2,4% da população do Vale é negra

Vale do Taquari

2,4% da população do Vale é negra

Na cidade com maior percentual de negros no Vale, Bom Retiro do Sul, ruínas da primeira senzala construída na região é uma das poucos resquícios físicos das violências contra um povo. Passados 128 anos da abolição, cicatrizes da escravidão seguem na memória dos afrodescendentes.

2,4% da população do Vale é negra
Vale do Taquari
oktober-2024

Maristela Fröhlich, como o sobrenome entrega, é descendente de alemães. Ela morou durante 24 anos em um quarto que, quase dois séculos antes, servia como um sombrio abrigo para dezenas de escravos pertencentes à família do carioca Manuel dos Reis Louzada. Ele foi o primeiro Barão de Guaíba e fundador, em 1819, da Fazenda Pedreira, localizada às margens do Rio Taquari. “Não haviam janelas e as paredes tinham meio metro de largura e quase três metros de altura.”

Funcionária de uma escola estadual de Bom Retiro do Sul, Maristela tem na ponta da língua toda a história da Pedreira. Foi lá que funcionou o primeiro porto daquela região, e também onde desembarcou o primeiro negro escravo em todo o território do Vale do Taquari. “Hoje, é um dos únicos sítios, senão o único, que ainda mantém ruínas de senzalas aqui no Vale”, diz. Havia ainda uma maternidade para escravos.

Equipes da Univates e da Unisc já visitaram o local. Há diversos planos para tombamento das edificações do sobrado da fazenda e da senzala, mas não saíram do papel. Faz alguns anos, o primeiro prédio a abrigar escravos na região tombou com uma forte tempestade. “O telhado era feito de talo de coqueiro e as telhas-canoas eram feitas pelos escravos, que tinham as coxas grossas. Meu pai consertou algumas vezes, mas a estrutura não resistiu.”

A família e ela moraram ali até 2001. Sobre ter vivido durante duas décadas sob o mesmo teto que abrigou o sofrimento dos negros durante a escravidão, não cita sentimentos ruins. “Fui morar muito criança, não tinha noção das coisas, era normal.” Mas ela lembra algumas histórias contadas por moradores mais antigos, principalmente envolvendo assombrações relacionadas aos crimes cometidos contra os negros.

Segundo historiadores, os escravos “maus elementos” ou “preguiçosos” que viviam na então Freguesia do Taquari eram levados até a Pedreira por um policial militar munido de um xilindró cacetete. De lá, não costumavam voltar. Outros considerados problemáticos, eram isolados por um muro erguido ao lado do sobrado da família. Já os mais calmos dormiam numa peça do próprio sobrado.

Maristela relembra uma das lendas sobre Louzada. Ele costumava enterrar dinheiro e ouro em pontos das fazendas. Certa vez, teria subido até o topo de uma colina junto de três escravos em uma diligência. Dois deles carregavam uma canastra cheia de dinheiro suspensa em um varal. O fazendeiro teria voltado, tarde da noite, na companhia de só um dos negros, que estava cego. Os outros nunca mais apareceram.

“Quando meus pais vieram morar aqui, encontraram pelo menos três ossadas de escravos quando construíram os fornos de fumo. Mas, os barulhos que ouvíamos aqui, e que sempre foram motivos de lendas, eram apenas ruídos de gambás e morcegos. Nunca vi nada de anormal.”

Maristela Fröhlich morou durante 24 anos na mesma edificação que serviu, um século antes, de senzala dos escravos

Maristela Fröhlich morou durante 24 anos na mesma edificação que serviu, um século antes, de senzala dos escravos

Estudos sobre a vida dos escravos

A Fazenda Pedreira foi objeto de estudo de bolsistas e professores do curso de História da Univates. Eles investigam a presença dos escravos africanos na região a partir do início do século XIX. Conforme dados levantados na pesquisa, a presença escrava no Vale do Taquari representava, naquela época, quase 8 % do total de escravos da Província.

No estudo, além da Pedreira, foram identificadas outras fazendas que correspondiam aos atuais municípios de Colinas, Estrela, Lajeado, Taquari, Arroio do Meio, Cruzeiro do Sul e Fazenda Vilanova. O grupo também verificou cartas de alforria e notícias publicadas entre 1887 e 1889 pelo jornal O Taquaryense, entre essas, provas de que escravos seguiam trabalhando para os mesmos patrões. Eram as chamadas “cartas condicionais”.

Segundo descreve o historiador, José Alfredo Schierholt, baseado em depoimentos e documentos do século XIX, os escravos do Vale “eram mais mansos por serem melhor tratados” e, muitas vezes, “os filhos dos escravos tinham como padrinhos os patrões”. Ainda, cita o pesquisador, os padres jesuítas da época proibiam a prática de crendices e tradições africanas.

Em 1858, conforme historiadores, haviam 1.160 escravos na então Freguesia do Taquari, representando 25% do total da população. Outro ponto de grande concentração deles era a Fazenda Juliana, localizada no hoje município de Fazenda Vilanova. O sobrado, apesar de modificado, segue no mesmo local de origem. A senzala foi destruída.

