Monte Aconcágua: até onde a força alcançar

Caminhos

Monte Aconcágua: até onde a força alcançar

Os amigos Sandro Haetinger Santos e Fernando Blau enfrentaram o desafio de escalar a maior montanha das Américas

Monte Aconcágua: até onde a força alcançar
Vale do Taquari

Muitas gente se pergunta: o que move o ser humano a largar o conforto de casa? O que o leva a abandonar a comodidade e o aconchego das cidades e das curtas distâncias, os desejos facilmente realizáveis, o consumo rápido e prazeroso, a segurança das relações, dos cenários projetados? O que conduz o ser humano a caminhos tão árduos, lugares tão inóspitos?

O geólogo Sandro Haetinger Santos e o médico Fernando Blau, de Lajeado, já estiveram, muitas vezes, diante desses paradoxos. “Mecanismos psíquicos racionais e emocionais são desencadeados para justificar o processo de decisão e anunciar para si e para os outros que tal caminho vai ser seguido”, lembra o médico.

Os amigos resolveram explorar o montanhismo na região do Aconcágua, na Argentina, para pensar a respeito de tais questões. Para eles, é diante desses caminhos que se revelam possibilidades para o desenvolvimento das capacidades humanas.

“As mais variadas formas de expressão da sensibilidade, quando exercidas nos caminhos da montanha, são potencializadas. Vão muito além dos aspectos conhecidos no cotidiano da baixa altitude”, conta Blau. “Quem procura a aventura nesses locais em que a realidade se manifesta percorre paralelamente um árduo caminho interior, cujo resultado final é a redescoberta da real dimensão da vida”

Em Aconcágua, não é raro encontrar restos mortais de sacrifícios humanos, bastante preservados em função das condições meteorológicas e da altitude. “Vivenciamos a morte de um italiano por edema pulmonar. Ao presenciar o helicóptero do resgate sobrevoar sobre nós, senti as energias pesarem e as pessoas se tornarem igualmente instáveis.”

Para eles, o Aconcágua manifesta a chamada realidade extrema. “Ela surge com tamanha força que não podemos suportá-la. É tão intensa e aguda que ultrapassa a própria realidade. Os homens sacrificam suas ilusões no altar mais alto da América e, muitas vezes, perdem também sua alma.”

O geólogo Sandro Haetinger acompanhou a caminhada de Blau no trajeto. Enfrentou com humor o solo árido e o frio extremo para chegar próximo ao cume

O geólogo Sandro Haetinger acompanhou a caminhada de Blau no trajeto. Enfrentou com humor o solo árido e o frio extremo para chegar próximo ao cume

Trajeto singular

Ao desembarcar do aeroporto do Parque Nacional Aconcagua, em Buenos Aires, e após tomar um café na companhia de Santos, Blau iniciou um pequeno diário. Ainda “bêbado” com a visão da realidade e a possibilidade do destino, pensou que talvez caminhar pelas trilhas inóspitas dos Andes pudesse ser exatamente o trajeto de ligação entre o seu “eu” egoísta e “eu” superior. “Atingir o extremo chega-se ao equilíbrio, ou será apenas o forte impulso que me conduz?”, refletiu.

Em Mendoza, os amigos largaram os equipamentos no hotel para conhecer a cidade, caracterizada por plátanos, ruas e praças bem cuidadas. No centro, alugaram o que faltava em lojas de montanhismo.” De lá, embarcaram em um micro-ônibus urbano. “Na direção sul da autoestrada, passando por muitos parreirais. O solo começava a mostrar sua aridez original. No início da pré-cordilheira, o deserto era total.” Dentro do transporte, avistaram as encostas, as altas montanhas e o Rio Mendoza, com suas corredeiras especiais para rafting. “Os 180 quilômetros entre Mendoza e Penitentes, na entrada do Parque Nacional Aconcagua, foram percorridos rapidamente. A paisagem apresenta uma árida monotonia, mas com incríveis variedades de cores”, lembra.

A partir desse ponto, enfrentaram as primeiras provas física e psicológicas do trajeto. “O vento predominante, para não dizer constante, é o oeste, que vem da direção do Chile. A vegetação, quando a encontramos em pequenas ilhas, é baixa, herbáceo”, anotou o aventureiro.

