Dari Selge, 53, de Alto Conventos, em Lajeado, está na atividade desde os 22 anos, quando se casou com Noeli, 56. Em três hectares, mantém cinco vacas e uma produção média de 50 litros por dia. O leite é a única alternativa de renda. “Passaríamos fome sem esse dinheiro”, comenta Selge.
Os dois filhos, Leonardo e Luana, rumaram para a cidade. Não queriam levar a vida sofrida dos pais. O pai lamenta, mas apoia a decisão. “Aqui está cada dia mais difícil”, frisa.
A galpão está precário e nem está nos planos uma reforma. Novos investimentos como a compra de um resfriador a granel ou o aumento do plantel estão descartados. O leite é armazenado em taros e baldes em um freezer comprado há dois anos.
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Selge critica a falta de orientação técnica para qualificar a produção e talvez despertar o interesse de um dos filhos em ficar na propriedade. “A Emater veio uma vez aqui. Queriam implantar uma pastagem”, recorda. Sem alternativas, o casal tenta se manter na atividade até Selge conseguir se aposentar. Faltam sete anos, isso se a Previdência não mudar, ressalta.
A 20 quilômetros da propriedade, em Arroio do Meio, a realidade é bem diferente. Idealizado pela Dália Alimentos, o Projeto Associativo de Produção Leiteira com Ordenha Robotizada é um dos mais modernos da América Latina.
Para Selge, a ordenha com robôs é vista com estranheza e certa desconfiança. Para o diretor-executivo da cooperativa, Carlos Alberto de Figueiredo Freitas, é uma ação revolucionária, que alia sanidade, escala e reduz custos, três aspectos fundamentais para sobreviver na cadeia leiteira.
Enquanto o modelo envolve poucas famílias, entidades ligadas ao setor tentam criar politicas públicas para manter o máximo de produtores na atividade. Fraudes, falta de pagamento, queda no consumo, idade avançada das famílias, ausência de sucessores, oscilação do preço e o mais recente “golpe”, a importação de leite em pó do Uruguai, fazem o setor mergulhar em uma crise sem precedentes.
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Pelo levantamento da Emater Regional de Lajeado, entre janeiro de 2015 e dezembro do ano passado, 1.239 famílias abandonaram a produção. Caso nada seja feito para frear a crise, o RS pode perder até 40 mil produtores nos próximos cinco anos.
“Foram 17 anos de discussões. Temos que agir”
Diretor da CIC-VT e ex-diretor-executivo do IGL, Oreno Ardêmio Heineck acredita que a solução passa por renovar o Convênio do Estado com o Instituto Gaúcho do Leite (IGL), que foi criado para tal e tem o apoio da maioria das entidades ligadas ao setor. Reúne, assim, as melhores condições para desenvolver projetos que organizarão e qualificarão a cadeia, desde a propriedade até as gôndolas dos mercados.
Defende a oferta maior de produtos à base de leite. “Aqui temos 60. Em outros países, chega a 300. Pelo IGL projetamos um aumento de até 20% nas vendas, em quatro anos, no mercado interno e presença estável e competitiva no mercado externo”, calcula. “Precisamos expandir significativamente as vendas de lácteos”, complementa
Pede atenção especial ao produtor. Em um universo de 84,5 mil famílias que vendem o leite às indústrias, 45,3% produzem até 100 litros/dia (38 mil produtores na iminência de exclusão da atividade), 73,7% produzem até 200 litros/dia e 85% até 300 litrod/dia.
Segundo Heineck, em outros países, milhares de famílias foram excluídas por descuido. “Depois que o produtor largou, não tem volta. Na Galícia, Espanha, nos disseram que o único pecado da sua organização e desenvolvimento da cadeia foi terem se descuidado dos produtores. Nos disseram: “Amem os produtores. São a base do processo todo”, enfatiza.
Para ele, o Prodeleite, Fundoleite e IGL são os pilares para qualificar e desenvolver o setor leiteiro. O primeiro consiste em regras e traz os princípios dos modelos (genética, sanidade, mercado, manejo, gestão, políticas públicas, assistência técnica, pesquisa e inovação) observados em países onde o leite é um segmento estável e de destaque.
O Fundoleite financia os projetos imprescindíveis para desenvolver o setor. É um fundo setorial em que indústria e Estado contribuem, cada um, com R$ 0,0004 por litro de leite captado. A arrecadação projetada para 2016 era de R$ 3,5 milhões.
E por fim o IGL, órgão privado representativo do setor, e gerenciaria a aplicações dos recursos e políticas públicas, conforme previsto nas normas do Fundoleite. Prodeleite e Fundoleite foram instituídos por leis estaduais aprovadas por unanimidade pela Assembleia Legislativa em dezembro de 2013. Defende um prazo máximo de quatro anos para, com medidas de curto, médio e longo prazos, tentar “salvar”, o número máximo de produtores. “Temos estrutura legal e operacional para implantar um novo modelo de organização e desenvolvimento do setor, baseado na qualidade, produtividade e sanidade”, finaliza.
“Ajudei a enriquecer a indústria e mercados”
Entre as famílias desistentes, está o casal Hélio, 63, e Dulce Foster, 62, de Santa Clara do Sul. Cansados da falta de valorização, criam bezerros. “Durante 40 anos, ajudei a enriquecer a indústria e os mercados. Cansei de ver meu leite, de ótima qualidade, ser adulterado e vendido como se fosse um produto nobre”, desabafa Foster. Dulce lamenta pelos seis filhos, pois nenhum ficou na lavoura. “Como incentivar um jovem a produzir leite? Melhor ter emrpego e renda fixa na cidade”, avalia.