Contam os moradores que lá viviam muitos escravos, e existia um tronco para açoitar aqueles que não cumpriam as ordens. Procópio, filho do segundo proprietário, Valeriano Francisco de Souza, era, segundo relatos, “uma pessoa de caráter muito cruel”. Certa vez, teria mandado açoitar um negro até a morte, mas desistiu após uma criança escrava implorar de joelhos para que ele parasse.

foto-tabela-consciencia-negraBom Retiro tem maior população negra

Passados pouco mais de 128 anos da abolição da escravatura, a maior parte – em proporção – dos negros que vivem no Vale do Taquari é verificada em Bom Retiro do Sul. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, dos 11,4 mil habitantes da cidade, 651 – ou 5,6% – são negros. Logo após vem Fazenda Vilanova, com 5,1% em relação ao total da população. Ambas cidades são de origem lusiana.

Do outro lado, municípios com predominância germânica têm a menor porcentagem de negros em relação ao número total de habitantes. Na cidade de Poço das Antas, eram dois afro-descendentes entre dois mil moradores. Em Forquetinha, quatro entre 2.479. Já em Marques de Souza, oito negros em meio a quatro mil, conforme dados do Censo de 2010.

Todos os dados não levam em conta a recente migração de – principalmente – haitianos e senegaleses. Estima-se, hoje, que mais de mil tenham fixado residência só em Lajeado nos últimos cinco anos. A maioria fugiu da pobreza dos países de origem, diferente dos antepassados africanos, que foram forçados a deixar as terras de origem para servirem de escravos na região.

Neuza nota mudança no comportamento dos alunos após o projeto

Neuza nota mudança no comportamento dos alunos após o projeto

Estudo da cultura negra

A Escola Alfredo Lopes da Silva, localizada no bairro Morro 25, realiza o Projeto da Consciência Negra.

A iniciativa atingiu 210 alunos. De acordo com a vice-diretora Juliana Schwingel Gasparotto, professores visitaram o quilombola Morada da Paz, em Montenegro. “Foi um choque cultural. Percebemos muita riqueza na ligação deles com o planeta, na religiosidade, na criação das crianças, na vivência.”

Cada disciplina atuou em separado. Nas oficinas de leitura, os livros Menina Bonita dos Laços de Fita e Cabelos de Lelé foram trabalhados com os alunos, bem como, a culinária. Teve dia da tapioca, do pãozinho africano. Além de produzir, os alunos comeram na merenda.

O resultado foi uma mudança de comportamento. “Antes faziam piadas e frases racistas, principalmente os mais velhos. Hoje até recriminam quando alguém faz. Mudou bastante.”

A professora Maria Neuza dos Santos participou do projeto. Ela atua em um espaço destinado aos alunos com dificuldades de aprendizagem. Natural de Lajeado, afirma que nunca sofreu nenhuma situação de racismo. Filha de uma servente e de um caminhoneiro, foi incentivada desde criança ao estudo. Hoje tem três pós-graduações. “Minha mãe fez muita faxina para me dar estudo.”

Senegaleses e haitianos aumenta a população negra. Estima-se que mais de mil tenham migrado para Lajeado

Senegaleses e haitianos aumenta a população negra. Estima-se que mais de mil tenham migrado para Lajeado

“Ainda há preconceito e racismo”

Paulo Renato Narciso, 55, mais conhecido Mestre Karcará está faz 22 anos em Lajeado. Veio porque um grupo de acadêmicos da região quis aprender capoeira. Morava em Torres e tinha acabado de chegar de Barcelona, Espanha.

Passou por diversos países disseminando a cultura Afro. República Tcheca, Alemanha, França, Itália e Portugal foram alguns dos países que visitou.

Para ele, é preciso trabalhar nas escolas e sempre lembrar e refletir sobre a escravidão e como isso impacta até hoje na vida dos descendentes africanos.

Karcará lembra que as revoltas foram necessárias para que a Princesa Isabel assinasse a alforria. “Nós negros já tínhamos nos organizados. Foi um ato enrustido. Se fosse benevolência, teríamos terras.”

Afirma que até hoje na pele a discriminação. “Ainda hoje olham com desdém, dizendo que nós mesmos somos preconceituosos.” Para ele, a mulher negra é ainda mais discriminada e sofre com o racismo. “Hoje chamam de mulata, mas é um nome pejorativo. Vem de mula, de lixo. A mulher negra é explorada sexualmente. No Brasil o negro ainda é tido como sub-raça.”

PrintSituações vexatórias

O Mestre afirma que muitas vezes em uma festa é possível perceber a discriminação de forma mais clara. Conta que uma vez, as pessoas disseram para tirar o lixo.

Outra vez, conta, uma mãe tentava levar a filha que fazia pirraça e quando notou que se aproximava, disse que o tio ia pegar. “Então eu pergunto, quem é o tio? É o negão que vem lá? Então isso implanta na criança a semente do racismo.”

