“As pessoas cobram autonomia, mas rejeitam a responsabilidade”

Entrevista

“As pessoas cobram autonomia, mas rejeitam a responsabilidade”

Diretor-geral da Escala, uma das principais agências de publicidade do RS

“As pessoas cobram autonomia, mas rejeitam a responsabilidade”

Escolhido aos 33 anos para dirigir uma das três maiores empresa de publicidade do RS, João Miragem difere dos padrões de executivos e CEOs das grandes corporações. De cabelo comprido, vestindo calça jeans e camisa xadrez, dispensa o tradicional terno e gravata do mundo corporativo.

Porto-alegrense formado em Administração de Empresas pela ESPM, Miragem está à frente da Escala, agência com 44 anos de atuação no mercado publicitário. Assumiu a liderança durante um processo disruptivo, de revisão completa da organização e seus modelos de negócios.

Especialista em Comportamento do Consumidor, Miragem foi um dos destaques da 17ª Convenção CDL Lajeado, realizada em julho no Clube Tiro e Caça, onde apresentou palestra sobre as tendências do mercado de consumo.

Para o diretor, gestores e empresário precisam adaptar seus negócios às mudanças sociais provocadas pelas novas gerações caso queiram sobreviver. Aposta na pluralidade de formações, visões de mundo e estilos de vida na composição de uma equipe capaz de compreender as diferentes nuances da sociedade.

Na avaliação de Miragem, nada substitui o estudo, a dedicação em fazer coisas com qualidade e a capacidade de viver uma vida interessante.

Negócios em Pauta – Quais as características da sua criação que contribuíram para o sucesso enquanto gestor?

João Miragem – Cresci no bairro Cristal, em Porto Alegre. Sou filho de um judeu e uma católica, e passei minha idade escolar em um colégio de freira. Dentro da minha casa, descobri que se não desenvolvesse uma paixão por leitura a probabilidade de ganhar coisas era muito pequena. Não ganhava brinquedos, se pedisse. Mas ganhava gibis. Se quisesse um videogame, talvez, mas se quisesse uma coleção de livros até mais cara, com certeza ganharia. Na minha casa, tem muito livro antigo, rasgado e desenhado daquela época. Para os meus pais, desde que eu estivesse mexendo com livros, poderia fazer qualquer coisa. Por isso, sempre fui da leitura e não faço distinção de gênero. Ler é uma coisa que me fascina.

Você vislumbrava a área administrativa desde a infância?

Miragem – Não. Com 7 anos, comecei a jogar basquete, uma coisa que durou até a faculdade. A partir do basquete, desenvolvi interesse em uma série de coisas. Joguei campeonato, conheci lugares diferentes. Sempre quis jogar nos Estados Unidos, e com 15 anos minha mãe me colocou em um intercâmbio. Para ela, eu dizia que queria aprender inglês, mas na verdade queria jogar. Praticamente, era só o que fazia. Estudava das 8h às 15h e depois ficava jogando. Achei que seria profissional, mas destruí o joelho. Fiquei um ano, e já voltei lesionado. Joguei em alguns clubes pequenos, depois dei aulas para gurizadinha menor. Quando o esporte se mostrou como algo que não ia se realizar na minha vida, comecei a pensar no que fazer. Isso com 17, 18 anos.

[bloco 1]

Como foi essa escolha e como ela se encaixa na sua trajetória profissional?

Miragem – É uma decisão que tomamos muito cedo. Acabei indo para a Administração. Fiz faculdade na ESPM, que tem ênfase em marketing e flerta com a propaganda o tempo todo. Isso fez enxergar a propaganda de um jeito diferente. Depois de um ano de faculdade, fui morar na Inglaterra onde fiquei dois anos. Tenho passaporte italiano e pude fazer várias coisas diferentes, sempre trabalhos braçais. Descobri que me viro bem longe da família, que não passo fome e não tenho medo do trabalho. Fiz serviços de demolição, fui pedreiro, lixeiro, instalei outdoors. Também tinha muito tempo livre e virei rato das livrarias. Ou saía do trabalho para um museu ou para as livrarias. Naquela época, comprei um livro de administração. Era a história do Jack Welch, da General Eletric. Ele me deu uma nova visão do que é gestão, marketing, do que faz uma marca. Percebi que a faculdade de Administração fazia sentido para mim.

De volta ao Brasil, o que você encontrou na área?

Miragem – Voltei em 2004, e logo comecei a trabalhar na área financeira de uma empresa de comunicação, ainda na faculdade. Essa agência tinha muitos clientes e surgiu a oportunidade de abrir uma outra empresa com os colegas. Eu fazia toda a parte administrativa e financeira desse negócio e atacávamos em todas as pontas. Tínhamos um Gol imantado de rosa para ir aos colégios fazer ações de divulgação. Mas havia um trabalho que sempre sobrava, ligado à pesquisa e análises sobre o que o consumidor quer. Comecei a cuidar dessa parte, a gostar e a direcionar as ações e campanhas. Era exatamente o trabalho de planejamento. Na ESPM, procurei professores para me especializar nessa área. A professora Iara Silva me deu toda a literatura necessária e ainda doou o tempo dela para me orientar. Vendi minha parte na agência e busquei estagio numa empresa grande para aprender na prática.

