Justiça retoma  debate sobre aborto

País

Justiça retoma debate sobre aborto

Supremo Tribunal Federal (STF) absolve réus acusados de realizar procedimento para interromper gravidez e abre jurisprudência para legalizar a prática. Polêmica em torno do tema coloca em lados opostos movimentos sociais, entidades médicas, jurídicas e religiosas.

Justiça retoma  debate sobre aborto
Brasil

Ministros da mais alta corte da Justiça consideram que abortos realizados até o terceiro mês de gravidez não se configuram como crime. A decisão histórica provocou reações em diferentes setores da sociedade.

De um lado, estão movimentos em defesa do direito das mulheres, além de juristas, conselhos e associações médicas, favoráveis à legalização da prática. De outro, entidades que defendem a total proibição do procedimento, em sua maioria, religiosas.

Hoje, a legislação proíbe o aborto e prevê punições para quem realiza o procedimento, mas abre algumas exceções. O procedimento é permitido quando a gravidez é resultado de estupro, quando oferece risco de morte para a gestante e em casos nos quais o feto apresenta graves anomalias genéticas.

Porém, o percentual de procedimentos realizados legalmente no país ainda é ínfimo. Dados da Comissão de Direitos Humanos do Senado estimam que sejam realizados cerca de um milhão de abortos induzidos no país por ano. Menos de dois mil ocorrem legalmente.

Esse cenário traz grandes problemas para o sistema público de saúde. Por ano, cerca de 200 mil mulheres são internadas por complicações resultantes de abortos clandestinos. A cada dois dias, uma mulher morre por fazer o procedimento ilegalmente.

Para a presidente da OAB Lajeado, Alessandra Glufke, a 1ª turma do STF entendeu que a criminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação viola o princípio da proporcionalidade direitos fundamentais das mulheres, como a autonomia, a integridade física e psíquica, a igualdade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos.

“A mulher tem o direito de fazer suas escolhas existenciais. São elas que sofrem, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez”, ressalta. Relata ainda o entendimento de que ninguém pode ser obrigado pelo Estado a manter uma gestação indesejada.

“Essa decisão certamente irá refletir em outros casos, pois o colegiado deferiu habeas corpus para afastar a prisão preventiva do médico e de outros réus”, aponta. Porém, ressalta a inexistência de uma lei que autoriza a prática.

Para ela, o tema é de extrema relevância para o ordenamento jurídico e não pode ser analisado de modo superficial, sendo necessário envolver enfoques médicos e religiosos na discussão. Lembra que ao advogado não cabe fazer julgamento das pessoas em relação ao tema, e sim representar os clientes diante de situações reais.

[bloco 1]

Autonomia feminina

Representante do Coletivo de Mulheres do Vale do Taquari, a estudante Mariana Wermann acredita que a decisão do STF abre um precedente importante para debater a legislação sobre o tema. Para ela, o aborto é uma questão de saúde pública e deve ser tratada como tal.

“Sabe-se que milhares de mulheres abortam. Porém, são as que não possuem condições financeiras para fazer o procedimento de forma adequada que morrem”, alerta. Segundo Mariana, garantir o nascimento não basta: é preciso lutar pela garantia de uma vida digna.

Conforme a estudante, é importante deixar claro que a decisão de abortar cabe apenas à mulher e não deve ter interferências religiosas, estatais, familiares ou masculinas. “Cada mulher é dona de si e do seu corpo, e este direito deve lhe ser garantido.”

Na avaliação do Conselho Federal de Medicina (CFM), a criminalização do aborto é incoerente sob o ponto de vista humanístico e humanitário. Formado por 27 conselhos regionais (CRMs) que somam mais de 400 mil médicos, o CFM defende a autonomia das mulheres em interromper a gravidez até o terceiro mês de gestação.

Sobre o STF, o conselho avalia que as decisões da Justiça devem ser cumpridas, mas ressalta que a definição se refere a um caso específico. Conforme o CFM, a decisão não revoga os artigos do Código Penal e do Código de Ética Médica que tratam do tema.

