Processo se repete 24 anos depois

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Processo se repete 24 anos depois

A votação do processo de impedimento da presidente da República Dilma Rousseff ocorre neste domingo. Especulações apontam para uma primeira derrota do governo na Câmara dos Deputados.

Processo se repete 24 anos depois

Especialistas, políticos e sociedade civil se dividem sobre a legalidade do impeachment, que na quinta-feira recebeu o aval do STF.

Movimentos sociais prometem ir às ruas em caso de vitória da oposição, enquanto grupos favoráveis à queda preveem comemoração.

O plenário Ulisses Guimarães, no coração da capital federal, será o centro das atenções a partir das 14h deste domingo. A votação do processo de impeachment da presidente pela Câmara dos Deputados será o segundo pleito do polêmico e controverso processo contra o governo federal. No anterior, a Comissão Especial aprovou, por 38 votos a 27, o relatório que incrimina Dilma Rousseff por supostas falhas na Lei de Responsabilidade Fiscal.

A movimentação já iniciou nessa sexta-feira, com sessões destinadas a discursos de parlamentares. O rito segue neste sábado. Por volta das 11h, e com transmissão da TV Câmara, as argumentações prosseguem, com previsão de invadir a madrugada de domingo. Estão inscritos 249 deputados federais para se manifestarem. Desses, 79 são contrários ao impeachment e 170 favoráveis.

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), cita que o plenário pode fazer sessões sem intervalo para que todos os partidos e deputados inscritos se pronunciem contra ou a favor do impeachment da presidente.

No domingo, o relator Jovair Arantes terá 25 minutos para concluir seu pronunciamento. Ele recomenda que a Câmara autorize o Senado a processar a presidente por crime de responsabilidade, ao abrir créditos suplementares de Orçamento via decreto presidencial, sem autorização do Congresso Nacional, e ao adiar repasses para o custeio do Plano Safra, o que obrigou o Banco do Brasil a pagar benefícios com recursos próprios – manobra chamada de “pedalada fiscal”.

Após o relator, líderes de bancadas terão até dez minutos para se posicionar. O início da votação está previsto para as 15h. Cada deputado federal terá só dez segundos para manifestar seu voto ao microfone aberto. Todos serão chamados em voz alta pelo presidente. São 513 parlamentares de 25 siglas.

Seis horas de votação

O quórum mínimo para a sessão é de 51 deputados. A previsão do presidente Eduardo Cunha é finalizar a votação até as 21h, caso não ocorram interrupções ou manifestações atípicas no plenário. No domingo, não será permitido encaminhamentos por parte dos líderes de bancada e tampouco apresentação de questões de ordem pelos deputados. A sessão será exclusiva para o pleito.

Confirmada pelo STF, a chamada nominal inicia pelos parlamentares de Roraima, seguidos pelos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Amapá, Pará, Paraná, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Rondônia, Goiás, Distrito Federal, Acre, Tocantins, Mato Grosso, São Paulo, Maranhão, Ceará, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Piauí, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas.

STF avaliza o processo

O STF negou, na quinta-feira, pedido de liminar em mandados de segurança que questionam parecer aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisou a admissibilidade de denúncia de prática de crime de responsabilidade pela presidente.

Os ministros afastaram as alegações de que houve “cerceamento de defesa ao longo do processo de elaboração do relatório”, e que o texto final incluiu elementos que não estavam presentes na denúncia originalmente apresentada à câmara pelos juristas Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale.

Segundo o relator, ministro Edson Fachin, as alegações de cerceamento de defesa não se sustentam, “uma vez que o juízo proferido pela Câmara no processamento de crime de responsabilidade é apenas de admissibilidade, e o julgamento do crime supostamente praticado pela presidente ocorrerá apenas no Senado.”

Quanto à inclusão de temas alheios à denúncia no parecer final da comissão, Fachin entende que o conteúdo destinado à votação no plenário da Câmara “deve ser apenas o material contido na denúncia original”. Outros aspectos revelados no parecer, como os conteúdos das delações premiadas no âmbito da Operação Lava-Jato, não serão levados em consideração pelos deputados.

Para OAB, impeachment é legítimo, mas Cunha deve ser afastado

A disputa política causa divisões em partidos e ONGs. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se posicionou favorável ao impedimento de Dilma Rousseff e protocolou novo pedido de impeachment. Porém, grupos de advogados organizaram manifestos contrários à posição da entidade.

