes.
Carolina Chaves da Silva: carolina@jornalahora.inf.br
