Ausência do Estado abre brechas à justiça paralela

País - Polêmica Nacional

Ausência do Estado abre brechas à justiça paralela

O avanço da violência eleva a defesa de medidas mais duras contra os criminosos. Em meio ao clamor de parte da sociedade para combater o “fogo com fogo”, autoridades e estudiosos analisam como a cultura da violência ganha repercussão em momentos de instabilidade.

Ausência do Estado abre brechas à justiça paralela
Brasil

A sensação de insegurança, o sentimento de impunidade e a descrença nas instituições públicas provocam reações e abrem espaço para a defesa da justiça com as próprias mãos. O caso mais recente no país, o de um adolescente que teve uma ofensa tatuada na própria testa, reacende a discussão sobre o revanchismo popular e mostra como as redes sociais interferem na polarização dos discursos entre grupos contra e a favor do ato.

O vídeo em que o menor de idade aparece sentado no que seria um estúdio de tatuagem foi gravado no fim de maio e repercutiu pelo país no fim da semana passada. Familiares do adolescente o reconheceram e registraram ocorrência contra os agressores na polícia. O tatuador e um amigo foram presos pelo crime de tortura. Pelo registro, o jovem teria furtado uma bicicleta quando foi pego pelos homens.

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Na legalidade, o Estado detém, em tese, o monopólio do controle da violência. A partir das brechas deixadas pelas instituições públicas, analisa o sociólogo e professor da Univates e coordenador da Área de Humanidades, Daniel Granada, em algumas situações, indivíduos ou grupos assumem posições em defesa da justiça com as próprias mãos. “No caso citado, temos que compreender que os que tatuaram o rapaz não estavam tentando fazer justiça, na verdade, eles cometeram um crime de tortura.”

Para ele, o conceito de Justiça não pode ser usado nesse caso. “A ideia engloba valores inerentes ao ser humano, transcendentais. Relacionados com a liberdade, a igualdade, a fraternidade, dignidade e moral. A Justiça é um sistema de valores em constante mutação.”

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Conforme Granada, é preciso diferenciar o que é fazer justiça do que vem a ser cometer crimes, mesmo que esteja se pensando em punir um infrator, pois isso é dever das instituições públicas e do Estado. “Qualquer iniciativa arbitrária deve ser reprimida e considerada nada além de outro ato criminoso.”

Polarização nas redes sociais

Para o sociólogo e coordenador da Área de Humanidades da Univates, Daniel Granada, o fato da agressão é um episódio que não se constitui como um fenômeno social. Para ele, se trata de algo cometido por duas pessoas com baixo nível educacional e com “alguma dificuldade em entender que não se deve fazer justiça com as próprias mãos.”

Na opinião do pesquisador, chama atenção é a repercussão causada pelas redes sociais. “O debate se propagou de maneira rápida e intensa. Tanto do lado daqueles que se organizaram para pagar uma cirurgia de remoção da tatuagem do rapaz, como do outro lado aqueles que criticaram a atenção dada à punição ao criminoso, julgando que como ele era considerado ‘ladrão’, deveria ser punido mesmo.”

Conforme Granada, as pessoas usam a rede social para divulgar ideias e valores que refletem a sociedade, mas com a sensação de anonimato do “mundo virtual”, um local onde as pessoas acreditam ser possível expressar qualquer ideia de forma impune.

Cotidiano de violência

Na análise do sociólogo, a intolerância e o discurso de ódio estão presentes na sociedade pós-industrial. Para ele, fatos como as decapitações nos presídios, os feminicídios e latrocínios são exemplos extremos da brutalidade e violência atual.

Para Granada, a pergunta central é de que forma a violência tem sido cada vez mais aceita e tolerada na sociedade. Os efeitos são de uma intolerância cada vez maior com os outros, com aqueles que são diferentes ou com quem há desavenças, frisa. “Uma discussão de trânsito pode se tornar o estopim de uma grande briga. Isso faz parte de uma concepção de sociedade cada vez mais individualista, onde aqueles que não fazem parte dos meus próximos são vistos como inimigos ou concorrentes em potencial.”

Cultura de paz

Para o coordenador do Fórum de Lajeado, o juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, os pedidos extremos por combater a violência com mais violência não garantem segurança. Para embasar a afirmativa, analisa o sistema carcerário do país.

Na opinião do magistrado, o poder punitivo estatal deve ser direcionado para crimes graves. “A solução para reduzir a violência não está na construção de mais cadeias. O que falta hoje é propagarmos a pacificação social.”

