Maria Margarete Souza da Rosa, 52, natural de Lajeado, lembra-se com detalhes dos dias que mudaram sua vida. Aos 8 anos de idade, abandonada pelo pai, ela morava com o irmão e a mãe no bairro Santo Antônio. Era início da década de 1980, quando ocupavam uma casa de madeira, com dois cômodos, pintada de cal, que volta e meia precisava ter as paredes lavadas devido à fuligem do fogão à lenha.
O frio e a umidade os cercavam, e a falta de dinheiro era comum. Mas a educação nunca faltava. A mãe se preocupava em lhes mandar para a escola todos os dias, a fim de que aprendessem e tivessem um futuro melhor. Para ir à Escola Municipal de Ensino Fundamental Francisco Oscar Karnal (FOK), Maria e o irmão precisavam cruzar trilhos, em meio aos matos, pois não havia estradas.
De meia e chinelo, chegavam à sala de aula com os pés úmidos e frios, encharcados de orvalho. Uma rotina comum para os estudantes da época, mas que se diferenciava para Maria devido a um detalhe. Aluna da pré-escola, ao chegar na escola, ela recebia o aconchego da professora Angélica Saldanha (in memoriam). Amorosa, ela tirava as meias molhadas dos alunos, e os esquentava com uma coberta, trazida de casa.
Enrolados num canto da sala, tomavam um chá, comiam bolacha e esqueciam dos problemas. Estava prontos para aprender. “A sala de aula era um encanto, de tantos cartazes, guardanapos, móbiles que ela pendurava. Quando passava da porta para dentro, estava em outro mundo, num mundo de fantasia, de paz, de amor, de alegria.”
Nas histórias contadas pela educadora, quem era bom vencia. O respeito, o cuidado por si e pelos outros eram valores ressaltados no dia a dia. “Mesmo a vida sendo difícil, você precisa ser íntegro, ser honesto, porque um dia receberá a recompensa. Eu me encantava com aquilo.”

Paixão pelo ensino: Maria Margarete cresceu no bairro Santo Antônio e inspirada por uma antiga professora voltou ao local para ensinar
Inspiração de amor
A dura realidade era deixada de lado. Ali apenas existia amor. Sentimento possível de despertar uma convicção em Maria: se tornar professora. “Eu me encantei, eu fui amada, fui cuidada por uma professora. E eu cresci com o pensamento de que eu também deveria ajudar os outros.” Depois do Ensino Médio, Maria fez o magistério no Colégio Madre Bárbara, quando reencontrou Angélica na Slan. Ambas como professoras. “Olhava para ela e precisava agradecer. Se não fosse ela, não tinha me encantado por essa profissão. Era maravilhoso estar com ela.”
Depois de cursar Pedagogia, na Ulbra, Maria passou por diversas escolas de Lajeado. Mas nunca deixou o bairro onde aprendeu que sonhar é possível. Hoje, coordena o Laboratório de Aprendizagem na FOK, onde estudou, e também trabalha no Projeto Vida. Acredita ter uma missão com as crianças desse lugar.“Eu me espelho neles, tudo que eles passam, eu já passei. Venci porque teve alguém que me mostrou o caminho certo. Então o que precisar fazer por eles, eu faço.” O propósito é plantar, para colher. Maria acredita em um futuro melhor para a sociedade, por meio da ação do professor. Para ela, a desvalorização precisa dar lugar à motivação. “Afinal, somos agentes transformadores e precisamos mostrar o caminho às nossas crianças. A educação transformou a minha vida e pode mudar a deles.”
Para além da técnica, os valores
Elizete de Azevedo Kreutz, 52, também vê a docência como um propósito de vida. Dentro de casa, teve o maior aprendizado sobre a profissão. A mãe foi por 25 anos alfabetizadora. Ensinava crianças a ler e escrever, e a cada aula tinha mais determinação para educar. Carinho e dedicação repassados de mãe para filha, e percebidos por quem hoje é aluno de Elizete. Como Paula Daiana Thomas, 32. A relações públicas conheceu a professora quando fazia o curso de graduação na Univates. Na época, não tiveram muito contato. A aproximação ocorreu na pós-graduação em Branding e Business, da qual Elizete é coordenadora. “Eu não estava muito a fim. Aí alguns amigos fizeram, a profe conversou comigo e eu comecei na segunda turma.”
