Publicação confirma corte de disciplinas

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Publicação confirma corte de disciplinas

Governo publica no Diário Oficial da União texto de Medida Provisória (MP) que reestrutura o Ensino Médio. Anunciada na quinta-feira, proposta é criticada por educadores, entidades de classe e juristas. Entre os motivos, está a redução no número de disciplinas obrigatórias e o fim da necessidade de diploma específico para dar aulas.

Publicação confirma corte de disciplinas
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No mesmo dia em que anunciou o fim da obrigatoriedade de matérias como Educação Física, Artes, Filosofia e Sociologia, o governo voltou atrás. Em nota, o MEC afirmou que MP foi divulgada por engano, em uma versão prévia.

No dia seguinte, a publicação do texto no Diário Oficial da União confirmou a exclusão das disciplinas, contrariando a informação do MEC. A confusão demonstra o tamanho da polêmica envolvendo a reforma do Ensino Médio.

Professores, alunos, entidades empresariais e de classe são unânimes quanto à necessidade de mudanças, mas persistem divergências sobre quais são as alterações e de que forma elas devem ser aplicadas.

Aluno do colégio Fernandes Vieira, Guilherme Diersmann, 17, afirma que os professores não se importam em ajudar na compreensão dos conteúdos, e assim desestimulam os estudantes. “Deixam para trás aqueles que não entenderam direito, ignoram e criam preconceitos com os diferentes.”

Para ele, a forma de avaliação também deveria ser revista, pois nem sempre os conteúdos apresentados aparecem nas provas e trabalhos. “Se tem o profissional que estudou e se qualificou em uma área, poderia se dedicar mais em passar o conhecimento de forma adequada e fazer avaliações que sirvam para aprender.”

Estudante do 3º ano do colégio Érico Veríssimo, Alexsandro Júnior de Freitas é contra a extinção da obrigatoriedade de disciplinas. “Acho vergonhoso e inaceitável, pois matérias como Filosofia e Sociologia já deviam estar no currículo do Ensino Fundamental.”

Segundo ele, da forma como o ensino está estruturado alguns colegas chegam ao fim da escola ainda aprendendo a conceituar e diferenciar as duas disciplinas. “Todo o senso crítico que tenho hoje é graças a estas aulas e aos meus professores que sempre instigaram a turma com questões que realmente nos fizeram pensar e refletir.”

Conforme o estudante, a medida apresentada pelo governo visa impedir a formação de alunos capazes de desenvolver o senso crítico. Considera a Educação Física fundamental por mostrar que o caminho do esporte é melhor do que o do crime, enquanto Artes é responsável pelo incentivo à cultura, teatro e música. “Deveriam ser ampliadas e incentivadas.”

Mãe de uma aluna da rede estadual, Simone Veronese acredita estar clara a intenção de retirar as disciplinas que desempenham o papel de despertar o senso crítico e o exercício da cidadania. “Como mãe, me preocupo com a formação de uma sociedade para qual a democracia se limita no direito ao voto.”

Outra preocupação é em relação à proposta de aumentar a carga horária. Conforme a medida, as 800 horas-aula ao ano existentes hoje passariam para 1,4 mil, com a instituição do turno integral. “A solução não é aumentar as horas e sim aproveitar as que já se tem.”

Para ela, os autores da proposta ignoram a realidade dos estudantes brasileiros que trabalham ou fazem outros cursos de qualificação no turno inverso.

Falta de diálogo

Diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado (Simpro-RS), Cecília Farias acha estranho o fato de uma proposta que definirá os rumos da educação no país ser editada por meio de MP.

“Foram ignorados todos os fóruns de discussão entre professores, alunos e pais, os congressos, conferências e os planos nacional e estaduais de educação”, relata. Para ela, o fato de a decisão ter sido tomada unilateralmente por um governo que não foi eleito agrava o problema.

“Nossa preocupação também é em como isso vai ocorrer e quem vai financiar essas mudanças”, alerta. Conforme Cecília, diante da situação em que se encontra o ensino público gaúcho, com deficiências estruturais, de professores e recursos pedagógicos, é difícil pensar em duplicar o tempo do jovem na escola.

“Me parece uma jogada midiática”, ressalta. Lembra que nas escolas privadas os professores não têm horários disponíveis para o planejamento das aulas. Nesse cenário considera impossível que o educador participe do trabalho de reestruturação.

Em relação à grade curricular, afirma que o desenvolvimento pessoal e cognitivo dos alunos não se completa somente com disciplinas como Português e Matemática. Para ela, a indefinição quanto a essa parte do projeto demonstra a insegurança do governo. “Fazem uma imposição, voltam atrás e publicam igual. É preocupante lidar dessa forma com os rumos da educação.”