Miragem foi alçado ao cargo por votação dos demais diretores

Miragem foi alçado ao cargo por votação dos demais diretores

Você abandonou um negócio rentável para fazer esse estágio?

Miragem – Sim, e não era remunerado. Foi uma mudança total de vida, mas minha mãe entendeu e me ajudou. Ela sabia que era um passo importante para o futuro. Nossas condições financeiras não eram as melhores, mas me permitiram fazer essa escolha. Nem todos podem usufruir desse privilégio. Depois, consegui um estágio remunerado em uma segunda agência, onde fiquei três anos e meio e me tornei diretor de núcleo.

Sair de estagiário para diretor em três anos foi uma grande evolução na carreira?

Miragem – Meu primeiro grande reconhecimento foi nessa agência, quando saí de uma reunião de concorrência e me disseram que eu precisava de um cartão de visitas. Depois, entramos na disputa por um grande cliente, que demandava a criação de uma pequena agência para ele. A empresa precisou alguém para gerenciar esse núcleo, e preferiam que eu assumisse essa função a buscar alguém no mercado. Fiquei um bom tempo com esse cliente, em um trabalho que se tornou case nacional. Alcançamos uma produtividade alta em uma equipe enxuta que operava como um relógio.

Foi nessa época que você começou a chamar a atenção do mercado?

Miragem – Ganhamos a concorrência para uma montadora de veículos, em 2010, e fiquei responsável pela operção também. Inovamos o modelo de prospecção, criando um reality show. Moramos dentro de um dos carros dessa empresa por 16 dias e transmitimos tudo por live streaming. Tivemos reunião de pauta da agência dentro do carro, entrevistamos profissionais da empresa, colecionadores da marca e transmitimos os jogos da Copa. No final, ganhamos a concorrência e esse processo colocou eu e outros dois profissionais em evidência. Pouco tempo depois, nós três saímos para trabalhar em grandes agências.

[bloco 2]

Como foi essa mudança para uma empresa do tamanho da Escala?

Miragem – Eu já havia recebido proposta da empresa em outra oportunidade, mas não estava pronto. A Escala representava uma complexidade e uma responsabilidade muito grande. Na segunda vez que ligaram, estava voltando de Passo Fundo de ônibus e nem falei sobre dinheiro nem nada. Só me perguntaram se eu queria ir para a Escala e eu disse que sim. Foi em 2010. Entrei já como executivo de Planejamento Sênior. Foi um choque pelo tamanho da estrutura. Tive que reaprender para poder me encaixar. Foi sofrido, mas com o tempo a coisa foi se ajustando.

De que forma você cresceu dentro da agência?

Miragem – Foi consequência da forma como atuo. Onde trabalho, busco me enraizar, e sempre agir como se fosse dono daquilo. Sei selecionar pessoas e construir bons times. Depois de dois anos, a então diretora do Planejamento saiu para a licença-maternidade. No meio do processo, ela entendeu que deveria ficar mais com o filho e pediu demissão, mas falou para os sócios que eu poderia assumir essa função. Assumi como gerente do planejamento. Foi mais um grande baque, porque nossa equipe ficou um bom tempo precisando se provar para ganhar a confiança das pessoas. Mostrar que o departamento continuava, mesmo com a ausência da ex-diretora. Foi um trabalho complexo. Com o tempo, começamos a ganhar espaço e sermos mais requisitados. Assim, o departamento floresceu de novo, se consolidou internamente e também junto aos clientes. Assim, me tornei diretor do departamento, passei a participar das reuniões de diretoria e opinar sobre o negócio.

Nesse meio-tempo, a Escala enfrentou uma das maiores crises econômicas do país. Como isso atingiu a empresa?

Miragem – Entramos em um processo de análise muito profundo. Isso foi no fim de 2014, quando a crise mostrou a cara. Não foi motivado pela crise, mas acelerado por ela. A intenção foi projetar o negócio para próximos 40 anos. Na medida que os clientes passam a se retrair, investir menos, direcionar recursos para outros lugares, que não eram nosso maior foco de atenção, era necessário reprogramar o nosso modo de operar. Felizmente a Escala é uma empresa muito sólida. Sentimos a crise, mas tomamos as medidas que precisávamos tomar. Como todo mundo, tivemos que reduzir,saber onde investir e em qual momento.

[bloco 3]

Como foi o trabalho de repensar a organização?