Presidente da OAB Lajeado, Alessandra Glufke se diz favorável ao processo. Segundo ela, o entendimento da entidade é de que Dilma cometeu crime de responsabilidade. Entre os motivos, estão as “pedaladas fiscais”, renúncias fiscais ilegais em favor da Fifa e a nomeação de Lula.

“Teve a intenção de beneficiar um aliado, alvo de investigação judicial, atribuindo-lhe as prerrogativas de ministro de Estado”, afirma. Lembra ainda que a OAB também foi responsável pelo pedido de afastamento de Eduardo Cunha da presidência da câmara.

“A posição da Ordem não decorre de um juízo de valor sobre uma eventual culpa de Cunha. Pretende preservar a instituição Câmara dos Deputados”, alega. Segundo ela, cabe ao Congresso eleger e manter o seu mandatário.
Diante da determinação do STF, de que a votação na Câmara deveria apenas avaliar a legalidade das “pedaladas”, Alessandra acredita no cumprimento da norma. “Caso o impedimento não seja aprovado pelos argumentos desse pedido, existem outros ainda não analisados, com motivos diferentes.”

Para Alessandra, o momento político demonstra o amadurecimento do povo. “Faz muito tempo que as pessoas sabiam a escalação da seleção brasileira de futebol, mas não tinham a menor noção de quem eram os ministros que julgavam os processos em última instância ou nossos representantes na Câmara e no Senado.” Segundo ela, o despertar da sociedade civil organizada dá a esperança de superação desse momento de crise no Brasil.

Manifesto de conselheiros

Contrário ao posicionamento da OAB, um grupo de nove conselheiros da seccional gaúcha elaborou manifesto criticando o apoio ao impeachment. Na opinião dos signatários, a Ordem rompeu com seus compromissos institucionais e constitucionais tendo sucumbido ao clamor social e aos apelos midiáticos.

Para os conselheiros, a corrupção deve ser combatida de maneira incessante, mas sempre com respeito às garantias do devido processo legal e da ampla defesa, tendo como fim a aplicação das devidas sanções aos culpados. “Nenhuma instituição que represente a classe política, juízes, ministério público, agentes da polícia, dentre outras, está acima da lei. Os fins não justificam os meios”, afirmam. Para eles, a OAB aderiu ao palanque de um processo capitaneado por Eduardo Cunha, denunciado por corrupção.

“Isso se traduz no fato de que a quase maioria dos deputados que apreciarão e decidirão os caminhos do processo de impeachment são investigados na própria Operação Lava-Jato”, apontam. Por fim, o manifesto afirma que o posicionamento dos signatários encontra apoio em vários segmentos da advocacia, inclusive ex-presidentes da entidade.

Para cientista político, impeachment avançará, mas novo governo não terá legitimidade

Professor na ESPM e Unisinos, Bruno Lima Rocha é doutor em Ciência Política pela UFRGS. Autor de cinco livros, é uma das principais referências em análises políticas da América Latina.

A Hora – Como você avalia o atual momento da política brasileira e de que forma se chegou a esse processo?

Bruno Lima Rocha – Um dos fatores é a política de pacto de classes promovida pelo lulismo, que distribui alguma renda para o andar de baixo e mantém os ganhos do andar de cima. Dependia da manutenção da balança comercial positiva, que se inverteu quando a China provocou a queda dos commodities. No início do primeiro governo Dilma, se tentou uma nova matriz econômica, que para dar certo precisava retirar os ganhos do mercado financeiro. Na medida em que se expandia a política de gastos públicos com programas sociais, diminuía-se os juros da taxa Selic. A partir daí se manteve uma política de cumplicidade. Os gastos públicos se mantiveram elevados, mas sem recursos, porque metade do dinheiro brasileiro ia para a rolagem da dívida pública. A conta não fechou e o pacto de classes se rompeu.

Esse rompimento ficou mais evidente na eleição de 2014?

Rocha – A campanha foi quente, com um segundo turno plebicitário. A reeleição veio seguida de um governo à direita, com programa semelhante ao que foi derrotado na campanha. Isso retirou a legitimidade do governo. Em seguida veio a eleição interna da Câmara. A base do governo no Congresso era frágil, pois era uma maioria literalmente comprada. Uma base mercenária, não é confiável. Os parlamentares se viram diante de uma liderança muito forte e de um voto conservador. Dilma enfrenta um Congresso escancaradamente à direita em relação aos mandatos anteriores. Não que eles tenham mudado de posição, apenas escancararam suas opções em função do enfraquecimento do pacto. Assim, presidente da Câmara consegue aliar os interesses quase impublicáveis do corpo parlamentar e colocar o governo contra a parede. Em paralelo, ocorre a Lava- Jato, que ataca as bases morais do governo.