Já nas primeiras aulas, Paula sentiu a diferença. Viu em Elizete a motivação para transformar. De um jeito singelo e amigo, a professora mobilizava pessoas, e dava luz aos alunos. “O talento que ela tem de ensinar e simplificar as coisas é algo único, e dela. Ela nunca diz não para as pessoas, e ninguém sabe dizer não para ela.”
Paula lembra da realização do Congresso de Branding e Business, em 2014, quando Elizete conseguiu trazer educadores de todo o mundo para a Univates. “Nunca vi tantas pessoas trabalhando com vontade. Quando pensava em pedir, as coisas já estavam prontas. Havia cerca de 400 pessoas de vários países, e a maioria havia vindo por ela.”
Vontade para mudar
Ao finalizar a pós, Paula não conseguiu mais se afastar do meio acadêmico. Continuou acompanhando as aulas da pós, e foi incentivada pela professora a ingressar no mestrado. “Eu nunca fui muito de estudar, e jamais tinha pensado em fazer um mestrado. Por influência dela, abracei a causa e fui.”
No início do ano passado, ela se mudou para Portugal, onde permaneceu seis meses na Iade – Universidade Europeia – cursando mestrado em Marketing. Hoje ela conclui sua dissertação e pensa na possibilidade de transmitir seus conhecimentos. “É algo distante, mas há algumas inspirações como a profe que me fazem repensar.” Além da técnica, a vontade dela em dar tudo de si é a causa da diferença. “Dá para ver a paixão. Ela tem uma dedicação absurda, tem que cuidar para que beba água, coma, porque senão nunca para.”
Professora dos cursos de graduação em Design, Design de Moda e Publicidade e Propaganda, Elizete já deu aulas em Vila Fão, Marques de Souza, e na Escola Estadual Fernandes Vieira, em Lajeado. Tem pós-doutorado em Comunicação Multimodal pela UNB – Universidade de Brasília, e fez parte da concepção do curso de Comunicação Social da Univates. Professora faz 31 anos, não se vê distante da docência. Vê nas pessoas prestativas o futuro da profissão. “Sempre vão ter pessoas com esse espírito de dedicação aos outros. Acima de valores, acima de salários, há aquilo que faz as pessoas felizes. É isso que nos move.”
O papel do professor no desenvolvimento da sociedade
Oficializada no país como uma profissão faz 190 anos, a docência surgiu no Brasil como algo restrito. O ensino era disponibilizado somente às elites. Anos mais tarde, a educação tornou-se comum. Incentivada pelo governo, foi massificada no país. Mas, aos poucos, foi perdendo seu prestígio. A remuneração é incompatível, e o desrespeito corriqueiro. “Isto acontece quando o Estado não consegue dar conta do padrão de desenvolvimento para agradar parte da sociedade. Para a elite, não são vistos como um investimento, mas como despesa”, afirma o doutor em Sociologia e professor, César Goes,
Ele acredita que falta uma consciência moderna e democrática do professor. “Não é visto como uma profissão de carreira, mas como tutor, reprodutores de determinado tipo de saber. E isso é trágico, aprofunda a divisão de classes, e mantém a sociedade brasileira num contexto colonial”, aponta.
O amadurecimento intelectual obtido pelos professores tem sido fundamental para a permanência, e relutância em sala de aula. Apesar das dificuldades, a maioria percebe o seu valor, e sabe da importância que tem para a sociedade, afirma.
“É um exercício que requer muito compromisso social.” Para ele, a mudança está na organização social. “Enquanto a sociedade brasileira não tiver uma força democrática, vamos sempre ficar para trás. A elite brasileira não vai fazer isso. Esse resgate dependerá sobretudo das classes econômicas mais baixas.”
Entrevista
“A sociedade precisa se dedicar em transformar a escola.”
Pós-doutor em Educação Matemática pela universidade de Bekeley, nos Estados Unidos, o professor de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luciano Meira, é uma das principais referências do país em inovação educacional.
Destaque no TED e em congressos sobre o tema, Meira acredita que o papel da escola não é de ensinar, e sim de criar cenários de aprendizado por meio de uma arquitetura pedagógica que utilize a tecnologia como instrumento de inovação.