Miragem – Depois de uma série de movimentos internos, contratamos uma consultoria escandinava, que veio aqui trabalhar conosco. Fizeram um levantamento do nosso processo, entrevistaram uma série de pessoas, tanto da direção quanto da operação. Depois, começamos a redefinir o modelo. Surgiu a necessidade de transformar a forma como a empresa opera, seus processos internos e o negócio. O que a gente faz, para onde a gente olha e como a gente se reinventa continuamente. A consultoria sugeriu que deveríamos ter dois gestores, um para o processo e outro para o modelo. A diretoria chegou à conclusão de que uma única pessoa deveria ser responsável, no cargo de diretor-geral da agência. Nesse processo, os sócios saíram do papel executivo e operacional para participar como conselheiros. A lógica dessa transformação foi de criar uma cultura de maior responsabilização das pessoas que estão abaixo da hierarquia. Foi de horizontalizar a agência, dando maior autonomia e poder de tomada de decisão para as pessoas.

Nesse contexto que você assumiu a direção geral?

Miragem – Quando ficou clara a descrição dessa vaga, decidiram que seria por votação dos diretores. Fui escolhido pela própria agência para ser o cargo. Da forma como aconteceu, fiquei feliz em aceitar. Não era algo que estava esperando, mas o fato de ter sido votado pelos colegas me passou muita segurança e o sentimento de não estar sozinho. Comecei a entender a liderança de uma outra forma. Muito mais de uma posição servil do que impositiva. Preciso criar um ambiente para que o trabalho aconteça. Para isso, é necessário servir os meus colegas. Tive medo diante da responsabilidade. É uma experiência difícil de acontecer aos 33 anos. Tenho aproveitado para aprender, crescer e estudar. O cargo me obriga a olhar para toda a agência e perceber como tudo se conecta.

Por que você mudou sua visão sobre o papel do líder?

Miragem – Em um organograma tradicional, o líder está no topo. Tem um designer chamado John Maeda que remodelou o organograma trazendo o líder para o centro da organização, muito mais como um hub para conexões do que como uma estrela no topo. No momento que os sócios abriram mão do poder, a mensagem ficou clara. Saíram da operação, mas o papel deles como mentoria é muito importante. Tem coisas que você corre atrás, mas não tem como alcançar os 44 anos de experiência no negócio.

Especialista em Comportamento do Consumidor, foi uma das atrações da 17ª Convenção CDL Lajeado

Especialista em Comportamento do Consumidor, foi uma das atrações da 17ª Convenção CDL Lajeado

Como esse processo de reestruturação mexeu com a equipe?

Miragem – As pessoas cobram autonomia, mas rejeitam a responsabilidade. Passamos por isso. No momento que demos autonomia para uma série de pessoas, muita gente tirou o corpo fora. Se pegarmos o corpo de diretores da agência, está quase 100% renovado. Quem continua mudou de cargo. Só uma pessoa mantém o cargo. Algumas desistiram do processo e outras nós percebemos que se encaixariam em outras posições. O principal foi as pessoas perceberem que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

[bloco 4]

É possível fazer um processo semelhante em empresas pequenas e familiares?

Miragem – As formas de competir hoje são muitas. A receita de bolo nem sempre funciona. Se olharmos o agronegócio, uma das alavancas da nossa economia, os filhos dos agricultores familiares foram se qualificar para assumir o negócio. Estudaram Gestão, Agronomia, Veterinária. Foram fazer alguma coisa para ampliar o horizonte e qualificar o trabalho. É preciso sempre respeitar a essência do negócio, mas não pode ficar parado no tempo. Ruim é a mentalidade de que sempre foi assim e vai continuar sempre assim em um mundo que está mudando. Não adianta olhar para as outras lojas do calçadão. Você está competindo com muito mais coisas. Pra chegar a esse tipo de profissionalização, a qualificação é indispensável.

O que os jovens de hoje precisam fazer para obter sucesso no mundo dos negócios?

Miragem – A primeira coisa é estudar algo que você gosta. A faculdade não determina mais a área em que você vai atuar. O conhecimento que você tem agrega pode somar em vários tipos de negócios diferentes. Não precisa ficar preso ou limitado a uma área, porque as empresas estão atrás de pessoas boas, independente do que elas estudaram. A segunda coisa é olhar para o mundo, para o todo, para o seu redor. Isso ajuda a ter ideias do que é bom, ruim, a tomar decisões com cada vez mais elementos. Procurar ter uma vida interessante, cheia de coisas, porque essas são as coisas que agregam. Nos últimos anos, o mundo dos negócios virou uma grande autoajuda. Tem uma série de pessoas ditando regras e se tornando referência sem nunca ter realizado nada. Parece que está todo mundo procurando a próxima coisa nova, quando deveriam estar preocupados em fazer coisas muito bem-feitas. Isso que está em falta

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