Novo modelo prisional visa a romper ciclo de violência

Vale do Taquari

Novo modelo prisional visa a romper ciclo de violência

Erguido com apoio da comunidade, presídio feminino de Lajeado terá foco na ressocialização por meio do trabalho. Fruto de parceria entre o Judiciário, a comunidade carcerária e a Alsepro, a construção foi criada para subverter o ciclo de violência existente nas casas prisionais gaúchas, reduzindo o índice de reincidência e a criminalidade do lado de fora da prisão.

Novo modelo prisional visa a romper ciclo de violência
Foto: arquivo / A Hora
Vale do Taquari

Os índices de criminalidade no Estado ao longo dos últimos 20 anos demonstram a falência do sistema prisional gaúcho. Se em 1996 o RS tinham uma população carcerária de 12 mil pessoas, hoje o número ultrapassa os 35 mil, e outros 5 mil ainda aguardam vagas no sistema. Porém, o aumento no número de prisões não representou a diminuição dos crimes.

Com quase 20 anos de magistratura, o juiz Sidinei José Brzuska convive diariamente com os resultados da política de segurança baseada na repressão. Titular da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Brzuska é responsável pela maior cadeia do Estado, o Presídio Central.

“Não temos políticas para segurança pública”, sentencia. Segundo ele, a inexistência de ações do Estado em bairros periféricos entrega uma parcela da população jovem nas mãos das facções criminosas. Cientes das dificuldades enfrentadas pela comunidade, chefes do tráfico oferecem opções de renda, além de segurança e proteção, aos jovens que ingressam no mundo do crime.

“Abandonamos políticas preventivas e focamos apenas na reação”, aponta. Diante de casas prisionais superlotadas e dominadas pelas facções criminosas, afirma que o ingresso de criminosos no sistema aumenta ainda mais o poder das organizações.

Novamente abandonado pelo Estado, o preso recebe das facções suprimentos básicos como roupas, comida e material de higiene. Com isso, reafirma a lealdade ao grupo criminoso e trabalha com ainda mais afinco em prol da organização, mantendo o ciclo de criminalidade no retorno às ruas.

É este ciclo que o judiciário, a comunidade carcerária e a Alsepro tentam mudar com a construção do presídio feminino de Lajeado. A própria obra se tornou referência nacional, por ter sido erguida sem recursos governamentais.

De acordo com o diretor do fórum de Lajeado, juiz Luís Antônio do Abreu Johnson, a nova casa prisional terá como foco principal a ressocialização das presas. Segundo ele, além de um atendimento mais humanizado, o presídio terá espaço para trabalho e estudos.

“Estamos preparando a instalação de uma padaria que atenderá todo o complexo prisional e também creches e escolas do município. Não será apenas um depósito de seres humanos”, afirma. Para o magistrado, a forma como o sistema prisional se estabelece hoje tem um custo social muito grande na comparação com o custo do trabalho de ressocialização.

Segundo Johnson, os altos índices de reincidência são um reflexo das falhas do sistema atual. Lembra que a lei penal estabelece, desde os anos 1940, o sistema progressivo, iniciando no fechado, passando pelo semiaberto até chegar ao aberto. “Se hoje o criminoso está contido, amanhã ele será devolvido para a sociedade mais violento do que quando chegou ao presídio.”

Para o diretor do Fórum, um dos principais problemas é a ociosidade durante o cumprimento da pena. Em Lajeado, mais de 260 apenados não fazem nenhum tipo de atividade. Mesmo com as dificuldades estruturais no presídio masculino, a justiça encaminha convênio para intensificar o trabalho prisional.

“Se hoje o criminoso está contido, amanhã ele será devolvido para a sociedade mais violento […]” Luís Antônio de Abreu Johnson – Juiz da comarca de Lajeado

Exemplos gaúchos

Na próxima semana, o secretário de Segurança, César Schirmer, estará em Lajeado para definir detalhes sobre a inauguração do presídio feminino. Considerado exemplo para o Estado, a estrutura teve apoio de empresários, gestores municipais e de organizações não governamentais.

“Temos um conselho da comunidade e uma associação pró-segurança que são destaques nacionais devido ao trabalho social junto aos presídio”, destaca Johnson. Segundo ele, o próximo desafio após a inauguração será a ampliação do presídio masculino com a duplicação no número de galerias.

“Precisamos de um estabelecimento prisional que permita o estabelecimento da disciplina, além de opções de trabalho e educação prisional”, defende. Sistema semelhante é utilizado com sucesso na nova penitenciária de Canoas. De acordo com o Brzuska, a unidade é pequena e não tem superlotação.

“Os presos recebem uniforme, alimentação e tem acesso a sala para encontros íntimos”, afirma. Como os presos recebem tudo do Estado, as visitas não podem levar comida ou roupa. Com isso, o presídio não tem comércio e está livre de drogas.

“Só está nessa cadeia quem cumpre pena pela primeira vez e eles não querem sair”, relata. Por outro lado, os presos de outras detenções se recusam a trocar as galerias superlotadas por uma vaga nesse novo modelo, por já terem sido absorvidos pelas facções que comandam o sistema prisional.


