Escrita liberta e alimenta sonhos

Vale do Taquari - JOVENS POETAS

Escrita liberta e alimenta sonhos

O principal projeto literário de Lajeado chega à 22º edição. O livro Jovens Poetas foi lançado nessa sexta-feira. Neste ano, reúne publicações de estudantes de 35 escolas, além de detentos do presídio de Lajeado

Escrita liberta e alimenta sonhos
Vale do Taquari

A pobreza e a falta de oportunidade afastaram S.G, 34, das salas de aula. Na própria família, nenhum teve oportunidade de estudar. Natural de Foz do Iguaçu, Paraná, ingressou no crime. Foi preso carregando drogas. Está faz dois anos no presídio de Lajeado.

No cárcere conseguiu o primeiro diploma. Aprendeu a ler e escrever e se formou no Ensino Fundamental. O resultado desse esforço aparece na 22º edição do Livro Jovens Poetas, lançado nessa sexta-feira. O texto, com o título de “Prisão”, retrata o cotidiano na casa prisional.

Com orgulho, vê o seu nome na publicação. “Quero um para dar para minha família.” Dentro do presídio, teve oportunidades que não teve quando estava livre. Essa reflexão inclusive aparece no poema. Em algumas linhas, descreve os problemas do sistema prisional, como a superlotação, mas também fala de aprendizado e da chance de estudar e trabalhar.

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Adotou a leitura como hábito e a escrita se tornou um exercício permanente. “Estou elaborando um livro.” No próximo ano, espera progredir para o semi-aberto. “Voltar a trabalhar e conviver com os meus filhos. Isso é o que mais desejo.”

Além do detento paranaense, outros 11 presidiários têm textos publicados no livro. Entre eles, R.B, 28, natural de Venâncio Aires. Preso por assalto, ele tem mais dois anos de pena. Na penitenciária, teve a chance de se formar no Ensino Médio e também se profissionalizou em curso técnico de construção. Nos dias de visita do filho, têm satisfação em mostrar o avanço nos estudos. “Sempre levo minha pasta com as provas, os trabalhos. Fazendo isso, espero incentivá-lo para sempre estudar e ficar distante da vida do crime.”

A 22ª edição da obra Jovens Poetas de Lajeado foi lançada nessa sexta-feira. É uma promoção do Rotary Club Engenho com patrocínio do Super Rissul e do Grupo Estilo Atual. Também conta com o apoio cultural do A Hora.

Participação inédita

A iniciativa de incluir presos na publicação do Jovens Poetas é inédita no RS. Os textos foram produzidos durante as aulas do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos (Neeja Liberdade).

Conforme a coordenadora do projeto, Ana Cecília Togni, a proposta de incluir a comunidade carcerária surgiu de um esforço coletivo entre voluntários do Rotary, professores e autoridades. “Pensamos em fazer isso no sentido de contribuir com a ressocialização.”

As aulas para os detentos começaram a ser oferecidas no dia 25 de maio de 2015. “Muitos detentos quando receberam o certificado de conclusão não acreditaram. Eles perguntavam: isso vale o mesmo dos da rua?”, conta o diretor do presídio de Lajeado, David Horn.

Inspiração do preso de 59 anos partiu da música “País Tropical”. A paródia traz gírias próprias do ambiente carcerário. Como o “cuique”, que é o café da manhã

Inspiração do preso de 59 anos partiu da música “País Tropical”. A paródia traz gírias próprias do ambiente carcerário. Como o “cuique”, que é o café da manhã

Surpresa no presídio

Agentes penitenciários e o diretor da casa prisional tiveram uma surpresa nessa sexta-feira. “Não sabia que o livro já estava pronto”, diz Horn. Para ele, iniciativas como essa são importantes, pois ajudam na auto-estima dos detentos e também para mostrar uma realidade diferente.

“O perfil dos presos é de pouca escolaridade. A maioria dos que estão aqui tem o Fundamental incompleto. Por meio do Neeja Liberdade, tiveram uma oportunidade que talvez tenha faltado quando estavam livres.”

Na avaliação de Horn, houve detentos que resolveram participar das aulas para a progressão de pena. Pela lei, a cada três dias de aula, um é descontado. Com o aprendizado, diz o diretor, tiveram outra visão. “Eles amadureceram. Passaram a compartilhar conosco as lições e os avanços.”

O ato de compartilhar as vivências em sala de aula também interfere no desenvolvimento individual, avalia Horn. Por meio das aulas, acredita, se abre a possibilidade dos detentos reverem atitudes e visualizarem a possibilidade de trabalhar e sustentar a família sem voltar à criminalidade.