Os amigos Sandro e Fernando subiram até a base Berlim. Este é o último acampamento antes de chegar ao cume do Aconcágua, na Argentina

Os amigos Sandro e Fernando subiram até a base Berlim. Este é o último acampamento antes de chegar ao cume do Aconcágua, na Argentina

Acampamento congelante

O primeiro acampamento ficava a oito quilômetros da entrada do parque e a três mil metros. “Chama-se confluência: onde as águas do degelo dos glaciares Horcones afluem. Ao chegarmos, montamos nossas barracas, improvisamos uma cozinha.”

À noite, a temperatura despenca vertiginosamente. “Comecei a usar a terceira pele por baixo. Minha garganta se contraía engolindo o ar seco, minha cabeça latejava pedindo trégua. O frio aumentava, entediei-me próximo das 9h e entrei na barraca para descansar um pouco e abrigar-me do vento congelante”, conta Blau.

No outro dia, os amigos saíram cedo. “A desolação do terreno é completa: pó e pedra. À direita, paredões graníticos, à esquerda, o imenso glaciar que mistura gelo e terra em suas falésias escarpadas pela erosão dos ventos e chuvas”, conta. A medida que subiam, o grande maciço de gelo e rocha mostrava a sua verdadeira dimensão. “Como nos caminhos do Himalaia, aqui também os caminhantes colocam pequenas pedras, uma sobre as outras, para saudar os espíritos da montanha e também, simbolicamente, deixar seus pesos e apegos.” No fim, estavam face a face com o portal mais impressionante da imensidão: o sul do Aconcágua.

No campo base, também chamado de Plaza de Mulas, a aridez e a desolação são tão marcantes e impositivas sobre o estado físico e psicológico das pessoas, que cerca de 70% dos que entram no parque retornam desse ponto. “Minha aparência era simplesmente lamentável: cabelo empoeirado, ressecado. A pele do rosto, apesar de protetor solar 50, apresentava manchas de queimadura.” Blau estava com os lábios rachados, as pálpebras inchadas, os olhos vermelhos, feições contorcidas de exaustão. “Após pagar dez dólares e esperar na fila com uma ficha na mão, pude ter cinco minutos de briga com a água escaldante e o chuveiro mal rregulado”, recorda. A recompensa veio à noite. “Pela janelinha da barraca, nunca havia visto um céu tão estrelado.”

Ilusão de ótica

De manhã, os aventureiros tiveram a impressão de que o cume estava logo ali. “Foi uma ilusão de ótica, pois ele estava a dois mil metros acima”, lembra Blau. Ao contemplar a a vista, imaginou que, quanto mais alto, mais belo seria. “Mais um pouco e os rochedos de Plaza Canadá me aguardavam, em cinco mil metros de altitude. Subimos mais e fomos até Berlim, último acampamento antes do cume”, explica.

No jantar, surgiu a dúvida. “ Conversamos sobre a situação. Com o abalo psíquico e desgaste físico, resolvemos voltar a um passo do cume.” A decisão surpreendeu alguns amigos que fizemos o mesmo caminho. “As dificuldades para chegar ao cume e a descida nos lembram da insignificância do homem. Às vezes, nos é permitida a glória e, noutras não”, avalia.

Primeiro acampamento fica a oito quilômetros da entrada do Parque Nacional do Aconcágua e a três mil metros. No local, a temperatura é muito baixa

Primeiro acampamento fica a oito quilômetros da entrada do Parque Nacional
do Aconcágua e a três mil metros. No local, a temperatura é muito baixa

Sensação interior

A partir dali, Blau passou a refletir. “Até onde a determinação se mistura com a obsessão, qual a diferença entre realizar um sonho, um desejo, um objetivo?” Para ele, ficou a sensação de que não pode escalar sua montanha interior. “Se tivesse chegado ao cume, certamente estaria exultante, como outras vezes anteriormente. E como antes, também estaria projetando mais um cume”, pensa. “Por isso, o meu cume fica um pouco abaixo de onde eu estive, entre o orgulho justo de superar-se e a humildade de me reconhecer muito aquém do que meu ser realmente pode alcançar”, resume.

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