Com a Lava-Jato a oposição encontrou as bases para uma derrubada do governo?

Rocha – Apesar das suspeitas, não existe nenhuma prova de corrupção contra Dilma. No Judiciário, o que vale é a prova. Não digo que tudo o que ocorre na Lava-Jato é uma invenção do juiz Sérgio Moro, porque não é. Ocorre o que chamamos na economia política de “novo entrante”. O PT é mais um para morder junto aos outros, mas ao fazer isso ele esculhamba o esquema e cria uma situação de animosidade. Em 2013 o Brasil viveu uma rebelião popular, em um dos momentos mais lindos da nossa história política. Era uma reivindicação por mais direitos, para ultrapassar o pacto lulista. Demonstrou-se um modo de operar, via internet, e já havia uma confusão entre moralismo público e reivindicação. Aí, entrou em ação o MBL e os demais movimentos semelhantes.

– Qual o papel desses movimentos no cenário político?

Rocha – A presença da fundação Koch no Brasil criou uma espécie de direita venezuelana no país. Na Venezuela, os grupos apoiados por essa fundação são violentos e vão para as ruas para isso. Aqui, ficam na violência simbólica, não se sabe até quando. O MBL é uma Startup, uma empresa encubada do grupo Estudantes Pela Liberdade. Eles conseguiram entender a lógica da mobilização via rede e começaram a operar no Brasil. Primeiro de uma forma meio desordenada e desconexa, pegando carona em discursos de políticos como Jair Bolsonaro, Marco Feliciano, do saudosismo pela ditadura, depois seguindo a agenda da direita neoconservadora e neo pentecostal. Foi aí que os grupos de mídia entraram na aventura. Primeiro o Estadão, que convocou o movimento contra tudo e contra todos, naquela loucura que foi o fim de junho de 2013. Já não era uma reivindicação pelo transporte público. A partir daí, MBL, Vem Pra Rua, e outras pequenas startups neo liberais começaram a dar frutos. São pessoas muito bem treinadas na sua política potencializada pela internet, e conseguem fazer um burburinho neoconservador. Esses movimentos fizeram eco com a chamada bancada 4 B do Congresso, da bola, da bala, da bíblia e do boi. O cerco começou a se fechar cada vez mais.

Qual o papel de Eduardo Cunha nesse cenário?

Rocha – É pragmático. Primeiro, propôs um acordo com o governo. Em troca do engavetamento do processo contra ele no Conselho de Ética, engavetaria o pedido de impeachment. O Planalto indicou pelo acordo e a base do PT se rebelou. A motivação de Cunha ao aceitar o pedido é vingança política. Junto com o impeachment, tramita no Congresso toda uma agenda regressiva, que é o pano de fundo desse processo todo. As propostas mais escancaradas são a PEC 215, que pretende rever a demarcação de terras indígenas, quilombolas e de reservas florestais, e a PL 4330, que na opinião da alta corte da Justiça do Trabalho, rasga a CLT ao permitir terceirizações ilimitadas. Formando maioria para aprovar o impeachment, é possível aprovar todas essas propostas. Por isso o empresariado entrou no jogo.

Quais os cenários possíveis depois do fim do processo?

Rocha – Acho que o impeachment passa, mas o governo Temer, se assumir, não tem nenhuma legitimidade. Se não passar o impeachment, será uma guerra para o atual governo manter o poder. Está tudo armado, em um domingo de sol, ao vivo pela TV. É uma coisa tão maluca que ao mesmo tempo fortalece o rito democrático. No conjunto de regras, a Câmara fez tudo e o Supremo não deu mandado de segurança para parar o processo. Pior, disse que pode ingressar com mandado depois da votação, mas isso é muito difícil. Vai demorar mais duas semanas para o Senado encaminhar, e na sequência são 180 dias de afastamento.

O mais provável é o fim do governo petista?

Rocha – É quase certo que, às 22h de domingo, o Brasil se encaminhe para um governo tampão de Michel Temer, sentado em cima de uma agenda regressiva que vai modificar a Constituição, reduzindo direitos trabalhistas e das minorias, ao mesmo tempo que costura um grande acordo para fazer uma operação abafar e acabar com a Lava-Jato, porque ela pega todo mundo, a começar por Eduardo Cunha. É um cenário terrível, mas faz sentido. Porque o Sérgio Moro não pediu prisão preventiva da mulher e da filha do Eduardo Cunha? Porque criaria um constrangimento político terrível e acabaria com tudo o que está em curso.

Bruno Lima Rocha

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