Para ele, o professor do futuro deve estar em permanente formação para que seja capaz de compreender as transformações constantes no conjunto de tecnologias e práticas emergentes na sociedade. Ressalta ainda que a mudança necessária para a educação não deve vir somente dos educadores, mas sim de um esforço conjunto de toda a sociedade.
Por onde devemos começar a repensar o nosso sistema educacional?
Luciano Meira – O início mesmo é uma formação inovadora de docentes e gestores das redes escolares. Não consigo ver nada como uma base nacional comum ou exames nacionais como sendo um começo. Para mim é necessária uma reformulação profunda da maneira como os novos professores são preparados nas universidades e licenciaturas e como eles recebem uma formação continuada depois que começam a prática docente nas escolas. É uma formação que deve ocorrer ao longo da vida profissional. Esse é o marco zero.
A tecnologia, sozinha, é suficiente para formar um processo educacional mais adequado? Que outros elementos podem ser inseridos?
Meira – Sozinhas as tecnologias, digitais ou não, nunca fizeram e nunca farão nada relevante e perene. Precisamos é repensar os arranjos sociais da escola e da sala de aula por meio de práticas didáticas. É preciso uma arquitetura pedagógica por meio da qual as tecnologias servem de instrumento de inovação. É importante perceber que as tecnologias digitais não são apenas mais um instrumento. São um novo ambiente capaz de realizar duas coisas que nenhuma outra tecnologia jamais alcançou. A primeira é criar e simular novos mundos por meio da realidade virtual e realidade aumentada. Outra coisa é que só essas tecnologias conseguem produzir dados em massa e tratar eles como algorítimos de forma a criar uma inteligência educacional.
Como se insere o professor nesse contexto? Como será o educador do futuro?
Meira – O professor estará em formação a vida inteira. Outros pensadores falam que os professores são resistentes à mudança, mas penso que não. Acho que a sociedade, como um todo, não tem oferecido instrumentos de mudança para a escola. Tem uma metáfora danosa, que compara o quanto uma sala de cirurgia mudou desde 1930, enquanto as salas de aula não mudaram. Na verdade, isso revela que a sociedade, como um todo, cuidou de reorganizar a sala de cirurgia nesse tempo todo, criando equipamentos especialmente desenhados nesse local. O que especialmente foi desenhado para a sala de aula nos últimos cem anos? A única coisa foi a lousa digital, que não transforma nada.
Existem movimentos nesse sentido?
Meira – Nos últimos dez ou 15 anos começou-se a pensar artefatos digitais que podem reorganizar, e os professores se engajam nisso. Nos Estados Unidos, tem um aplicativo muito simples, e muito parecido com o WhatsApp, voltado para organizar a sala de aula. Ali estão os alunos, famílias e professores em um ambiente com funcionalidades especificamente criadas para o ensino. Os professores se engajam, mas para isso, precisamos nos dedicar a desenhar coisas do outro lado. O professor tem uma função dentro da escola, ele não vai ficar desenhando aplicativo. Não dá tempo e não é a especialidade dele. A sociedade precisa se dedicar em transformar a escola.
Parte do debate em torno da educação é saber se o ensino deve ser voltado para o mercado de trabalho ou para os outros aspectos da vida. Como equalizar essa questão?
Meira – Não há razão nenhuma para uma coisa se opor a outra, porque o mundo do trabalho tem cada vez mais uma articulação com a vida. Vamos encontrar cada vez mais caminhões guiados via wireless e robôs que constroem esses caminhões. Não vamos chegar rapidamente nesse nível no Brasil porque temos problemas maiores, mas temos uma fábrica da Jeep, distante 30 quilômetros de Recife, onde robôs e humanos interagem. A escola tem que preparar as pessoas para lidar com essas máquinas muito sofisticadas dentro de um ambiente de trabalho que ocupa suas vidas. E o debate sobre sociologia e filosofia dentro da escola é fundamental, até para os alunos descobrirem seu lugar nesse mundo. Eu estou preparando ao mesmo tempo os alunos para o trabalho e para a vida.
Carolina Chaves da Silva: carolina@jornalahora.inf.br | Colaboração: Thiago Maurique