Segundo ela, o Sinpro-RS vai participar de um processo para tentar forçar a discussão da medida nas escolas. Para Cecília, a mudança proposta é intempestiva e não tem suporte, por isso, está fadada ao fracasso, o que é uma lástima diante da necessidade de investimentos na educação e de rediscussão da escola.

Críticas no Judiciário

O Ministério Público Federal (MPF) emitiu nota sobre a proposta. Para o órgão, a necessidade de reforma do Ensino Médio no país é real, mas a utilização de MP para tratar um assunto complexo é temerária e pouco democrática.

Conforme o MPF, as alterações precisam de estabilidade e segurança jurídica não existentes em uma MP. “Fica sujeito a alterações em curto espaço de tempo pelo Congresso Nacional.”

Para a promotoria, imaginar que um governo pode, sozinho, apresentar uma solução definitiva é uma ilusão.


“Autonomia é algo que se constrói com discussão, com noção de limite e respeito, desde muito, muito pequeno. Autonomia sem construção é uma liberdade perigosa.”

“Não existe educação sem diálogo”

Valéria Neves Kroeff Mayer é professora, pedagoga, mediadora de leitura e contadora de histórias infantis. Mestre em Educação pela UFRGS e em Desenvolvimento Regional pela Unisc, tem formação em Fisioterapia e é autora do livro Não Grita Tião.

A Hora – Qual sua avaliação sobre a mudança no Ensino Médio proposta pelo governo?

Valéria Mayer – Estamos andando de marcha à ré. Os argumentos de que “esse novo Ensino Médio baseia-se em modelos já testados e aprovados em países avançados” e de que “tem como pressuposto principal o protagonismo do jovem” são, no mínimo, ingênuos e falaciosos. A educação brasileira não fez ainda a sua maior lição, aprender com sua própria história, com seus próprios tropeços e com suas próprias experiências exitosas, que são muitas. Nossa realidade histórica é completamente distinta de outros países.

Qual sua opinião sobre a liberdade dos alunos para escolha das disciplinas?

Valéria – Minha outra preocupação é com a suposta autonomia do aluno. Autonomia é algo que se constrói com discussão, com noção de limite e respeito, desde muito, muito pequeno. Autonomia sem construção é uma liberdade perigosa. Será mesmo que o estudante terá autonomia para montar a própria grade de disciplinas em parte do seu Ensino Médio ou será ele influenciado pelas escolhas dos pais, como o são, muitas vezes, ainda hoje, nas escolhas profissionais. E mais, sem uma educação para a autonomia desde a Educação Infantil, terão nossos alunos maturidade para essa escolha agora, neste momento?

Os índices de evasão escolar apontam a necessidade de mudanças no Ensino Médio. É possível tornar a escola mais atrativa? A proposta do governo consegue cumprir essa finalidade?

Valéria – Sem dúvida, é possível tornar a escola mais atrativa, mas cada escola tem uma realidade. Numa mesma cidade, colégios vivem realidades diferentes. Por isso, os professores precisam ser ouvidos, bem como os alunos e suas famílias. Medidas de cima pra baixo são sempre de desempoderamento, de cabresteamento e antissociais. Neste contexto, faz sentido deixar como opcional no currículo disciplinas que promovem a socialização e a crítica reflexiva. Opcional é sempre uma forma de dizer que algo não é importante, portanto, não merece investimento.

Quais as principais dificuldades enfrentadas por educadores e alunos do Ensino Médio?

Valéria – Os professores encontram-se desmotivados por seus baixos salários, muitas vezes parcelados, pela pouca parceria com as famílias, pelo material escasso. Os alunos não sentem-se motivados porque a escola, muitas vezes, não oferece uma estrutura que lhes desafie e lhes encante, mas sobretudo pelo desencantamento de alguns professores. Não generalizo, porque conheço muitos professores, que apesar de todos os pesares, “não deixam a peteca cair”. É uma roda viva.

A quantidade de alunos por turma causa limitações?

Valéria – Atrapalha os processos de ensinar e de aprender, pois é impossível dar uma atenção individualizada para as necessidades específicas do aluno. O grande número de alunos por sala contribui para o adoecimento do professor, para o sentimento de impotência frente ao seu fazer, bem como tira do aluno a sua individualidade no modo de ser e aprender. Não há como se estabelecer uma relação de aproximação, fundamental para o processo de aprendizagem, sobretudo nesta fase de construção de personalidade.

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