Luís Fernando Sembler acorda todos os dias por volta das 6h para iniciar a coleta. O café da manhã é oferecido pelo empregador, responsável por um centro de triagem irregular no centro, na região conhecida como “Cantão do Sapo”.
Lá, outros nove homens dividem precários espaços entre velhas tábuas de madeira. É o único lar para alguns. “Ganho um teto e comida. Não posso reclamar.”
Ele trabalha nas principais ruas de Lajeado faz pouco mais de dois anos. Mantém contato com comerciantes e combina horários de recolhimento. Antes disso, passou por outros empregos nos 30 anos de vida dura. Foi pintor de faixas de sinalização em rodovias e servente de pedreiro. Perdeu as contas de quantos “bicos” realizou para uma extensa lista de ex-patrões.
O catador diz receber até R$ 1 mil por mês. Em dias bons, pode chegar a R$ 70. Em dias chuvosos, nem metade. Ou ainda pior. Mesmo assim, Sembler não pensa em deixar o serviço que lhe consome toda a manhã e a tarde e, por vezes, parte da noite, sete dias da semana. “Não conseguiria voltar para uma firma com ambiente fechado”, diz.
Ele afirma ser esse o pensamento da maioria dos colegas de profissão. “Tu acaba te acostumando com a rua. Me sinto bem caminhando o tempo todo. Só sairia se fosse para pintar rodovia de novo.” Todo o lixo recolhido é levado para o depósito da rua Barão do Santo Ângelo.
Os “presentes” também costumam ser divididos com os patrões. “Eu ganho muitas coisas. Desde objetos pessoais a eletrodomésticos e comida. Tem muita gente boa na cidade. Mas tem quem não respeita. Que xinga. Que olha torto. Faz parte”, conta o pai de uma menina, cujo contato se resume a um telefonema mensal. “Ela mora em Caxias do Sul. Quase não a vejo.”
Pouco estudo
Vanderlei Maciel, 31, é natural do Paraná e também mora junto de um depósito de lixo, no Cantão do Sapo. Não sabe dizer onde nasceu, onde lembra ter vivido com a mãe e trabalhado em diversos subempregos. Com incerteza, diz ter chegado há 15 anos. “Faz um tempo já né. O mesmo tempo que trabalho catando papelão, papel. Também pego garrafa e latinha.” Do bolso, retira uma garrafa PET de 300ml, completa com um líquido transparente. “Tenho minha ‘bebidinha’”, diverte-se.
O catador paranaense tem dificuldade até para lembrar o próprio nome. “Perdi meus documentos todos, né.” Conta ter estudado até a 8a série, mas não lembra da idade que tinha quando saiu do colégio. “A gente acaba se enojando. Sabe? Acabei desistindo. Hoje me arrependo. Poderia ser alguém na vida.”
Cresce a “Vila dos Papeleiros”
O ano era 2008, e a administração municipal já enfrentava os mesmos problemas de hoje em relação a ocupações irregulares de margens das rodovias. À época, pelo menos duas famílias se abrigavam ao lado da pista duplicada da BR-386, próximo ao trevo de acesso a Lajeado, no sentido capital-interior.
Expulsas do bairro Santo Antônio, as famílias de catadores teimavam em deixar o novo local invadido. Esse, de responsabilidade do Dnit e da União. O governo municipal conseguiu, após série de reuniões e conflitos, convencer os catadores a aceitar um terreno localizado entre os bairros Igrejinha e Centenário, para onde foram encaminhados.
Quase nove anos depois, o mesmo problema é constatado faz algum tempo – em maior escala – às margens da ERS-130, na área urbana de Lajeado, entre as empresas Imec e Docile. O local é chamado popularmente de “Vila dos Papeleiros” e gera preocupação para o poder público pela insegurança e falta de saneamento.
Pelo menos 20 famílias vivem em ambas as margens da rodovia estadual. Casebres de madeira foram erguidos entre lixo e entulho. A área serve de depósito e centro de triagem irregulares de resíduos sólidos. Energia vem de terrenos vizinhos. Porcos, galinhas e cachorros dividem espaços.
Tráfico de drogas, atropelamentos, prisões de foragidos, tentativa de homicídio e incêndios são registros desde 2013. “O caso é muito complicado. A área não nos pertence. Não podemos judicializar. E a presença deles incomoda os proprietários de áreas vizinhas”, comenta José Antunes, secretário de Meio Ambiente (Sema).
Segundo ele, o empresário que comprou a área próxima à ERS-130 precisou construir uma casa de madeira para que uma das famílias aceitasse deixar o terreno dele. Além de lidar com o excesso de lixo e o mau cheiro. Apesar dos problemas, a secretária de Assistência Social (STHAS), Ana Reckziegel, enaltece o fato de oito famílias estarem de mudança, em outubro, para os apartamentos populares construídos no Santo Antônio. “Tentamos com outras, mas elas resistem. Já tivemos profissionais ameaçados de morte naquela região.”
O papeleiro Paulo Luís Volk, 45, descarta deixar o local que lhe garante uma renda média de R$ 700 por mês. “Não poderei ter um cachorro naqueles apartamentos. Saio se me derem um terreno onde eu possa trabalhar”, afirma, apontando para o terreno usado por ele e familiares para a triagem do lixo. A presença das famílias invasoras pode inviabilizar a tentativa de duplicação da rodovia.