“Não temos políticas para segurança pública”

“Não temos políticas para segurança pública”

“A queda nos índices de educação está diretamente ligada ao aumento dos índices de criminalidade”

A Hora – A impunidade é apontada pela população como um dos motivos para o aumento do índices de criminalidade no RS. Falta punição aos criminosos no Estado?

Sidinei Brzuska – Nos últimos 20 meses se prendeu mais no Rio Grande do Sul do que nos EUA. Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça mostra que em 2004 eram 135 presos para cada 100 mil habitantes. Hoje estamos em 320 para cem mil habitantes. Quase triplicamos a quantidade de detentos. Quando assumi como juiz, em 1997, o RS tinha 12 mil presos. Hoje, temos temos 35 mil dentro dos presídios e outros 5 mil aguardam em prisão domiciliar por falta de vaga no sistema. Triplicamos o número em menos de 20 anos. Prende-se muito. Ao mesmo tempo, essas prisões não causam reflexo na sensação de segurança ou produzem diminuição na violência. Os índices do homicídios e assaltos seguem aumentando, assim como os latrocínios.

Porque essas prisões não ajudam a reduzir os índices?

Brzuska – Estamos colhendo frutos de algumas políticas que aplicamos no passado. Há 20 anos atrás, o tráfico de drogas representava no máximo 5% da população carcerária. Hoje, na região metropolitana, representa 50% da população masculina e 90% da feminina, sem que isso resulte em impacto no tráfico. A nova lei de drogas é o maior fracasso legislativo da década. A lei 11.343 completou 10 anos em agosto e fracassou totalmente. São fenômenos que não podem ser enfrentados somente em âmbito policial. Nos anos 90, quando um traficante era preso, havia impacto no tráfico e demorava para aquele comércio se restabelecer. Hoje não abala em nada.

Que tipo de política seria necessária para reduzir os índices de violência?

Brzuska – Nós esperamos o crime acontecer e vamos atrás do bandido. Isso é insuficiente, porque os índices aumentam, vamos produzindo mais violência e mais vítimas. Hoje, a escola pública perde alunos para o tráfico, que emprega muitos jovens nas mais diversas funções. Só em Porto Alegre 32 mil adolescentes abandonaram o colégio no ensino fundamental entre 2013 e 2014. Ao mesmo tempo, 75% dos presos tem o fundamental incompleto. O número de presos com superior no central é de 0,03%. Existe uma série de fatores, dinheiro do tráfico, falta de emprego e ausência de escolaridade, que levam uma parcela significativa da população jovem para a criminalidade e não estamos enfrentando isso. A gente enfrenta prendendo esse cara, mas a fábrica continua funcionando. Precisamos reformular o colégio para não perder jovens para o trafico. A queda nos índices de educação está diretamente ligada ao aumento dos índices de criminalidade.

Como o tráfico alcançou tanto poder, mesmo com o aumento da repressão?

Brzuska – O tráfico colocou muito dinheiro nas comunidades e muita gente sobrevive dessa forma. O Estado combate o tráfico de duas formas. Prisão de pessoas e apreensão de drogas. Aumentamos o número de prisões e apreensões a cada ano, por outro lado, as bocas seguem funcionando. Isso só enche a cadeia. Na região metropolitana, essa forma de enfrentamento do tráfico tem gerado a violência. Quando o traficante é preso, morto ou enfraquece, o ponto começa a ser disputado internamente, resultando em um grande número de homicídios até que alguém se estabeleça pela força. Além disso, pode uma facção externa perceber que a outra enfraqueceu e tentar ampliar seu território. Quando isso ocorre, a tendência é os locais se unirem para defender o território. Aí temos as guerras em regiões diferentes da cidade pelo mesmo motivo.

Algumas autoridades de segurança consideram que a morte de envolvidos na guerra do tráfico não prejudica a sociedade. Qual sua avaliação sobre isso?

Brzuska – Os traficantes locais não querem mortes em suas comunidades. Preferem evitar a presença da polícia e a pressão da comunidade. Na guerra externa, uma das táticas usadas para desestabilizar o rival é invadir o território e matar quem estiver na frente. Aí começam a morrer os inocentes, porque essas mortes começam a abalar o negócio do local. A comunidade vai colocar na conta dele. E então, ele reage da mesma forma non território do outro. É isso que acontece em Porto Alegre. O Estado não se deu conta disso e não bloqueou isso. Em uma leitura rasa, pensou que estavam se matando entre eles. Acaba morrendo pai, irmão, filho de pessoas que por perder entes queridos ficam com ódio da facção rival. Isso não vai terminar tão cedo.

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Como o tráfico influencia na incidência dos outros crimes?

Brzuska – Os jovens são empoderados pelo tráfico. Dá status tirar uma selfie com um fuzil. São destemidos, pois na cabeça deles não tem muito a perder. Após uma apreensão de drogas, o traficante tem que pagar o fornecedor e não tem produto pra vender. Ele precisa se capitalizar e não pode fazer empréstimo no Banco do Brasil. Ele já tem a arma e os guris estão com ele, então vai pro roubo. Os mais jovens ficam encarregados de roubar carro e os mais veteranos em crimes mais sofisticados, como o roubo do malote, carro forte, caixa eletrônico. O Estado ainda não compreendeu isso.

