Quando o hobby assume  o lugar da profissão

Comportamento

Quando o hobby assume o lugar da profissão

“Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida.” O ensinamento de Confúcio serve de motivação para pessoas que resolveram mudar de atividades.

Quando o hobby assume  o lugar da profissão
Vale do Taquari
oktober-2024

O futuro da vida profissional, por vezes, ocorre de uma maneira diferente do planejado. A escolha por um trabalho com melhor remuneração, ignorando a aptidão para determinada atividade, interfere na qualidade de vida. Como consequência, profissionais frustrados executam tarefas sem afinco, ampliando as chances de contrair doenças relacionadas as atividades laborais, como o estresse e depressão.

Cátia Schnorr foi professora de escola infantil, também trabalhou na Justiça Eleitoral. Ela tentava ingressar por meio de concurso público, mas não conseguiu a aprovação. Quando terminava o expediente no cartório, às 19h, dedicava o tempo para aquilo que mais gostava, cozinhar.

Em 2005 largou de vez o trabalho no cartório e foi em busca do sonho. Começou a ensinar outras pessoas a cozinhar. A forma como falava das receitas, relacionado-as com a vida, encantaram os participantes. A aptidão à cozinha era natural nela.

Logo apareceram os primeiros resultados. Uma loja de móveis e eletrodomésticos a contratou e nasceu o “Show de Cozinha”. As oficinas itinerante passaram a ser divulgadas por diversas cidades do RS.

O público que assistia as oficinas triplicou. Depois, passou a ser realizado em espaços cada vez maiores, pois as reservas sempre se esgotavam. Catia percorria dez cidades por mês e chegou e dar oficinas para públicos de até 500 pessoas.

Em algumas cidades, havia turmas na tarde e pela noite. “Ficava com pena das pessoas na fila, então pedi uma câmera e um telão.”

O Show de Cozinha tinha uma camioneta onde Catia levava tudo o que precisava. “Eu mesmo montava o palco, me arrumava e apresentava.” Vendia ainda, as marcas das panelas de cerâmica em que cozinhava. E passou a vender muito.

Essa fábrica procurou a produção do programa. Queriam saber os segredos daquela iniciativa. Presenciaram uma apresentadora entusiasmada, que conseguia fazer o público rir e chorar com as reflexões sobre a vida. Não era só receita que chamava atenção.

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Superação

A história de Cátia poderia ter um outro desfecho. Foi abandonada pela mãe e criada pela avó, que tinha sob a guarda mais dez filhos. Foi uma infância pobre no interior de Nova Bréscia.

Descendente de imigrantes italianos, a alimentação era simples, sem condições para luxos como bolos, tortas ou outras guloseimas.

Quando Cátia completou 4 anos, a família se mudou para o bairro Bela Vista, em Arroio do Meio. A realidade era outra. Fez amizade com as crianças da redondeza. Na casa dos vizinhos, conheceu pratos que aguçaram o seu paladar. O sabor do bolo de laranja ficou na memória.

As brincadeiras com as crianças do bairro eram saborosas no meio da tarde. Isto porque sentia o cheiro de bolo. “Ficava salivando e ia na brincar na vizinha para comer um pedaço.” Aos 9 anos aprendeu uma lição que mudou sua vida. Edy, a vizinha e amiga da família, estava atenta à curiosidade da criança e passou a receita e ensinou a menina a preparar o famoso bolo de laranja.

As laranjas, ovos, fermento, xícaras de açúcar e farinha, além das claras em neve foram por pequenas mãos misturadas com entusiasmo. “Minha inspiração era mesmo a vontade de comer.”

Cátia foi registrada aos 4 anos e ela mesma escolheu o nome, inspirada em uma personagem de uma rádio-novela. Aos 16, a avó morreu e ela foi morar com o namorado, hoje marido. “Aprendi a pagar as contas desde muito cedo. Comi muito pão com ovo para chegar onde cheguei.”

Cozinha na net

Se desde criança a obrigação da Cátia era com os afazeres domésticos, cozinhar era o happy hour depois do trabalho. Ela não entendia nada de reprodução de imagem, vídeos e fotos. O filho passou a orientá-la.

Ao concluir o Ensino Médio, ele não quis fazer faculdade. Então, a mãe o levou para viajar. “Começou a ser meu câmera e a produzir vídeos das minhas oficinas.” Aos poucos, as primeiras gravações das receitas passaram a ser seguidas e comentadas na web. Quando percebeu, já tinha 300 mil visualizações e o número não parou de crescer. Hoje, mais de 1 milhão de pessoas já viram seus vídeos no canal no Youtube. Tem ainda página no Facebook, vlog, site e no Instagram.

Faz três anos ela deixou o programa Show de Cozinha e passou a postar as receitas na internet. Seguiu o modelo das oficinase conquistou fãs de todas as idades em diversas regiões do país. Ela atribui o sucesso dos cursos de cozinha online a publicitária Ana Laura Neumann. “Se você quer fazer bem feito, junte-se aos melhores.”

Melissa e Cleo Fontanella renderam-se às bijuterias e hoje  abrem mercado em Guaporé

Melissa e Cleo Fontanella renderam-se às bijuterias e hoje
abrem mercado em Guaporé

Formação de grupos

Cátia realizou um antigo desejo de comprar a casa onde iniciou as primeiras receitas. Hoje, as oficinas de cozinha são concorridas. Só com agendamento.No quadro ao lado do fogão, a agenda exposta mostra o quanto tem de trabalho pelos próximos meses.

Afirma que hoje, não cozinha pratos, mas cria experiências gastronômicas. As parcerias firmadas com grandes empresas da região possibilitam manter os canais com publicações periódicas. Uma maneira de oferecer uma receita nova a cada semana.

