Certezas ameaçam o  conhecimento, diz Rovelli

FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Certezas ameaçam o conhecimento, diz Rovelli

Em palestra no Salão de Atos da UFRGS, físico italiano Carlo Rovelli abriu a edição 2017 do Fronteiras do Pensamento. Ao abordar a própria paixão pela ciência, ele alertou sobre os perigos da negação ao contraditório.

Certezas ameaçam o  conhecimento, diz Rovelli
oktober-2024

“O pensamento científico é necessariamente crítico e rebelde.” A frase do autor do best-seller 7 Breves Lições sobre a Física resume o caminho trilhado no desenvolvimento da ciência ao longo da história da humanidade.

A abertura do Fronteiras do Pensamento teve conexão direta com o tema do evento deste ano: Civilização – a sociedade e seus valores. Conforme o pesquisador, a ciência nasce a partir do momento que a humanidade passa a questionar o mundo em que vive.

Conforme Rovelli, durante milênios, a única percepção sobre o universo era a existência de uma separação entre o céu e a terra, um em cima e outro embaixo, e as explicações sobre fenômenos físicos e astronômicos partiam das religiões.

Essa visão de mundo perdurou sem ser questionada até o século 500 A.C. Foi quando o pensador Anaximandro de Mileto, ao observar a rotação do sol e da lua, chegou à conclusão de que a terra era uma massa suspensa no céu, e que os dois astros se deslocavam nesse mesmo espaço.

“Ao retornar para a praça de Mileto e apresentar sua conclusão, quase ninguém acreditou, pois essa visão contrariava tudo o que se entendia enquanto verdade”, ressalta. Conforme Rovelli, essa narrativa mostra o nascimento do pensamento científico.

A verdadeira ciência, explica, só existe a partir do questionamento das verdades consolidadas na busca por um novo conjunto de elementos que mudam a forma como enxergamos a realidade. É a partir dessa premissa, aponta, que a humanidade pode criar desde soluções tecnológicas até as novas formas de compreender o universo.

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Para Rovelli, o senso comum e os dogmas religiosos são os principais motivos para as reações contrárias ao desenvolvimento da ciência. “As pessoas buscam na religião e nas ideologias o conforto da certeza em um mundo de incertezas.”

Conforme o pensador, esse conformismo não pode impedir o pensamento crítico. Afinal, acredita, o mundo descoberto por meio da ciência é infinitamente mais complexo, belo e brilhante do que os contos de fadas.

Relatividade quântica

O estudioso fez um relato dos diferentes avanços no estudo da física até chegar nas teorias contemporâneas da relatividade, descoberta por Albert Einstein, e quântica, de Werner Heisemberg. Para ele, os temas considerados difíceis para boa parte da população são simples, mas ensinados de forma errada nas escolas.

Na teoria de Einstein, explica, o tempo e o espaço formam um campo elástico que se curva de acordo com a existência de massa. Já a física quântica defende que tudo o que existe, seja matéria ou vazio, é composto por minúsculas partículas chamadas de “quanta”.

“As duas funcionam para explicar diferentes aspectos da realidade, tem o problema de não serem compatíveis”, ressalta. O trabalho teórico desenvolvido por Rovelli e outros grandes nomes da física visa justamente sintetizar e conectar as duas teorias.

“Estudamos uma realidade cujo espaço, o tempo e a matéria são granulares, pequenos e densos, formando o próprio universo”, explica. Outro conceito da teoria da gravidade quântica é relativo à origem do universo. Por ela, o Big Bang não é o início, e sim um ponto de compressão de todas as partículas de um universo anterior, que teria se replicado após a grande explosão.

Fronteiras do Pensamento

Criado em 2006 pela Brasken, o Fronteiras do Pensamento visa oferecer ampla compreensão das mudanças sociais, econômicas, culturais e políticas do mundo contemporâneo por meio de palestras com os principais pensadores da atualidade.

A iniciativa ocorre anualmente em Porto Alegre e São Paulo, com edições especiais em Salvador e Florianópolis. Neste ano, além de Rovelli, a capital gaúcha recebe nomes como Amos Oz, Thomas Pikkety, Gilles Lipovetsky e Eduardo Giannetti. As palestras ocorrem mensalmente até dezembro, e serão acompanhadas pelo A Hora.

O pensamento simplista é muito perigoso”

De onde nasce a sua paixão pelos os mistérios do universo e como despertar o interesse dos jovens pela ciência?

Carlo Rovelli – Aprendi basicamente sozinho, por meio de livros. Frequentei boas escolas e universidades, mas nunca gostei. Mesmo na universidade, preferia não frequentar as aulas. Fui em algumas, onde estavam os melhores professores, aqueles que mostravam paixão pelo que faziam. Mas a maior parte do tempo estudei sozinho. Os livros dão a liberdade de descobrir uma imensidão de coisas novas. Acho importante que o professor possa comunicar melhor, e não apenas o conteúdo da disciplina, porque isso é fácil, está nos livros. Mas que ensine com emoção e tenha paixão pelo assunto. Vejo estudantes que aprendem facilmente quando são tocados pela paixão do professor. Se tentarem ensinar algo de uma forma entediante, os jovens não terão nenhum interesse.

Carlo Rovelli

Carlo Rovelli

Por que as descobertas científicas da humanidade enfrentaram resistência ao longo da história?

Rovelli – Se pegarmos como exemplo a biblioteca de Alexandria, ela nasce do conceito de coletar em um único lugar todo o conhecimento existente no mundo. Tivemos esse imenso espectro de conhecimentos diversos. Até mesmo a bíblia surge em Alexandria quando decidiram juntar diferentes textos sobre o povo judeu. Em algum ponto, a civilização desistiu desse conceito multicultural. A união dos diferentes conhecimentos foi trocada pelo caminho da uniformidade, da supressão. Tivemos uma carência de culturas válida. Se continuarmos desrespeitando as culturas diferentes, teremos problemas. O pensamento simplista é muito perigoso. Hoje temos um forte movimento no mundo de pessoas que dizem para não acreditar na ciência, no pensamento racional e em fatos. Isso é um desastre.

Esses movimentos representam um perigo real aos avanços da civilização? 

Rovelli – Esse risco é real e fica ridiculamente sério diante das guerras. Não podemos esquecer que no último século a humanidade matou 70 milhões de pessoas. O ser humano é estúpido. Ele faz essas coisas, e pode fazer de novo. É completamente absurdo, mas as pessoas vão para a guerra regadas de nacionalismo e partem para a agressão mútua em um conflito armado. Ao mesmo tempo em que penso que o mundo é grande demais para que o conhecimento se perca, percebo essa fragilidade.

Alguns estudiosos falam sobre a possibilidade de chegarmos a uma teoria de tudo, e que os físicos descobririam dessa forma a existência de Deus. Qual sua opinião sobre isso?

Rovelli – Achar que sabe tudo é típico das pessoas que pensam muito pequeno. Quanto mais você descobre coisas, mais você percebe as perguntas que estão abertas nas mais diferentes direções. Então estamos cada vez mais longe de uma teoria de tudo, e acho que Deus não tem nada a ver com isso. Mesmo sendo ateu, acredito que Deus é algo extremamente importante para as pessoas. Porque representa algo real para muita gente, assim como é enormemente importante para a história das civilizações. Porque tem a ver com algo que temos dentro de nós, a nossa luz interna. Mas tentar confundir isso com como o universo começou ou funciona significa misturar coisas que não têm nenhuma relação.

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