No primeiro semestre de 2016, pela primeira vez desde 2007, o número de doadores potenciais e efetivos caiu na comparação com o ano anterior. Hoje é celebrado o Dia Nacional do Doador de órgãos, com uma série de eventos para conscientizar a necessidade do ato.
Hoje, 3,53 mil brasileiros declaram-se não doadores, enquanto apenas 4,97 mil deixam claro serem doadores. O baixo número torna cada vez mais difícil atender aos pacientes que entram na fila. Apenas no primeiro semestre deste ano, 16,3 mil pacientes entraram na fila, segundo levantamento feito pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (Abto).
O cenário no RS é um pouco diferente do resto do país, pois o estado conseguiu estabilizar o número de doadores nos últimos anos. Mesmo assim, a demanda ainda é bem maior do que a oferta.
De acordo com o coordenador da Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do estado, Cristiano Franke, a população gaúcha está mais consciente sobre a necessidade de doar órgãos. “Ao contrário do resto do país, nós conseguimos ter um número maior de doadores a cada ano.”
Mesmo com o cenário positivo, Franke relata uma certa resistência por parte dos familiares na hora de doar. Dados da própria Central apontam que quatro em cada dez famílias não autorizam a doação de órgãos. Até agosto, 44% das famílias negaram a retirada de órgão dos parentes mortos, contra 26 doadores efetivos.
“Os familiares alegam não querer aguardar mais para receber o corpo ou temem alguma deformidade que possa ficar.”
Na espera
Há exatos 23 meses o aposentado Nelson Inácio Galas, 65, tornou-se mais um dos pacientes na fila por um transplante de fígado. Pai de três filhos e um avô de um menino, o morador de Lajeado garante não sofrer com ansiedade apesar da espera. “Eu não me preocupo porque sei que é assim mesmo, acho que é a lista de espera é uma coisa bem feita.”
Sereno, Galas mostra tranquilidade desde que descobriu a necessidade por um novo órgão. “Não tenho tanto medo da morte. Claro que essa não era a forma que queria chegar ao fim da minha vida.” Mesmo calmo em relação ao futuro, Galas encontra no neto um motivo para seguir lutando. “Eu não tinha neto quando descobri a doença, agora que ele esta aí quero conviver mais com ele.”
A doença que Galas se refere é a cirrose, resultado do excesso de álcool ao longo da vida. “Eu não bebia cachaça, mas tomava muita cerveja.” Após o diagnóstico, ele precisou mudar os hábitos, mas garante não sentir falta da bebida. “O álcool é fácil de deixar, eu sinto mais falta do sal, de comer churrasco.”
Mesmo com a doença, Galas consegue levar uma vida normal ainda, e sabe que sua saúde estável deve atrasar mais ainda o processo para receber um fígado. “Se vier eu sei que vou estar bem e buscar levar uma vida normal após a cirurgia. Mas sei que antes de um ano, não devo receber o órgão.”

Quase um ano após o transplante, Felipe, natural de Estrela, voltou a praticar esportes e hoje leva uma vida normal
Uma vida salva
A tranquilidade de Galas, não era uma realidade na vida da família Ferrazza a cerca de um ano atrás. Em agosto, Felipe, então com 15 anos, descobriu uma doença grave nos rins que o obrigou a iniciar um duro processo de hemodiálise.
O garoto, morador de Estrela, ativo e apaixonado por esportes viu sua vida mudar. “Foi muito difícil no início, eu nem sabia o que era hemodiálise.” O tratamento em que uma máquina filtra o sangue foi a mais traumática para ele. “Foi o mais difícil, fiquei muito assustado com tudo aquilo e só consegui superar graças ao apoio dos amigos e da família.”
Com a doença do filho, Denise deixou um pouco de lado a profissão para dedicar-se mais a ele. “Eu vendi um restaurante para atender só o Felipe.” Por sorte, o drama da família não durou muito, uma ligação no último domingo de novembro trouxe esperança. “Eu estava trabalhando quando o irmão gêmeo dele me ligou, contando que tinham encontrado um rim compatível. Na hora comecei a chorar.”
Rapidamente eles estavam em casa prontos para viajar até Porto Alegre onde o transplante seria feito. “Nós já tínhamos uma mala pronta para viagem, esperando pelo anúncio”, conta Denise. Ao falar sobre a família da menina de 15 anos que autorizou a doação do órgão, a mãe de Felipe se emociona. “Gostaria de ter contato, porque eles não tem ideia da importância que têm na nossa vida.”

“Os primeiros transplantes foram feitos há mais de 30 anos e ainda não resolvemos a questão da doação.”
“Diga em casa que você é doador.”
O cardiologista Fernando Lucchese era um dos médicos da equipe que realizou o primeiro transplante de coração do estado. Desde lá, foram mais de cem operações do tipo na carreira do médico que transformou-se em uma referência no país. Para ele, a falta de informação é o principal entrave para que mais transplantes sejam realizados.
A Hora – Por que ainda existe preconceito em relação à doação de órgãos?
Fernando Lucchese – Eu acho que a informação ainda não é suficiente, nós não conseguimos educar as pessoas para aceitarem a doação não só como um ato de generosidade, mas quase uma obrigação. No momento em que alguém perdeu a vida, dar a vida para mais gente é uma obrigação. No RS, vivemos um momento pior dois anos atrás e estamos melhorando de novo. A grande dificuldade é as pessoas dizerem em casa que são doadoras, porque quando isso acontece a família respeita. O segredo é esse: diga em casa que você é doador.
Ainda existem alguns mitos e temores de que o corpo ficará marcado e outros do tipo. Como é possível romper essas barreiras?
Lucchese – Essas barreiras são construídas ao longo do tempo, até por uma maneira equivocada de divulgar. Por exemplo, ‘o sujeito doou os órgãos e depois morreu’, essa é uma frase que ainda é dita. A verdade é que a pessoa estava morta e depois foi feita a doação. A ideia da morte cerebral ainda não está bem clara para a população. O diagnóstico é totalmente preciso, a própria Igreja Católica reconhece a doação de órgãos após constatada a morte cerebral. A segunda coisa é o desejo de realizar o enterro logo, mas aí entra o ato de generosidade e nem sempre as pessoas têm isso. Um ato desses compensa a perda do familiar.
O senhor trabalha muito a importância da espiritualidade no tratamento médico. Em alguns momentos, as pessoas usam a religião como um entrave para doar. Como usar esse argumento religioso para também aumentar as doações?
Lucchese – Um dos entraves era a falta de compreensão sobre a ressurreição dos mortos, isso era até mesmo pela Igreja Católica, mas hoje já está vencido. Normalmente as religiões não se opõem à doação.
O senhor acredita que podemos aumentar o número de doadores nos próximos anos?
Lucchese – Nós tivemos altos e baixos na nossa história de doações. Os primeiros transplantes foram feitos há mais de 30 anos e ainda não resolvemos a questão da doação. Não me parece tão simples esse problema. Pode melhorar colocando a informação à disposição do público, mas nós sempre teremos pessoas mais generosas e pessoas mais egoístas.