Rua guarda drama, histórias e mágoas

Lajeado

Rua guarda drama, histórias e mágoas

“Eu sempre aprendi que somos todos iguais” Tio Chico. Tonico. Pelezinho. E o falecido “Seu Mané”, ou simplesmente, Manoel. Os atuais moradores folclóricos de Lajeado mantêm na essência as mesmas características dos antigos, como Tafu, “Seu Aldino” e Adão Querosene. São pessoas simples, que contam com a simpatia e solidariedade da população. Com idades avançadas, guardam histórias de vida que merecem ser compartilhadas

Rua guarda drama, histórias e mágoas
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“O momento mais feliz da minha vida foi quando assinei um contrato de cinco meses como garoto propaganda de uma loja de roupas. Eu arrebentei. Até autógrafo eu dava. Me pediam beijo, fotos. Mas durou pouco. E a maioria logo me esqueceu. Eu gostaria de uma nova oportunidade. Nunca mais me chamaram.”

O relato é de Marco Antônio Rodrigues, de 55 anos. Mas poucosconhecem ele pelo nome. Para boa parte da população lajeadense acostumada a ver aquele homem baixinho, de pele escura e calejada, e sempre caminhando ao lado da bicicleta com alguns cachorros, ele é chamado apenas por “Tonico.”

Nasceu em Lajeado, no bairro Conservas. Estudou no Colégio Castelo Branco. Nunca fora um aluno muito dedicado. “Gostava das molecagens. Mas sempre foi uma pessoa do bem”, relembra Ricardo Ewald, amigo dele de longa data, e hoje vereador suplente em Lajeado.

Tonico mora “na casinha que era da mãe”. Faz pouco mais de quatro anos, ela morreu devido a um problema de coração. “Não limparam bem o marcapasso dela. Então ela se foi. Morreu foi do coração”, emociona-se. Ele não confirma, mas amigos dizem que um irmão mais velho também mora na mesma casa.

A rotina de Tonico se repete faz anos. Costuma acordar por volta das 7h30min. Toma um café com leite e logo sai de casa para catar latinhas de alumínio. Após recolher certa quantidade do material reciclável, ele pedala – ou caminha ao lado da bicicleta – até Estrela. “Lá eu vendo as latinhas. Se vendo três quilos, ganho R$ 6,50. Consigo uns R$ 12 por dia”, calcula.

Depois da negociação no município vizinho, volta a Lajeado para engraxar sapatos e botas. Seu ponto fica próximo a esquina entre as ruas Júlio de Castilhos e Tiradentes, em frente a um supermercado. “Cobro até R$ 8 para uma bota maior. Mas para as menores, cobro R$ 3,50. É um preço justo”, divulga. No caminho até lá, ele passa na casa de amigos de infância, que o auxiliam com pequenas “mesadas”.

E no mesmo local onde trabalha como engraxate, ele pede mais esmolas. E é neste momento que passa por alguns constrangimentos, segundo ele. “Sei que ninguém tem qualquer obrigação de me dar dinheiro. Mesmo aqueles que possuem bastante. Mas o que mais me machuca é quando a pessoa sequer me olha na cara. Ou me xingam. Acho errado. Eu sempre aprendi que somos todos iguais.”

Tonico: Marco Antônio Rodrigues, de 55 anos

Tonico: Marco Antônio Rodrigues, de 55 anos

“Ainda vou arranjar uma namorada”

Tonico gosta de comer carne com arroz e mocotó. Gosta de melancia como sobremesa, e de um refrigerante para acompanhar. Mas o que ele mais quer mesmo é uma nova namorada. “Já tive várias mulheres. Já fui até “amigado” com uma lá de Encantado, com quem fiquei quase sete anos. Depois acabou”, resume.

Segundo Tonico, a relação entre eles resultou em uma filha, que hoje está com 20 anos. O engraxate e catador garante que a visita com frequência em Encantado, mas que nos últimos meses – em função do cancelamento de um benefício do INSS – ele não pôde ir por falta de recursos.

