A crise na segurança pública gaúcha motiva ações na Assembleia Legislativa. Diante da ineficiência do Estado para lidar com a crescente onda de criminalidade, parlamentares elaboram propostas tentando solucionar problemas do setor.
Um dos projetos que tratam o tema foi protocolado nesta semana pelo deputado Marcel Van Hattem (PP). O texto estipula que detentos paguem por suas despesas ao Estado. Caso não tenham condições financeiras para cobrir a estadia, a proposta obrigaria os presos a trabalhar para custear a “hospedagem”.
Van Hattem justifica o projeto com o argumento de que cada preso custa entre R$ 1,6 mil e R$ 2 mil por mês aos cofres públicos. Segundo ele, iniciativas semelhantes são aplicadas em quatro estados norte-americanos, onde os detentos pagam até US$ 90 diários.
“Pagamos duas vezes pela insegurança. Uma ao sofrermos com o crime, outra ao termos de pagar para sustentar bandido na cadeia”, alega. Para o deputado, a obrigatoriedade do trabalho favorece a reinserção dos ex-presidiários na sociedade.
Divulgada na rede social Facebook, a proposta alcançou mais de 11 mil curtidas e 6,5 mil compartilhamentos em menos de 24 horas. A repercussão motivou reações contrárias de juristas e especialistas em sistema penal.
Juiz responsável pela fiscalização dos presídios gaúchos, Sidinei José Brzuska, lembra que a Lei de Execuções Penais, criada em 1984, já prevê o trabalho prisional como forma de indenizar as vítimas e ressarcir valores gastos pelo Estado. “Não é muito mais fácil cumprir a lei federal, que está em vigor faz 32 anos?”
Juiz da comarca de Venâncio Aires, João Francisco Goulart Borges afirma que a medida seria inócua. Para ele, a proposta não leva em conta a realidade prisional brasileira. “A grande maioria dos presos quer trabalhar, mas não temos estrutura suficiente para oferecer essa oportunidade.”
O magistrado defende outras medidas como forma de reduzir o custo do encarceramento à sociedade. Entre as propostas, estão a privatização da administração das cadeias e a criação de penitenciárias menores, com separação de presos por periculosidade.
Mão de obra prisional
Diretor de Obras da Associação Lajeadense de Segurança Pública (Alsepro), Léo Katz afirma que a ideia poderia funcionar em países de primeiro mundo, mas não seria aplicável no Brasil. “Nossos presos vêm de famílias de baixa renda e são provenientes de uma sociedade não humanitária.”
Para ele, diante da falta de estrutura do Estado para oferecer ocupação durante o cumprimento das penas, debater o tema é fundamental. “Os presos saem da cadeia sem nenhum recurso financeiro ou qualificação profissional. Muitas vezes perdem até a referência familiar. Por isso a tendência é voltar à criminalidade.”
Katz é o responsável pela construção do presídio feminino de Lajeado, realizada com recursos da comunidade. Boa parte da mão de obra do empreendimento é prisional. Conforme o diretor da Alsepro, para habilitar condenados ao trabalho, é necessário fazer um trabalho de conscientização.
“A pessoa privada de liberdade está abalada emocionalmente. Então, temos que primeiro mostrar a decência que é trabalhar”, alega. Segundo Katz, também é fundamental oferecer ocupações saudáveis e dignas, caso contrário, os detentos não terão o incentivo necessário.
Para Katz, a qualidade da mão de obra prisional é razoável e existem muitas pessoas dispostas a trabalhar nas galerias e celas dos presídios gaúchos. “Nosso sistema prisional está podre, mas um projeto interesseiro não faz sentido.”
Debate importante
De acordo com o deputado Enio Bacci (PDT), apesar de tratar sobre uma questão já prevista em legislação federal, a proposta tem o mérito de levantar um debate importante para a sociedade. “A população não suporta mais os gastos com os presos.”