O auxiliar administrativo Magno Fernando da Silva, 30, jogava futebol quando escutava da torcida na arquibancada as palavras “macaco” e “pega este preto”. Mas fora do campo, disse que não dava importância para isso. “Trabalho em uma empresa e nunca tive problema com isso. Ao contrário, sempre fui muito bem tratado. Noto que as pessoas gostam bastante de mim. Até acho que me defendem.”

Magnus conta que a música o auxiliou muito, pois acabou conhecendo muita gente. “Foquei no estudo e nunca achei que era menos que alguém.” Quanto às piadas, disse que ainda são ditas. “Ainda existem, mas a gente leva na esportiva. Também tenho as minhas piadas.”

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“ Acho que a grande política de cotas foi nos obrigar a enfrentar de frente a discussão racial.”

Para o doutor em história, Mozart Linhares da Silva, as imigrações tem obrigado a sociedade brasileira a discutir a questão social. O professor da Unisc, analisa as consequências das imigrações de senegalese e haitianos, a adoção da política de cotas para o debate racial do país.

Hora – No domingo é lembrado o Dia da Consciência Negra. A data simboliza a luta do povo negro contra a escravidão. Passados apenas 128 anos, ainda vivemos reflexos desse período?

Mozart Linhares da Silva – O reflexo é evidente, eu diria que é uma das heranças mais pesadas da história brasileira. Para ter uma ideia mais clara como funciona isso, nós temos cinco séculos dos quais quase quatro são de escravidão. Isso é como uma pessoa de 50 anos passar 40 na cadeia, é impossível imaginar que esses anos não tenham reflexo na vida dela, é absolutamente intoxicante. Então a memória escravista está absolutamente impregnada em todas as instituições sociais. É muito forte, e isso não se termina em um século.

No RS, em específico nas cidades com imigrantes de origem europeia, há uma tendência de tornar como marco para formação dos povoados a chegada desses estrangeiros. Na sua avaliação, por que há um movimento que tenta maquiar a importância do povo negro na construção das cidades?

Linhares – Não há dúvida que as comunidades constroem suas narrativas de pertencimento identitário, e no caso das populações não imigrantes, há um processo de invisibilidade histórica associada com essa população. Há um mito que nessas regiões não havia escravidão, e isso não é verdade. As pesquisas atuais mostram que existia sim e significativa escravidão nas colônias alemãs e italianas, muita igreja de colônia foi construída por escravos. Em um levantamento que eu mesmo fiz, encontrei várias famílias, inclusive de pastores, com cerca de 10, 12 escravos em seu testamento. Então é óbvio que há um processo de construção de narrativa que exclui a população negra, mas sobre tudo a escravidão, porque isso sustenta um pouco o mito da ética do trabalho, da comunidade e do associativo. Então nesse processo a população não branca acaba sendo excluída.

Em diversas fazendas no interior do RS, as senzalas foram demolidas. Em Bom Retiro do Sul, uma família tenta tornar um dos espaços como patrimônio histórico. Qual a importância de preservar a memória do período da escravidão?

Linhares – Eu acho que todo o fenômeno que tem um marcação cultural forte na sociedade não deve ser apagado. Ele serve sempre como um aviso, diria como uma referência para reflexão, de como essa sociedade foi construída. Então esse tipo de iniciativa cultural de manutenção de memória, monumentos, revitalização de certos espaços urbanos relacionados a determinadas coisas, tem a função de manter via a reflexão.

A falta de preservação passa por uma cultura brasileira de não preservar a história, especialmente negativa, do país?

Linhares – Passa por isso e por um outro relato. No caso da escravidão tem um fenômeno interessante, quem mandou destruir os documentos foi o Rui Barbosa. Mas quando ele tomou essa iniciativa não foi, diga-mos assim maldosa no sentido político do termo. Acontece que as elites escravistas da época da abolição queriam cobrar na justiça a indenização pelos escravos alforriados, como eles eram uma peça, uma propriedade. O Rui Barbosa queimou parte dessa documentação justamente para inviabilizar os processos judiciais.

Como a questão étnica interfere na desigualdade social?

Linhares – Não há uma estatísca que não te mostre que questões raciais tem direta relação com a desigualdade social. Pobreza tem cor nesse país, acesso a emprego, saúde, educação tem corte de cor. É evidente que temos uma sociedade que se cinge hierarquicamente entre brancos e não brancos. O grande problema é não conseguirmos admitir isso, enquanto não admitirmos é muito difícil criarmos mecanismos de combate.

Com a polarização devido aos embates políticos, há uma vertente de manifestantes que criticam políticas afirmativas, como as cotas. Na sua opinião, quais os motivos e consequências dessa reação?

Linhares – As cotas não são raciais, temos cota sócio-raciais, o corte é primeiro para escola pública, depois raça. Se tivéssemos só cota social, nós evitaríamos, novamente, discutir a questão racial do Brasil. Acho que a grande política de cotas foi nos obrigar a enfrentar de frente a discussão racial. E isso revelou uma sociedade absolutamente dividida.

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