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Escola da vida

Com três décadas dedicadas à sala de aula, Marlise Therezinha Anderle da Silva, 55, assumiu um novo desafio. Formada em Letras e com pós em Português e em Gestão Escolar, ensina detentos dos presídios de Lajeado e Arroio do Meio.

Muitos vão para trás das grades sem ter estudado o suficiente para aprender a ler e escrever. Os professores, além de apresentar o conteúdo, precisam fazer com que os alunos superem a insegurança e o complexo de inferioridade. “Eles dizem que não sabem nada. Mas, e o conhecimento sobre a vida?”, indaga.

Os textos escritos para o Jovens Poetas mostram isso. Segundo a docente, todos falaram sobra a vida na prisão, e muitos destacaram a importância da escola. “Eles demonstraram muito interesse pelo projeto, puderam expressar como se sentem. As aulas são momentos de liberdade; a escola no presídio dá uma perspectiva de reintegração.”

Hábito que vem de casa

O prazer que a estudante Luana Orlandi Lapuente, 14, tem pela leitura vem de casa. Incentivada pelo pai, ela lê bastante. Uma das consequências é o hábito da escrita. Sempre reserva um tempo para escrever em seu caderno de poesias. Essa intimidade com as letras fez com que ela fosse uma das selecionadas para integrar o rol de autores do livro Os Jovens Poetas de Lajeado.

A aluna do Irmã Branca, Laura Lapuente,14, é uma das autoras da atual edição do livro Os Jovens Poetas de Lajeado, lançado nessa sexta-feira

A aluna do Irmã Branca, Laura Lapuente,14, é uma das autoras da atual edição do livro Os Jovens Poetas de Lajeado, lançado nessa sexta-feira

Inspirada no cotidiano escolar discorreu sobre um menino que sofre bullying. Laura observa que entre as meninas, a competição é explícita. Já os garotos costumam ser mais fechados e não partilham sentimentos. “O menino quebrado suspirou/E a luz do seu sorriso se apagou/E do sono eterno ele nunca mais voltou”, diz um trecho da poesia.

Para ela, tudo pode ser passado para o papel – ou para um eletrônico. “Às vezes, eu estou na rua e penso em alguma coisa que posso escrever. Por isso é bom sempre ter o celular junto, daí já anoto”. Atualmente, está relendo a série Harry Potter e está lendo um livro indicado pelo pai – O Mundo de Sofia. “Meu pai tem uma prateleira cheia de livros e eu tenho outra”.

Passado o lançamento do livro Jovens Poetas, a menina já tem outro evento pelo qual esperar. Todos anos, vai para a feira do livro de Porto Alegre. “Meus pais me dão um limite de dinheiro para gastar, mas eu sempre acabo pegando um a mais. No ano passado, comprei cinco e já li todos. O que eu mais gostei foi a Caixa de Pássaros”.

Também lê pela internet, mas prefere os livros físicos. “Cheiro de livro novo é muito bom”.

Vice-diretora do Irmã Branca, Juliana Puthin, relata a motivação dos alunos

Vice-diretora do Irmã Branca, Juliana Puthin, relata a motivação dos alunos

Incentivo à cultura

Segundo a vice-diretora da Irmã Branca, Juliana Puthin, desde o terceiro ano do Fundamental os alunos têm contato com a poesia. Na opinião dela, quando os trabalhos de sala de aula ultrapassam os limites da escola, os estudantes se sentem mais motivados. “São crianças, mas quando eles são valorizados dessa forma, criam outra expectativa de si mesmos e de suas potencialidades”, afirma.

Para o gerente de marketing do patrocinador ouro, o Super Rissul, Rafael Lubini, o projeto une a comunidade, incentiva a leitura e ajuda a resgatar um gênero que está se perdendo dentro da literatura. “Saber que esse projeto desperta a atenção de estudantes para a poesia nos dá mais satisfação ainda. Quem sabe não está aí uma nova geração de escritores?”.

Para os diretores do Grupo Estilo Atual, que também patrocina a iniciativa, Lizete Kronbauer e Heinz Rockenbach, a cultura é a base para a construção de uma sociedade melhor. “Quando se trabalha na melhoria da situação cultural e social da criança e do adolescente, oferecendo a oportunidade de um futuro melhor, estamos melhorando não só a vida desses jovens, como também de toda a sociedade”, dizem.

Filipe Faleiro: editor@jornalahora.inf.br | Gesiele Lordes: gesiele@jornalahora.inf.br

 

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