Hobby que virou profissão

Melissa Andreazza Fontanella, 40, ainda era criança quando viu a apresentadora Xuxa de cabelos cortados, usando tiara de miçanga. A imagem lhe deu uma ideia: era possível fazer acessórios em casa. A primeira produção chamou atenção na sala de aula. As colegas queriam uma também.

Mas a história de superação de Melissa começou em 1996, ano em que um câncer no esôfago matou o pai. Meses depois, passou no vestibular para Arquitetura na Unisinos. “Foi um divisor de águas. Tinha tudo de mão beijada e de repente, perdi o apoio financeiro do pai.”

Como sempre gostou de fazer as próprias bijuterias, passou a produzir para vender aos colegas e amigos, a fim de pagar a faculdade. Ela seguiu trabalhando em estágios e estudando. Não podia fazer muitas disciplinas, por isso levou 12 anos para se formar. A Arquitetura era o sustento da família.

Entre o trabalho e o prazer

As demandas no trabalho consumiam todo o tempo. A pressão do mercado, da concorrência e dos próprios colegas causaram uma decepção em Melissa. Não era isso que esperava na Arquitetura. “Não gostava mais daquilo, estava infeliz. Mas naquela época ainda era tabu fazer o que se gosta.”

Depois de uma viagem, decidiu que não iria mais voltar ao trabalho. Largou o emprego para voltar a se dedicar às bijuterias. O primeiro passo era convencer a mãe, Cleo Fontanella, 67. O apoio dela, foi fundamental. As primeiras encomendas eram personalizadas. “Quando queriam ir em uma festa, combinavam a bijuteria com o vestido.”

As empresas locais se interessaram pelas peças e conseguiu estabelecer uma clientela fixa. Hoje Melissa atende sete estabelecimentos e mantém mais 12 vendedores externos. A produção diária chega a uma média de 50 por dia, alcançando no mínimo, 800 peças por mês.

Segundo a mãe, a graduação serviu muito para inspiração da filha. “Ajudou na sensibilização para usar as peças e as cores com cuidado e bom senso.” Melissa é convidada a dar workshops e palestras para contar a história.

“Pode ser que a insatisfação esteja relacionada mais a como se atua e a solução não será mudar de carreira.”

Planejamento profissional

Daniela Munhoz é psicóloga e master coach (Sbcoaching), especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho (CFP) e Terapia Cognitivo Comportamental (IWP). Faz 18 anos desenvolve trabalho de orientação e desenvolvimento de carreira.

Você – Para quem planeja a vida profissional, como buscar o prazer e o trabalho ao mesmo tempo?

Daniela Munhoz – O ponto fundamental para vivenciar prazer na atividade profissional é o alinhamento dos valores pessoais com aquilo que se faz. Assim é possível encontrar sentido, propósito e engajamento, motivações que proporcionam bons resultados. É preciso avaliar escolhas e pesar os motivos que orientaram a decisão. No cerne desses motivos, estão os valores, aquilo que é prioridade, que não se pode abrir mão. As habilidades também são foco de atenção. Aquilo que se sabe fazer bem, naturalmente.

A escolha de uma carreira, por vezes se mostra equivocada. Que importância tem essas experiências para encontrar a satisfação e o reconhecimento?

Daniela – Tanto as experiências positivas quanto as negativas servem como um termômetro ou referência para identificar aquilo que se gosta ou não. O importante é fazer um balanço de cada situação, numa conversa íntima sobre o que foi positivo ou negativo e o que pode aprender com cada uma delas. O reconhecimento é algo externo e nem sempre depende da atividade em si. Depende do olhar do outro. Por outro lado, é papel do profissional se fazer reconhecer, não ser passivo. É você quem constrói sua carreira.

Até que ponto as frustrações no trabalho provocam a desistência do ofício?

Daniela – Se os pontos anteriores foram bem identificados e estiverem relacionados de forma coerente, é mais fácil lidar com as dificuldades sempre presentes. Pergunte: se houvesse alguma forma de permanecer com os pontos fortes e minimizar os fracos, eu estaria satisfeito? A resposta pode lhe dar um norte sobre o que mudar e como mudar. Pode ser que a insatisfação esteja relacionada mais a como se atua e a solução não será mudar de carreira.

Você – Quando é hora de repensar as prioridades e traçar um novo caminho?

Daniela – Quando a resposta da insatisfação estiver relacionada ao que você faz, à essência da formação ou profissão. É quando não está alinhada aos valores pessoais, às habilidades ou aos interesses. É possível repensar e redesenhar os caminhos. Algumas vezes as mudanças são mais sutis e noutras mais drásticas.

Você – As novas gerações têm cada vez mais escolhido atividades que possibilitem rotinas alternativas, sem a necessidade de um expediente fechado. Até que ponto esse comportamento interfere no sucesso profissional? E como o imediatismo dessa geração atrapalha para dar sequência à carreira profissional?

Daniela – Vive-se um momento de mudança na forma de ser, estar, pensar e sentir que são representadas pelas novas gerações, sejam elas Y ou Z. O que os jovens desejam é algo para além da tarefa, é dar um sentido ao fazer. Ocorre que os modelos tradicionais de “trabalhar” ainda não “estão” compatíveis com esse formato. É preciso uma desconstrução do trabalho e isto não ocorre instantaneamente. Exige criar novas formas. O almejado pelos jovens é muito coerente com a ideia integrada de ser humano. Hoje temos enorme velocidade presente, seja nas coisas, nas informações, na necessidade de resultados e outras tantas situações. Os jovens são diretamente afetados pelo senso de urgência. Como saída, estão construindo formas alternativas e novas de resolver a necessidade do imediatismo, priorizando a satisfação no trabalho.

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