Pressão religiosa

No dia seguinte à reunião do STF, entidades religiosas passaram a pressionar parlamentares para tentar reverter a decisão. Deputados da chamada Bancada Evangélica aproveitaram as discussões sobre as dez medidas contra a corrupção para protestar contra os ministros do Supremo.

Diante da repercussão do caso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), instaurou uma comissão especial para tratar do tema. Para Maia, a Câmara tem o dever de retificar as decisões do Supremo quando o órgão legisla no lugar dos parlamentares.

Independentemente dos resultados da comissão, as entidades religiosas são quase unânimes na condenação do aborto. Neste semana, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou nota defendendo a integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a sua concepção até a morte natural.

A entidade alega respeitar e defender a autonomia dos Poderes da República e reconhecer a importância do STF no reguardo à Constituição, mas afirma discordar da forma com que o aborto foi tratado no julgamento.

“Reafirmamos nossa incondicional posição em defesa da vida humana, condenando toda e qualquer tentativa de liberação e descriminalização da prática do aborto”, diz a nota. A CNBB ainda conclamou as comunidades a se manifestarem publicamente contra a decisão do Supremo.

Padre da Paróquia Santo Inácio de Loyola de Lajeado, Antônio Puhl afirma que o direito à vida está em jogo. Segundo ele, a doutrina católica considera que a vida existe a partir da concepção, e não depois do terceiro mês de gravidez.

“A orientação da igreja não vai mudar, assim que existe vida, existe o dever de protegê-la”, aponta. Coordenador ministerial da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (ICLB) de Lajeado, o pastor Eric Peter Nelson afirma que o cristianismo tem na defesa da vida um dos preceitos fundamentais, mas considera simplista enquadrar todas as situações em uma regra geral.

“Existe toda uma discussão sobre quando o feto passa a ser uma pessoa e temos de respeitar os argumentos. É uma discussão quase filosófica”, relata. Segundo ele, é importante considerar os contextos nos quais a decisão de fazer o aborto está ancorada para opinar sobre o tema.

Aborto pelo mundo

O primeiro país a legalizar o direito ao aborto foi a União Soviética. Em 1920, permitiu a realização dos procedimentos, que eram realizados gratuitamente e sem restrições para as mulheres que estivessem no primeiro trimestre da gravidez.

Na década de 1930, o aborto foi legalizado no México, Polônia, Islândia, Dinamarca e Suécia. Desde então, um número cada vez maior de países estabelecem legislações específicas sobre o tema.

Espanha

O aborto foi legalizado em 1985 no país e era permitido até a 14ª semana de gestação de forma irrestrita, ou até a 22ª em casos em que existe risco para a saúde da mulher ou malformação no feto. Em 2014, o governo espanhol modificou as leis sobre o tema. Com isso, o procedimento passou a ser permitido apenas em caso de perigo grave contra a saúde física e psíquica da mulher, ou estupro, e até a 12ª semana.

Portugal

Um plebiscito realizado em 2007 legalizou a interrupção voluntária de gravidez até a 10a semana de gestação. A mulher pode decidir fazer o procedimento independentemente do motivo.

Argentina

O aborto é considerado crime no país e só é permitido em caso de risco à vida e à saúde da gestante e em caso de gestação decorrente de estupro.

Uruguai

Desde 2012 o aborto é permitido em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação. Nos casos de estupro, o procedimento é possível até a 14ª semana e, quando há risco para a gestante ou má formação do feto, a gravidez pode ser interrompida em qualquer período.

Cuba

Desde 1965 a prática é permitida no país e a mulher pode fazer o procedimento de forma gratuita, por qualquer motivo, até a 10ª semana de gestação.

França

Permitido desde 1975 no país, o aborto pode ser realizado até a 12ª semana de gravidez por qualquer motivo. A legislação exige o aconselhamento da mulher durante o processo.

Estados Unidos

O aborto é legalizado em todo o território desde 1973, quando foi regulamentado pela Suprema Corte. A maioria dos estados não limita o tempo de gestação para o procedimento. Nos últimos anos, estados conservadores e governados pelo Partido Republicano tentam criar leis para restringir o acesso ao procedimento.

Acompanhe
nossas
redes sociais