Segundo ele, a crise na segurança gaúcha motivou diversos debates e propostas sobre o tema na Assembleia Legislativa. “Nunca tivemos uma situação tão crítica e as pessoas estão com medo. Por isso, é cada vez maior o número de deputados discutindo a questão.”
Apesar de afirmar ser favorável ao projeto de Van Hattem, Bacci pondera sobre as dificuldades para aplicação da medida. Segundo ele, hoje os presídios gaúchos não têm estrutura para receber empresas dentro dos complexos e o Estado não oferece condições de segurança para a realização de serviços externos.
“A grande maioria dos presos quer trabalhar, até para ganhar remissão de pena”
A Hora – Qual sua opinião sobre a proposta protocolada pelo deputado Marcel Van Hattem?
João Francisco Goulart Borges – É uma proposta impossível de ser executada, devido ao grande contingente de pessoas recolhidas nos presídios gaúchos. Para lidar com essa questão, precisamos saber como funcionam as cadeias. Colocar uma pessoa para trabalhar significa investimento e hoje não existe recurso nem para abrir novas vagas no sistema. Infelizmente, nossos presídios funcionam apenas para privar a liberdade. Se o detento não está no quarto, está no pátio, pois não existe espaço para trabalho destinado à grande massa carcerária. Mas é preciso investir em espaço para educação e qualificação.
O projeto teve grande repercussão nas redes sociais diante dos custos de cada preso para o poder público. Não seria uma forma de reduzir o gasto com os detentos?
Borges – Se o preso tivesse condições para pagar sua estadia, seria um cenário ideal. Mas essa não é a realidade. A grande maioria da população carcerária é de baixa renda. A ideia é até um pouco ingênua, pois um preso custa em torno de R$ 2 mil por mês, enquanto um salário mínimo representa menos da metade disso. A conta não fecha. Seria mais interessante passar a administração dos presídios para a iniciativa privada, o que reduziria para a metade o valor pago por preso. Outra possibilidade é criar cadeias diferenciadas para cada tipo de preso, separados por periculosidade. Iniciativas como essa funcionam em Minas Gerais, tendo como consequência o aumento do trabalho prisional e até a criação de hortas que reduzem o custo das refeições.
Existe um forte movimento nacional contrário aos direitos dos presidiários. Até que ponto a proposta colabora para fomentar esse tipo de pensamento?
Borges – Vivemos um momento de radicalização de ideias e existem alguns grupos organizados favoráveis a esse tipo de projeto. Eu sou contra, pois acredito na necessidade de investir em um processo de humanização do detento. Quanto mais encrudescesse o sistema prisional, mais você pressiona o preso. Isso faz com que ele saia pior do que entrou. Se torna um problema ainda maior para a sociedade. É preciso dar disciplina, mas com possibilidade de trabalho.
A Lei de Execução Penal, criada há 32 anos, já estipula o trabalho prisional como forma de custeios das despesas públicas. Existe condições para cumprir a legislação vigente?
Borges – Estamos buscando formas de criar postos de trabalho dentro dos presídios, mas é preciso qualificar para o mercado de trabalho. A realidade é que sempre se investiu pouco ou quase nada nesta questão. Ao longo dos anos, foram feitos alguns acordos nas indústrias para receber a mão de obra saída das cadeias. Mas, sem dar qualificação no período em que estão recolhidos, também é impossível arrumar serviço depois.
Boa parte da população imagina que o preso não trabalha porque não quer. Na sua experiência, isso se confirma?
Borges – A realidade mostra o contrário. A grande maioria dos presos quer trabalhar, até para ganhar remissão de pena. O trabalho é um direito do preso expresso em lei e é a principal forma de ressocialização. Na nova penitenciária de Venâncio Aires, estamos tentando parceria com o sindicato da construção civil para ensinar a trabalhar na área. Outra iniciativa é criar novas ocupações, como a de chefe de cela. Seriam pessoas responsáveis pela disciplina e limpeza. É uma forma de estimular o trabalho e ainda manter a carceragem limpa.