Aldeia global, ajuda local

Comportamento

Aldeia global, ajuda local

Organização Médico Sem Fronteiras conta com expertise de profissionais como o lajeadense Samuel Johann

Aldeia global, ajuda local
Vale do Taquari
oktober-2024

Mais de 36 mil profissionais espalhados por 70 países estão envolvidos na Médicos Sem Fronteiras (MSF). Com escritórios espalhados por 28 países, inclusive no Brasil, a organização de ajuda médico-humanitária leva cuidados de saúde a pessoas com necessidades, em meio a conflitos armados, epidemias, desastres naturais e exclusão do acesso à saúde.

Os 446 projetos possuem a contribuição de pessoas capacitadas, como o lajeadense Samuel Johann. Ele está envolvido na logística da corporação, que possui mais de 5,7 milhões de doadores mundiais, dos quais quase 360 mil são brasileiros. Johann esteve na Guiné, durante a epidemia de Ebola, em 2015. Também trabalhou em Moçambique, onde a organização realiza projetos relacionados à epidemia de HIV e tuberculose. No ano passado, permaneceu no Sudão do Sul e na Nigéria, dois países onde a MSF se dedica a proporcionar cuidados de saúde gratuitos a populações atingidas por conflitos armados.

O objetivo das operações é sempre voltado para a saúde, mas existe um grande esforço logístico administrativo para viabilizá-las. “Enquanto profissional de logística, minha missão é tornar possível ou aprimorar as condições do trabalho realizado pela equipe médica, sobretudo a infraestrutura.” Não se trata de uma mera experiência, trata-se de uma escolha de carreira e de vida. “É impactante no começo, mas depois você se acostuma a estar em constante movimento e adaptação. É necessário reinventar-se a cada projeto, pois as especificidades do trabalho mudam, assim como a cultura local.”

Alguns projetos ocorrem em ambientes de tradição muçulmana, uma cultura que Johann ainda está descobrindo. “Há locais em que o contexto de segurança nos permite ter uma vida social parecida com a do Brasil, já em outros ficamos restritos à nossa base e alguns locais autorizados, considerados seguros.” Durante a epidemia de Ebola, as regras de biossegurança eram tão rigorosas que qualquer contato físico era terminantemente proibido, mesmo um aperto de mão. As ações se passam em grandes centros urbanos ou em pequenos vilarejos. O idioma também pode variar. “Trabalhei em projetos cuja língua oficial era o inglês, o francês ou mesmo o português.”

20160720_160746Suporte à generosidade

Antes de trabalhar para a MSF, Johann achava que se tratava de uma organização apenas para profissionais da saúde. “Percebi que os contextos onde trabalhamos muitas vezes carecem de elementos que aqui consideramos ‘garantidos’ e que são fundamentais para fornecer atendimento médico de qualidade: construções, água, transporte, controle dos estoques, gestão dos equipamentos médicos, somente para citar alguns.”

No Sudão do Sul, por exemplo, atuava em um local pantanoso inacessível por veículos terrestres, sem materiais para construção ou eletricidade. Num dia típico, encontrava os médicos e enfermeiros se ocupando dos pacientes, enquanto a equipe de logística estava transportando, de avião e de barco, os medicamentos e outros suprimentos. Resolviam problemas nos geradores para manter o fornecimento de eletricidade ao hospital, e realizavam manutenção das tendas e casas de barro. “Já no nordeste da Nigéria, muito do nosso tempo era dedicado ao fornecimento e tratamento de água potável e condições de saneamento básico aos hospitais geridos pela MSF, bem como a implementação e supervisão das regras de segurança para proteger os pacientes e os profissionais.”

Impacto na comunidade

A organização age em situações onde a população não tem acesso aos cuidados de saúde de que necessita. “O impacto pode ser imediato ou a longo prazo, depende do perfil da crise e do tipo de projeto.” No nordeste da Nigéria, o conflito armado gerou uma crise nutricional desastrosa que, segundo Johann, interrompe a vida de muitas crianças. “Lá, fornecemos hospitalização e tratamento ambulatorial para crianças desnutridas. Salvar suas vidas de maneira imediata.”

Em Moçambique foi diferente. “Atuamos no tratamento de pessoas com HIV e tuberculose, tendo um impacto a longo prazo. Mas o objetivo final é sempre o mesmo: diminuir a taxa de mortalidade e aliviar o sofrimento da população local.”

O lajeadense participa do centro de tratamento de Ebola na Guiné

O lajeadense participa do centro de tratamento de Ebola na Guiné

Dificuldades em campo

O projeto de Johann conta com uma equipe composta por profissionais nacionais e internacionais, que resulta em visões diferentes sobre métodos e estratégias de trabalho. “O legal é que essas discussões são sempre a respeito de qual a melhor forma de levar cuidados de saúde aos nossos pacientes. Ou seja, apesar de todas as nossas diferenças, partilhamos do mesmo objetivo.”

As maiores dificuldades enfrentadas no campo de trabalho são as mesmas que geraram as crises humanitárias, em primeiro lugar. “Um exemplo é o conflito armado. Ele não só priva as pessoas de sua vida cotidiana e do acesso à saúde básica, mas também é um obstáculo para a nossa atuação.” Cita como exemplo o nordeste da Nigéria. “Estima-se que haja milhares de pessoas com necessidade de ajuda humanitária urgente em áreas atualmente inacessíveis por causa do conflito. Chegar até elas, neste momento, colocaria nossas próprias equipes em um nível de risco inaceitável.”

VOCÊ – Quais são as experiências que marcaram sua trajetória na organização?

Samuel Johann – Há diversos episódios marcantes em cada projeto. Mas foi no Sudão do Sul onde passei pelos momentos mais singulares. Certa vez recebemos a notícia de uma gestante com complicações no parto, residente de um pequeno vilarejo a algumas horas de distância do nosso hospital. Imediatamente preparamos nosso barco-ambulância e levamos um enfermeiro até sua vila. Na visita, o enfermeiro decidiu que deveríamos levá-la conosco ao hospital, onde teríamos melhores meios para lidar com o caso. Mas, no caminho de volta, dentro do barquinho, a bolsa se rompeu. E foi assim que, em uma tarde de sol, dentro do nosso barquinho flutuando em um afluente do Rio Nilo, cercada por uma equipe prestativa e preocupada, nasceu uma criança linda e saudável. Não em um hospital com toda a estrutura que ela e sua mãe mereciam, mas pelo menos assistida por um profissional da saúde.

VOCÊ – De que maneira seu trabalho impacta na questão da vulnerabilidade humana?

Samuel Johann – A MSF impacta nessa questão de duas formas. A primeira é levando cuidados de saúde a pessoas afetadas por conflitos armados, desastres naturais, epidemias, desnutrição ou sem nenhum acesso à assistência médica com base apenas na necessidade independentemente da raça, religião ou convicção política do ser humano em necessidade. A segunda é chamando a atenção para as dificuldades enfrentadas pelas pessoas atendidas em nossos projetos.

VOCÊ – Que tipo de sentimento é necessário superar nesta jornada?

Samuel Johann – São muitos os sentimentos quando se está dentro de um projeto, em especial ao percebermos a vulnerabilidade e sofrimento das pessoas que atendemos. Frustração e sensação de impotência são comuns. Para garantir que lidemos com esses sentimentos de maneira sadia, a MSF oferece suporte psicossocial a suas equipes. Mas é bom lembrar que nós trabalhamos nestes contextos por vontade própria, enquanto que nossos pacientes são prisioneiros de uma realidade que não escolheram, e que ameaça concretamente sua saúde física e mental.

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