Que tipo de política pública seria capaz de frear essa escalada da violência?

Brzuska – Deveríamos desenvolver políticas de segurança pública não apenas na pasta da segurança e sim na secretaria de Lazer, Educação, Saúde, em todas. Hoje se joga tudo nas costas da Brigada Militar e da Polícia Civil, que sofrem uma pressão enorme por algo que eles não tem como resolver. Teríamos que traçar um programa de Estado, para reduzir a população de presos. Hoje, nossa meta é aumentar e estamos construindo mais presídios para isso. Isso não significa soltar o cidadão que cometeu crime, e sim impedir que o crime aconteça. Mas fazemos o contrário. Pensamos de forma imediatista, sem nenhum plano para daqui dez anos.

Como combater o abismo social que impulsiona a criminalidade?

Brzuska – Nós não temos políticas tributárias de segurança pública. Se 95% dos presos tem menos de 25 anos e estava desempregada quando cometeu o crime, precisamos manter essa pessoa no emprego antes disso. Se isenta imposto por vários motivos, porque não damos desconto para quem empregar jovem? O primeiro emprego tem que ter isenção tributária. É mais barato para o Estado reduzir esse imposto do que manter esse cara na cadeia por dez, vinte anos. Mas preferimos investir em mais presídios e mais repressão. É uma questão cultural e não tenho esperança de que isso vá mudar nos próximos 50 anos. As pessoas acham normal a situação dos presídios e muitos pensam que quanto pior, melhor.

Na esfera municipal, que tipo de política pode ser aplicada na área de segurança?

Brzuska – Muitas dessas políticas de prevenção à violência são municipais, mas os municípos simplesmente abrem mão delas. O município poderia abrir mão de uma parcela do IPTU, dar a metade para quem empregar jovens em seu primeiro emprego e a outra metade para quem empregar preso. O índice de reincidência de um preso com carteira assinada é quase zero. Nas obras do fórum temos pessoas trabalhando cujas penas eram altíssimas. Eles não reincidem porque tem oportunidade. Pega um restaurante em Lajeado e oferece desconto do IPTU se ele empregar um preso como garçom ou cozinheiro. Deixa o empresário escolher o funcionário. Esse presidiário não vai colocar fora a chance da vida dele, portanto não vai voltar para o crime. Mas isso ninguém faz. Tem que fazer políticas de médio e longo prazo em prevenção.

Qual a situação do sistema prisional gaúcho?

Brzuska – Existem presídios no interior que trabalham com a violência local e ainda dão conta da sua finalidade de proteger a sociedade do crime. Os presídios do interior somente recebem o dinheiro que vem da rua. Nos maiores, é o contrário. Se produz muito dinheiro nas casas prisionais da região metropolitana. Faz 20 anos que os presídios se tornaram um negócio lucrativo para as facções e hoje todas elas lucram dentro das prisões. Uma pequena parcela de presos ganha dinheiro e escravisa os outros. Para eles, quanto mais presos melhor, pois maior é o lucro. O maior castigo que posso dar para uma organização criminosa é impedir a entrada de presos em uma galeria. Eles entram em desespero. Tem 4,7 mil presos do Central e ninguém quer sair dalí. O metro quadrado no central é mais caro que o das áreas nobres de Porto Alegre. Uma galeria do Central vale mais que uma grande loja em qualquer shopping.

Porque o presídio se tornou lucrativo para os criminosos?

Brzuska – A primeira preocupação de uma pessoa recém-chegada no presídio é a com própria segurança. Quem dá a segurança é a facção que controla a galeria. Se uma pessoa é presa em Porto Alegre, a galeria é escolhida de acordo com o local de onde a pessoa vem, porque quem controla o bairro também controla a galeria. O teu comportamento dentro da galeria vai refletir na segurança da tua família no bairro. Mesmo que tua família não seja do crime, se a facção precisa esconder droga em um lugar insuspeito, vai na casa dessa família. Tua mãe vai ter que aceitar, por causa da tua segurança dentro da galeria. Se a polícia apreende essa droga, prende pessoas dessa família, eles vão cair na mesma galeria. Talvez ainda tenham que trabalhar para pagar o prejuízo. Se alguém denunciar, morre.

Como a pressão punitiva da sociedade contribui com esse cenário?

Brzuska – A sociedade se identifica com a vítima e quer castigar a pessoa que cometeu o crime. Mas não nos solidarizamos com a vítima, pois ela continua sofrendo as consequências do crime. Então, não ajudamos a vítima. O Estado acaba assumindo esse sentimento e usa o sistema prisional como uma espécia de vingança coletiva. Então o cara que fez o crime é jogado para dentro do sistema, onde não ganha roupa, material de higiene e a comida é ruim, mas ele tem que sobreviver. Nesse momento, vem a facção e dá o que o Estado não dá. A facção acolhe esse infrator, e ele vira soldado. Vai trabalhar para a facção por essa solidariedade.

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