Padre nega enterro a luterano e é condenado

Polêmica em Poço das Antas

Padre nega enterro a luterano e é condenado

Irineu Wasen morreu em um acidente de trânsito em 2011 junto com a mulher e a sogra. Ele não pôde ser enterrado com a família por ser luterano e não estar associado à comunidade católica do município

Padre nega enterro a luterano e é condenado
Vale do Taquari

A Mitra da Diocese de Montenegro, responsável pela Paróquia São Pedro Apóstolo, e o padre João Paulo Schefer foram condenados, em segunda instância, a pagar R$ 15 mil de indenização para Paola Ely Wasen. Ela foi impedida pela igreja, em 2011, de sepultar o pai, Irineu Wasen, no cemitério católico da cidade, único no perímetro urbano de Poço das Antas.

Ele morreu junto com a mãe de Paola, Eunice Teresinha Ely, e a avó materna, Carmelita Maria Ely, em um acidente na BR-386. Mas, ao contrário delas, Wasen era luterano e não estava associado à comunidade católica. O que teria motivado o padre responsável pela paróquia a negar o enterro.

Segundo Paola, a família ofertou o pagamento dos atos fúnebres. O valor era de R$ 6 mil. Mas, no tempo entre ir ao banco e sacar o dinheiro, o padre teria mudado de ideia, e negou novamente a cerimônia.

Ela afirma que Schefer também não aceitou rezar por Wasen, que mantinha união estável com Eunice. Um pastor foi trazido de Porto Alegre, cidade onde a família morava na época, para fazer o velório.

“A todo momento, o padre se mostrava intransigente, querendo acabar com o velório logo, dizendo que não iria esperar pelo pastor. Eu conversei com ele desesperada pedindo para enterrar meu pai e ele me disse que não, eu deveria levar meu pai para Porto Alegre”, afirma Paola.

Na época, ela e o pai frequentavam a igreja luterana na capital, e a mãe, apesar de ir à católica, também os acompanhava. Assim, depois de velar os três, sepultar a mãe e a avó, Paola precisou encaminhar às pressas o corpo do pai para um cemitério em Linha Clara, Teutônia, onde estavam enterrados outros entes. Os corpos dos bisavós foram colocados no mesmo túmulo e o pai sepultado ao lado.

“Naquele momento me causaram mais dor e sofrimento. É muito difícil entender que teus pais se amaram a vida inteira, você é fruto desse amor e a religião os separou.” Dias depois, Paola teria sido ameaçada por uma pessoa da comunidade. “Me disse que no interior as coisas se resolviam diferente.” Eunice e Carmelita eram naturais de Poço das Antas, conhecidas na comunidade, assim como Wasen, pois vinham à cidade com frequência. Naquele mês, as duas haviam passado uma semana em Poço das Antas onde cuidavam do túmulo do avô de Paola. Wasen havia ido buscar as duas, para retornar à capital, quando se acidentaram.

Eunice (e) Wasen (d) na confirmação da filha Paola (c) na igreja luterana

Eunice (e) Wasen (d) na confirmação da filha Paola (c) na igreja luterana

O processo

Dois anos depois, em 2013, Paola entrou na Justiça, pedindo indenização. Em primeira instância, na comarca de Teutônia, a juíza Patricia Stelmar Neto considerou que, por ser particular, o cemitério pode conter regras próprias, e o ato do padre não era ilícito. A negativa não teria ocorrido em virtude da crença religiosa, mas por faltar a condição de membro da comunidade, a qual pressupõe o pagamento de contribuição.

A enfermeira, filha do casal, entrou com recurso e o processo chegou à 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado. Em sentença, proferida no dia 24 de maio, o conjunto de desembargadores optou, por unanimidade, em conceder a reparação moral.

Eles entenderam que houve discriminação religiosa por parte da igreja. O relator da ação, desembargador Eugênio Facchini Neto, considerou que os depoimentos colhidos comprovam que, apesar de não ser associado, o motivo maior para a negativa foi o fato de Wasen ter outra religião. Para ele, faltou evidente sensibilidade ao representante da igreja ao não reconhecer a excepcionalidade da situação.

“Tenho que a conduta do padre fez com que a morte efetivamente separasse o que em vida foi um belo e cristão exemplo de ecumenismo – união amorosa de uma católica com um luterano, cada qual seguindo a sua crença íntima e observando seus cultos religiosos, sem que isso consistisse em empecilho para uma vida em comum”, apontou.

Várias testemunhas afirmaram que é preciso ser católico para ser sepultado no local. O que infringe direitos fundamentais, como o de prestar honras fúnebres aos entes familiares e não sofrer qualquer discriminação em razão de opção religiosa, aponta o desembargador. Por ter poder social, a igreja precisa respeitá-los, apesar do cemitério ser um território particular. “Cabe especialmente aos líderes religiosos, mesmo – ou especialmente – atuando em pequenas comunidades fortemente divididas, difundir uma cultura de tolerância e acolhimento.” O caso transitou em julgado na segunda-feira passada, não cabendo mais recursos. Foi remetido de volta a Teutônia, para cobrança da indenização.

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Critérios definidos

A Mitra da Diocese de Montenegro respondeu, por meio de nota, que “muito embora discorde da solução apresentada pelo Judiciário, a cumprirá em seus exatos termos. Considerando tratar-se de decisão com trânsito em julgado, se mostra infrutífero trazer à tona novamente os fatos já apreciados nos autos do processo. A comunidade de Poço das Antas decidiu não recorrer e não cabe mais recurso.”

A diocese reafirma “profundo respeito por todas as manifestações religiosas, sendo que jamais procurou agir no sentido de provocar qualquer forma de discriminação.”

Em outubro de 2016, foi aprovado o Regimento Geral dos Cemitérios da Diocese de Montenegro, no qual todos os critérios e exigências para inumações estão definidos.

O documento está disponível no site da diocese, e foi feito com a participação da comunidade católica, e está registrado no Registro de Títulos e Documentos da cidade de Montenegro, sob o nº 28331.

Apoio da comunidade

Alguns moradores de Poço das Antas afirmaram à reportagem que concordam com a atitude do padre, que hoje atua em Alto Feliz. Associada da comunidade católica, uma idosa afirmou que acredita que a cumprir a regra estabelecida seja de extrema importância.

Para ela, somente quem contribui pode ser sepultado no cemitério da igreja. Hoje ela paga valores semestrais, para integrar a comunidade católica. “Também não é costume que católicos sejam enterrados no evangélico. Aqui cada um se associa à sua igreja.”

Outro morador também avalia pelo lado de quem paga. Ele conhecia Eunice, e lembra que na época o clima ficou tenso na cidade.

Alguns contra, outros a favor. “A gente se coloca no lugar da família, foi trágico, ninguém espera. Mas acho justo o que o padre fez. Estava certo. Somente quem paga o dízimo deve ser enterrado ali.” Ele considera que a construção de um cemitério público poderia resolver esse tipo de dilema. Hoje, o município só tem cemitérios católicos e luteranos.

O acidente

Carmelita, Eunice e Wasen se acidentaram na tarde do dia 2 de novembro de 2011, quando iam de Poço das Antas para Porto Alegre. Quando estavam entre Paverama e Taquari, no km 377, da BR-386, o Fiat Prêmio que ocupavam colidiu frontalmente com uma Hilux, que vinha no sentido contrário. Os três morreram no local. Dois ocupantes da caminhonete ficaram feridos.

Carolina Chaves: carolina@jornalahora.inf.br

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