Sozinho, Tonico aguarda por um novo amor na vida. Garante não ter qualquer vício em bebida ou drogas. “Nem cigarro eu fumo.” Mas, para isso, ele acredita ser necessário trocar de cidade. “Aqui ninguém me quer. Eu preciso de uma mulher de fora. Acho que se eu for a Porto Alegre vou arrebentar. Eu ainda acredito que posso ter uma boa namorada”, afirma ele, enquanto cumprimenta diversos lajeadenses que passam em frente ao supermercado e o reconhecem.

Tio Chico: “Tio Chico”. “Paulo”. Ou “Adão Nunes Pinto”. Poucos sabem com precisão qual o nome deste senhor sem documentos que ficou conhecido na cidade pelas rimas e versos cantados em alto som pelas ruas centrais de Lajeado. Sátira com políticos resultou em agressões, lamenta ele.

Tio Chico: “Tio Chico”. “Paulo”. Ou “Adão Nunes Pinto”. Poucos sabem com precisão qual o nome deste senhor sem documentos que ficou conhecido na cidade pelas rimas e versos cantados em alto som pelas ruas centrais de Lajeado. Sátira com políticos resultou em agressões, lamenta ele.

“Eh, tchererê! Eh tchererê!”

Tio Chico é conhecido pelos versos rimados com teor político ou esportivo, o que lhe rendeu a simpatia de crianças e adolescentes, e a antipatia por parte de alguns políticos. Nascido em Guaporé – segundo ele –, trabalhava como agricultor, mas veio morar em Lajeado há cinco anos em busca de emprego.

Afirma que tem só 10% da visão, trauma adquirido há dois anos devido à uma crise de diabetes. Quando inciou a crise, tentou consulta médica, mas não conseguiu a tempo. Depois de ter a visão reduzida, passou a fazer versos críticos aos sistema e principalmente à administração municipal. Afirma ter recebido apoio de muita gente, mas nada substancial que lhe tirasse da miséria. A cegueira que alega lhe trouxe outras dificuldades.

Tentou disputar espaço com catadores de papelão. Não conseguiu. Pede esmolas nos semáforos e por vezes se arrisca no competitivo – e mal pago – trabalho junto ao lixo reciclável. Aos 55 anos, não tem esperança em conseguir um trabalho e se aposentar.

Segue com os versos políticos e a paixão pela música sertaneja. “Estou de olho no seu Caumo, se ele não andar na linha, faço verso”, ameaça em um tom de brincadeira.

O conteúdo hilário das rimas foi publicado no Youtube, Facebook e compartilhado em grupos de amigos do WhatsApp. “É engraçado, mas é coisa séria. Tenho três músicas novas para começar a cantar.”

A forma de inspiração vem quando algumas fontes lhe procuram para contar o que está acontecendo nos bastidores da política local. “Alguém sério me diz o que está acontecendo e eu faço a rima. Tenho este dom da trova e toco gaita. Canto por tudo. De noite e de dia. Tem gente que para o carro e pede para eu cantar.”

Certa vez, segundo ele, uma das músicas que fez endereçadas aos vereadores, resultou em represálias. “Apanhei e sofri ameaças. Mas faz parte. Eu me dou bem com todo mundo. Muitos me tratam bem. E sempre me comunico em forma de música.”

Chico diz ter cinco filhos. Seriam três mulheres e dois homens. Afirma, também, já ter netos. Lembra de quando jogava futebol. “Eu era um craque. Hoje não tenho nada. Mas graças a Deus não tenho vícios. Não bebo, nem fumo.”

Na esquina das ruas Benjamin Constant e Saldanha Marinho, enquanto aguardava a mais um sinal vermelho, Tio Chico foi abordado por um senhora de cabelos compridos e vestido longo. Passava das 15h. Helena Terezinha trazia um pastel de carne e uma garrafa de refrigerante. “Tio Chico, volta para a igreja. O senhor vai cantar para Deus.”