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O vizinho Nestor Wickert, 65, também deixará a atividade em breve. No auge, chegou a vender 250 litros por dia. Hoje, não passa de 40. O plantel de cinco vacas será reduzido para duas. As demais serão abatidas. Sem sucessores, lamenta o declínio do setor. “Sem valorização, e com preço baixo, custo alto, calotes e seguidas fraudes, conseguiram acabar com a única fonte de lucro na pequena propriedade. Enquanto fazem reuniões, dezenas de produtores param, afundados em dívidas”, lamenta.
Calotes, fraudes, dívidas e importação destruturam setor
Um produtor, que prefere não se idenfificar por medo de represálias, sofreu três calotes de empresas da região. A dívida passa de R$ 12 mil. “Trabalhamos de segunda à segunda, feriados, sem férias e não recebemos pelo produto entregue. Aí a Justiça determina o início do pagamento em dez anos. Isso é um desrespeito, é desumano”, lamenta.
Embora ainda não tenha desistido da atividade, busca outras alternativas para manter a estabilidade e quitar as dívidas acumuladas.
O vizinho também foi uma das vítimas. Para quitar as despesas com insumos e medicamentos, foi obrigado a derrubar um mato de eucalipto. “Isso desanima e ninguém faz nada para nos ajudar. Meus dois filhos estão na propriedade. Dá pena ver eles trabalhar para no fim do mês não receber. Ninguém nos representa, estamos abandonados. Somos um barco à deriva”, emociona-se.
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No Vale do Taquari, nos últimos cinco anos, pelo menos cinco empresas decretaram falência e não pagaram os produtores. O setor ainda é abalado pelas constantes fraudes, deflagradas pelo Ministério Público.
A presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Teutônia, Liane Brackmann, lamenta a desistência de 30 mil produtores em todo estado. “Na nossa cidade, deixaram de circular R$ 500 mil no último mês. Importações, fraudes, falta de políticas, de união entre os elos da cadeia, ajudam a fechar mais porteiras a cada dia. Não aguentamos mais”, expressa.
Foco na gestão
Carlos Alberto Kortz, 38, de Arroio do Meio, aposta na gestão para reduzir os custos. Além da contratação de um engenheiro agrícola para auxiliar no planejamento, liberação de crédito e correta aplicação dos recursos, foca no bem- estar dos animais.
A construção de um compost barn, além de melhorar o manejo e o conforto, reduziu em até 90% os casos de mastite e outras doenças. “A produtividade aumentou dez litros por vaca. A despesa com medicamentos e consultas estava orçada em R$ 100 mil por ano e deixou de ser prejuízo e virou lucro”, destaca.
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Kortz destaca a importância de buscar novas tecnologias e formas de produção, sempre com auxílio de profissionais qualificados. “Sabemos produzir, mas falhamos na gerência. O lucro está no detalhe e ele acontece para dentro da porteira. Fora dela, não conseguimos interferir”, afirma.
Incentivos para extrativistas
Diante da gravidade do cenário, o A Hora promoveu na semana passada mais uma edição do debate Pensar o Vale, na Univates. Participaram produtores, líderes regionais e o secretário da Agricultura Ernani Polo.
Presidente do Codevat, Cintia Agostini enfatizou a necessidade de buscar soluções. Segundo ela, o Vale do Taquari responde a menos de 2% do território do RS, mas tem capacidade para produzir 1/3 do leite gaúcho. “Nos últimos dois anos, as importações cresceram 300% e derrubaram os preços. Quem se anima a continuar tendo prejuízo?”, questiona.
De acordo com Carlos Alberto de Freitas, presidente- executivo da Dália Alimentos, o cenário adverso se estenderá até março de 2018. Para ele, a atuação de cooperativas mantém parte dos agricultores na atividade, mas infelizmente elas perdem competitividade devido ao incentivo fiscal dado às multinacionais. “Nós temos técnicos, eles, compradores de leite e quem faz lobby para conseguir apoio financeiro. Isso permite melhor preço e desestrutura toda cadeia” critica.
O presidente da Languiru, Dirceu Bayer, ressalta a falta de uma liderança forte, capaz de reunir as forças atuantes na cadeia produtiva em um objetivo comum. “Ninguém fala a mesma língua. Falta uma política para o leite. Temos tecnologia, mão de obra e capacidade de produzir”, afirma.
Mais produtividade
Segundo o presidente do Sindilat, Alexandre Guerra (foto), é preciso repensar a produtividade para poder competir com o mercado internacional. “A Argentina produz 4,7 mil por vaca ao ano. Aqui chegamos a três mil. Quanto maior a oferta, menor será o custo, a indústria ganha escala e consegue reduzir a ociosidade”, destaca.
A capacidade instalada é de 17 milhões de litro por dia, no entanto, a produção chega a 12 milhões. Outro fator determinante é a guerra fiscal e o custo logístico. “Os principais consumidores estão em São Paulo e Rio de Janeiro. A distância diminui os lucros”, diz.
Para o secretário Ernani Polo, melhorar as condições de competição depende de um trabalho integrado entre todos os elos da cadeia. “Temos o leite mais fiscalizado do país. Falta sintonia. Existem bons projetos, mas precisamos nos unir”, defende.