Sequência de crimes preocupa
A Secretaria de Saúde e também a Sthas costumam visitar as famílias em vulnerabilidade social. Os registros de violência são recorrentes. Nos últimos meses, tomaram proporções mais graves. No dia 24 de fevereiro, dois deles invadiram a casa do aposentado Gastão Koelzer, de onde furtaram plantas. Ao tentar intervir, a vítima acabou agredida com golpes de madeira e facão e acabou morrendo na esquina das ruas Bento Rosa e 17 de Dezembro. Também há registros de furtos a residências e canteiros de obras.
Pavilhão perdido em 2011
Completa quase cinco anos a polêmica sobre a construção de um pavilhão para centenas de catadores realizarem a triagem do lixo. Orçado em R$ 309 mil – mais R$ 81 mil de contrapartida –, o empreendimento emperrou na liberação dos recursos por parte do governo federal e depois pelas dificuldades de finalizar o processo licitatório.
Por fim, após série de tentativas de licitar o projeto – empresas reclamavam de aglutinação de serviços –, o governo municipal acabou desistindo de contratar a empresa em 2011. Com isso, o recurso, que naquele momento estava garantido pela União, por meio da Caixa Econômica Federal (CEF), foi perdido.
Outros projetos ficam no papel
No início de 2007, a Sema anunciava a intenção de cadastrar os catadores ou coletores de resíduos secos que atuavam ou residiam em Lajeado. O objetivo, segundo gestores na época, era “quantificar o número de pessoas envolvidas com a atividade e fornecer uma carteirinha para, oficialmente, habilitar o exercício em questão”.
O projeto também previa o emplacamento dos carrinhos utilizados, além de identificação com jaleco e crachá dos papeleiros. Entre os benefícios previstos, gestores citavam que as normas impediriam que catadores de outros municípios atuassem em Lajeado. Passados quase dez anos da proposta, pouco evoluiu. A Sema não tem o número de papeleiros registrados na cidade.
Em maio de 2012, a Sema e a Secretaria de Planejamento (Seplan) anunciavam a intenção de criar uma lei municipal para regrar os papeleiros em vias públicas. Outra vez, a ideia previa uso de um jaleco, e os carrinhos deveriam ser identificados com placa. Nada foi feito desde então.
CDL tentou amenizar problemas
Vistos diariamente entre veículos das principais vias, os papeleiros já foram tema de diversas reuniões da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). Em abril de 2014, por exemplo, a entidade encaminhou aos associados uma correspondência com sugestão de horário para o depósito de materiais recicláveis nas calçadas de Lajeado.
Tal solicitação, que teve ainda a aprovação do Conselho Municipal de Trânsito (Comtran), serviria para que itens como papelão, plásticos e garrafas PET estivessem à disposição do recolhimento só após as 18h. O objetivo era evitar que os papeleiros transitassem com os carrinhos em horários indiscriminados do dia. Dois anos depois, a medida teve pouca adesão.
Fórum e novas propostas
Uma nova proposta de lei municipal foi encaminhada – após 26 meses de debates – pelo Fórum de Resíduos Sólidos Domésticos de Lajeado ao Executivo, Legislativo, Ministério Público (MP) e Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente.
Produzido pelo grupo de pesquisa Práticas Ambientais e Redes Sociais da Univates e coordenado pela professora Jane Mazzarino, o estudo apresentou série de proposições para melhorar a coleta seletiva no município. Foi levado para representantes da Univates, Unimed, Corsan, secretarias de Educação, Sema, Parceiros Voluntários e Cooperativa de Catadores Sepé Tiaraju.
O projeto estabelece princípios orientadores para a coleta seletiva. As quatro principais sugestões preveem mais fiscalização sobre a empresa coletora para que não misture resíduos, incentivos à separação e a disposição corretas pelos moradores, desenvolvimento da cultura de produzir composteiras caseiras e incentivos à organização de cooperativas de catadores.
Também na câmara, Sérgio Kniphoff (PT) e Carlos Ranzi (PMDB) apresentam sugestões para a coleta seletiva. O petista encaminhou requerimento solicitando maior publicização de formas de construção de composteiras. Já o colega sugeriu, em 2013, instalação de ‘ecopontos’ para descarte de lixo seco na rua Santos Filho, no Parque dos Dick, e na av. Décio Martins Costa.
Apoio às cooperativas
O secretário da Sema fala das dificuldades em controlar centros de triagem ilegais. Em relação ao Cantão do Sapo, conta que foi acordado – informalmente – que a empresa privada responsável por recolher o lixo separado pelas organizações de catadores realizaria o recolhimento todos os dias, evitando aglomeração.
Além disso, o Executivo auxilia outras três cooperativas registradas. Duas delas, a Corevat e a CRC, receberam mais de R$ 1 milhão entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2016. Uma delas recebe R$ 54 mil por mês e é responsável por receber, armazenar de dar destino final ao lixo seco do aterro sanitário. A outra ganha R$ 17,5 mil mensais para cuidar de eletrodomésticos, mobílias e pneus.
Estudo do Ipea define perfil
Em 2014, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou relatório nacional sobre a situação dos catadores de material reciclável e reutilizável. Conforme o estudo, a categoria profissional, além de ser fortemente heterogênea em termos de inserção no mundo do trabalho, constitui o elo mais vulnerável na cadeia de valor da reciclagem.
Segundo o estudo, a maioria são homens de cor ou raça negra, com relações de trabalho marcadas pela informalidade, com baixa escolaridade, baixa cobertura previdenciária e residentes em áreas urbanas com deficiências de infraestrutura domiciliar graves. Por outro lado, a renda média tem superado o patamar do salário mínimo em quase todas as regiões, menos no nordeste.