Chico agradeceu, pegou o pastel e começou a comer. “Eu não enxergo direito. Mas vejo que os mais humildes são os que mais ajudam.” Terezinha se despediu e reforçou o pedido. “Venha. Você vai ver que a vida não termina assim.”

Na última enchente, Chico perdeu muita coisa. Afirma que precisa de vestimentas e roupas de cama, além de comida. “Muitos nem baixam o vidro. Alguns me mandam trabalhar. Mas onde? Eu lembro que para o cara lá de cima, somos todos iguais.”

Casa de Acolhida será fechada

O novo secretário de Habitação e Assistência Social (Sthas), Lorival Silveira, informa que até março a Casa de Acolhida, aberta pela gestão passada em uma residência na rua Júlio de Castilhos, terá as atividades encerradas. O local foi inaugurado em junho do ano passado, após a morte de um morador de rua durante o rigoroso inverno. Em 40 dias, 20 pessoas encaminhadas para tratamento.

“Até lá, graças a boa vontade do proprietário do imóvel, não haverá custos de aluguel. A administração vinha gastando mais de R$ 25 mil com a Casa de Acolhida.

A intenção do novo governo, explica Silveira, é aumentar o repassa financeiro para o Abrigo São Chico, uma entidade particular conveniada faz anos com a administração municipal Hoje, o repasse é de R$ 32 mil mensais para o atendimento de até 30 pessoas. O secretário estima aumentar em R$ 15 mil o valor, para atender ao menos outros 15 sem-tetos.

Bruna Martins, Psicóloga do CAPS

Bruna Martins, Psicóloga do CAPS

“A pessoa não fica em situação de rua de um dia para o outro.”

A Hora – Existe alguma estimativa de quantos moradores de rua vivem hoje em Lajeado?

Bruna Martins – Acreditamos que em média 50 pessoas, porém, esse não é um número fixo visto que muitos que estão em situação de rua são usuários de álcool e ou outras drogas e acabam não tendo uma estabilidade. Transitam entre rua, casa da família, tratamento, etc.

E quantos ainda têm familiares vivos?

Bruna – Todas as pessoas têm um familiar, se não é pai, mãe, irmão, mas alguém da família extensa. O que acontece é que, quando a situação chega nesse ponto, os vínculos já estão muito fragilizados.

Pela experiência de vocês, quais os principais motivos que levam essas pessoas a morar na rua?

Bruna – A pessoa não fica em situação de rua de um dia para o outro, há uma história que precede esse acontecimento, normalmente com desestrutura familiar e social. Seria utópico dizer que um dia não existirão mais pessoas em situação de rua, ou que tirar as pessoas da rua seria a solução. A rua também apresenta para as pessoas algumas coisas que elas não encontram em outros lugares, como a liberdade, amizades, companheirismo. Um prato de comida na rua nunca é individual, sempre é dividido no grupo. Essa população tem uma característica muito valiosa, de solidariedade uns com os outros.

E quais as maiores dificuldades para convencê-los a deixar as ruas?

Bruna – Antes de tudo, percebemos pela nossa prática de trabalho que precisamos saber respeitar o tempo e as dificuldades de cada pessoa. Alguns conseguem logo se organizar com a possibilidade de um acompanhamento na rede de assistência social e saúde, outros já estão muito habituados com a rua. Precisamos saber respeitar isso também, que cada pessoa leva um tempo diferente.

Como funciona o atendimento do Caps com os moradores de rua?

Bruna – No Caps AD oferecemos o tratamento para álcool e outras drogas, consumo que é comum entre essa população. Sabemos também que o simples fato de parar o consumo não resolve, outros aspectos como moradia, trabalho, problemas psicológicos e sociais também fazem parte dessa realidade. Nosso trabalho é acolhê-los, dar um suporte para conseguirem enfrentar tudo isso, desde o problema com as drogas e todo contexto que envolve. Essa é uma questão mais complexa, não envolve a apenas a saúde, pois todos serviços da rede precisam se comprometer e conseguir acolher, até mesmo a sociedade em geral.

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