A vanguarda do atraso nacional sofre de furor atávico. Explico: repete hoje os movimentos absurdos que marcaram a história de crueldade da elite escravocrata nacional. Essa triste característica manifestou-se na portaria nº 1.129/2017 publicada no Diário Oficial da União dessa segunda-feira, 16. A nova (?) regra determina que jornadas extenuantes e condições degradantes, a partir da sanção, só serão consideradas trabalhos análogos à escravidão se houver restrição à locomoção do trabalhador.
Como se o absurdo fosse insuficiente, protege a imagem dos senhores de escravos contemporâneos ao estabelecer que a lista suja dos empregadores só seja divulgada pelo ministro do Trabalho. Não mais pelo corpo técnico do ministério. Sem dinheiro e precisando dos 200 votos da bancada ruralista, Michel Temer, fez vistas grossas ao projeto que mantém o Brasil no século XIX.
No meio da semana, a portaria que dificulta o trabalho dos fiscais do trabalho recebeu contestações ácidas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e mexeu com a procuradora-geral da República Raquel Dodge. Avançou pelo mundo e já ameaça as exportações – há ameaças da retaliação de parte da Organização Internacional do Trabalho e de boicote a produtos brasileiros. Nem Flávia Piovesan, secretária nacional dos Direitos Humanos, concorda com o governo do qual faz parte. Com tanto barulho e a pressão que ainda há de vir, a iniciativa ficou órfã de pai e mãe. Virou cria de geração espontânea. Mais de 300 anos de escravidão são insuficientes para ensinar que não se constrói uma nação com escravos.
DOMINIUM E POTESTAS. Se a história se repete como farsa, a parábola construída nos últimos dias lançou os protagonistas nas discussões acaloradas do acaso do império. “Considerada juridicamente, a injustiça da disposição é atentatória do direito de propriedade. No direito do senhor compreende-se o dominium e a potestas: em relação ao domínio, o escravo é objeto da propriedade, e, portanto, equiparado à coisa.” O argumento exato do senador Paulino de Souza, adversário da Lei do Ventre Livre e de quaisquer outras da mesma estirpe, é de 1871. A declaração encontra-se em Raízes do Conservadorismo Brasileiro – A Abolição na Imprensa e no Imaginário Social, livro de Juremir Machado (presente oportuno do amigo Irineu Giongo). Tempos difíceis para a lucidez de José Bonifácio de Andrade e Silva, combatente do escravismo por ser um mal para a modernização do Brasil e exemplo para Joaquim Nabuco. Ainda sobre repetir o passado, Décio Freitas escreveu em O Escravismo Brasileiro: “No momento em que são escritas estas linhas, outubro de 1979, trabalhadores dos canaviais de Pernambuco estão em greve, e uma de suas reivindicações é pagamento em dinheiro, não em gêneros alimentícios. A tragédia primeiro; a farsa depois.
PROBO. O virtuoso Aécio Neves retorna ao meio de seus honrados pares na segurança do Senado. Mesmo após ter achacado Joesley Batista de quem nunca foi amigo – e ameaçado de morte o encarregado do leva e traz da propina: “Tem que ser um que a gente mata ele (sic) antes da delação”. Aninha-se no aconchegante leito da im(p)unidade parlamentar. Livre. leve e solto, prepara novos discursos em defesa da honra, da lei e da ordem. A letra certa no lugar idem traduz a verdade.
MISSIVISTA. Michel Temer escreve cartas para eternizar mesóclises. Na última missiva, desmancha-se em lamúrias sobre uma fantasiosa conspiração urdida contra o governo. Tergiversa como todo especialista em conspirata – foi um articulador essencial da queda de Dilma Roussef, de quem era, casualmente, vice. Em meio a trejeitos, sorrisos contidos e explicações incompletas, assumiu com a promessa de erguer uma ponte para o futuro. Entregará uma pinguela incrustada no período colonial, com direito a uma viela sombria para o tráfego de acordos quase sempre suspeitosos – a exemplo do tema motivador da quase totalidade desta página. Ignorado pela política internacional e repelido pela opinião pública caseira, reduz a Política a um balcão de negócios. É um zumbi no cemitério moral que se tornou a Praça dos Três Poderes. Morto para governar de fato. Vivo para ressuscitar o pior do passado
“No direito do senhor
compreende-se o dominium e a
potestas: em relação ao domínio,
o escravo é objeto da propriedade,
e, portanto, equiparado à coisa…”
De Raízes do Conservadorismo
Brasileiro, livro de Juremir Machado
“A escravidão está acabando, mas
isso se dá porque os escravos estão
morrendo.”
Frase de Joaquim Nabuco, citada em
O Escravismo Brasileiro, obra do
historiador gaúcho Décio Freitas