O juiz Johnson realça a necessidade de um esforço coletivo, desde a família, escola, comunidade e instituições públicas para dar guarida a justiça restaurativa. “Enquanto não houver políticas voltadas para a paz, a sociedade ficará mais violenta.” Em Lajeado, diz o juiz, um grupo de 40 pessoas passa por treinamentos sobre justiça restaurativa.

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Intolerância aumenta na crise

Para o magistrado, o momento de instabilidade no país gera mais intolerância. “Vivemos várias crises. A institucional, econômica e política. Isso aumenta a desigualdade. Com isso, brotam reações como torturas e vinganças.”

Apesar do chamado exercício arbitrário das próprias razões (justiça com as próprias mãos) estar presente em diversos momentos históricos, com a incursão tecnológica, atos como esse ganham mais visibilidade e proporção, afirma Johnson.

Em específico ao caso da agressão contra o menor, o magistrado frisa que os homens foram mais violentos do que o infrator. “Houve um ato infracional. O furto. Contra o autor, foi ultrajada sua integridade física, com tortura, lesões corporais.”

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Segundo ele, essa é a tendência do revanchismo. “Abre-se um risco de cometer injustiças. Pois os casos de linchamento e torturas acontecem sobre pessoas sem proteção, com um histórico de vulnerabilidade social.”

“Tortura com roupagem de “ato de justiça”

A professora de Psicologia da Univates, especialista em Saúde Mental e Terapia de Casal e Família, Pâmela Machado, avaliza que a sensação de insegurança e de impunidade gera no imaginário coletivo a necessidade de as vítimas de algum crime tomarem para si o papel de aplicar uma justiça “bárbara”. Para a pesquisadora, a sociedade não pode tomar para si esse papel, isso é incompatível com a democracia.

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A Hora – O ódio, a falta de tolerância e, por consequência, os excessos, estão presentes na sociedade. Apesar dos avanços nos campos dos direitos humanos, há grupos que cultivam valores primitivos. O que motiva isso?

Pâmela Machado – O estudo implicado da história da humanidade nos mostra que os acontecimentos são cíclicos e momentos que parecem fazer parte de um passado distante são atualizados com outras roupagens. Falar em ditadura e golpe nos remetia a 64 e hoje presenciamos o movimento das diretas em 2017. Nesse sentido, a questão não é que estamos regredindo, mas que essas forças conservadoras, preconceituosas e perversas seguem atuais e presentes em nossa sociedade. Principalmente quando estamos em um cenário de construção de uma democracia mais efetiva, se observa que estas forças aparecem ainda mais potentes e destruindo qualquer perspectiva de mudança. Então, é preciso se questionar se de fato evoluímos ou apenas produzimos alguns passos que na verdade pouco nos deixam sair do mesmo lugar. Será que mudamos nossos valores em algum momento ou apenas disfarçamos esses valores primitivos?

Esse comportamento pode induzir a novas ações semelhantes?

Pâmela – Pode, se isso não for problematizado e debatido na dimensão necessária. É preciso falar sobre tortura, que é o ato realizado com este adolescente. Tortura que vem ocorrendo no Brasil desde sempre e assumindo diferentes roupagens, inclusive como “ato de justiça”. No entanto, creio que existe uma mobilização que busca desnaturalizar a concepção de tortura como algo aceitável em nossa sociedade.

Como podemos alterar esses valores?

Pâmela – É importante ressaltar que vivemos em uma sociedade capitalista que tem como valores a competição, o individualismo, o controle e a exploração do outro. Infelizmente não teremos como fugir disto. No entanto, é preciso desnaturalizar o que entendemos como normal, natural. A tortura, por exemplo, não pode ser algo aceitável ou dito como normal. É preciso falar que esses atos e tantos outros do cotidiano são violências. No momento em que eu violo o direito do outro, isso é uma violência.

Muitas pessoas me criticam quando defendo a concepção e a efetivação dos direitos humanos e sempre me questionam: E se fosse um familiar seu? Eu respondo: Isso me daria o direito de ficar com raiva, e para isso deveria ser acionado o Estado por meio da instância jurídica. No entanto, os direitos humanos não servem para “salvar vagabundo”, servem para que qualquer um de nós possa ser respeitado como cidadão, com ser humano, dentro de uma esfera democrática e equânime.

Dentro da concepção de “justiça com as próprias mãos”, imagine que seu filho de 13 anos brigou com o colega na escola. O pai desse colega se sentiu lesado e decidiu agredir fisicamente seu filho de 13 anos. Qual seria o problema? Afinal, qual a concepção de justiça de cada um? Isso é a barbárie.

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