Câmara aprova remédio e reabre polêmica

Vale do Taquari

Câmara aprova remédio e reabre polêmica

Projeto libera fabricação e distribuição da fosfoetanolamina sintética, composto usado no tratamento do câncer. De exclusividade brasileira, medicamento não é autorizado pela Anvisa, que alega falta de comprovação científica sobre efeitos da substância. Especialistas divergem sobre tratamento.

Câmara aprova remédio e reabre polêmica
Vale do Taquari
oktober-2024

Divulgada como a cura para o câncer, a fosfoetanolamina sintética pode ser liberada para uso antes de ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Nessa terça-feira, a Câmara Federal autorizou projeto permitindo a fabricação e distribuição do medicamento. A proposta segue para o Senado em meio a divergências sobre a comprovação da efetividade do composto.

Criada há cerca de 20 anos no Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da Universidade de São Paulo (USP), a substância é fruto de pesquisa realizada pelo professor, hoje aposentado, Gilberto Orivaldo Chierice.

No fim do ano passado, o cientista explicou o funcionamento do fármaco em debate no Congresso. Conforme Chierice, o composto químico marca as células cancerosas, fazendo com que sejam reconhecidas pelo sistema imunológico e combatidas pelo próprio organismo do paciente.

De forma independente, o professor passou a distribuir pílulas da droga de graça. Segundo ele, mais de 40 mil pessoas receberam o medicamento ao longo dos últimos 20 anos. Produzida pelo laboratório da USP, a droga custa cerca de R$ 0,10 por pílula.

Em 2014, uma portaria do IQSC passou a exigir que todas substâncias experimentais fossem registradas antes de serem disponibilizadas à população. Com isso, o remédio parou de ser distribuído, resultando em uma série de ações judiciais de pacientes que tiveram tratamentos interrompidos.

Os processos desencadearam uma enxurrada de liminares exigindo a retomada da distribuição. Em outubro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou o acesso a um paciente do Rio de Janeiro, que estava na fase terminal da doença. Desde então, a demanda pela substância aumenta, assim como os debates em torno do uso.

“Toda esperança é bem-vinda”

Presidente da Liga de Combate ao Câncer de Teutônia, Margrit Grave vê a decisão da Câmara como uma esperança para aqueles que lutam contra a doença. Apesar de reconhecer a inexistência de comprovações claras sobre a ação medicamento, defende o direito dos pacientes terem acesso às pílulas.

“Não há todo o processo exigido pela Anvisa, mas a pessoa com câncer se apega a todo e qualquer recurso, sejam eles espirituais, químicos ou fitoterápicos”, ressalta. Margrit afirma conhecer poucas pessoas com acesso ao remédio, mas diz que todas relataram melhoras após o consumo.

Além disso, destaca a falta de relatos sobre efeitos colaterais causados pela substância. Segundo ela, o principal benefício é a melhoria na qualidade de vida. “Nas fases finais da doença, o paciente sofre muito, assim como seus familiares. Por isso, a Liga comemora tudo que pode aliviar a dor e prolongar a vida das pessoas.”

Por considerar complexos os mecanismos da doença, Margrit crê em diferentes reações nos pacientes, a depender do tipo e do estágio do tumor. Ressalta que mesmo tratamentos usuais, como a quimioterapia, apresentam resultados diferentes, nem sempre positivos.

Para ela, há um monopólio das indústrias farmacêuticas que impede o desenvolvimento de curas para a doença. Traça um paralelo com as dificuldades impostas pelas grandes empresas aos combustíveis alternativos. “Existem muitas opções mais baratas e limpas, mas não são exploradas.”

A presidente da Liga de Combate ao Câncer lembra dos altos valores cobrados pelos tratamentos existentes. “Alguns tipos de remédios custam milhares de reais por mês aos pacientes”, afirma. Cerca de 20% de todo o orçamento do SUS é empregado no combate à doença.

Existindo ou não resistência da indústria farmacêutica à fosfoetanolamina, o câncer é um dos principais negócios no setor de saúde. Estudo de 2015 do instituto americano IMS Heath apontou gastos mundiais superiores a U$$ 100 bilhões por ano apenas na compra de remédios contra a doença.

“É a política passando por cima da ciência”

O oncologista Leandro Brust classifica a decisão de liberar o uso da fosfoetanolamina como absurda. Segundo ele, o Brasil é considerado um dos piores países do mundo na aprovação de novas drogas com níveis de eficácia comprovados no exterior.

“Existem tratamentos revolucionários, desenvolvidos por multinacionais, mas que não conseguem apoio, mesmo no caso de substâncias milhões de vezes superiores à fosfoetanolamina”, aponta. Para ele, a eficácia da pílula é mito criado devido à melhora de alguns pacientes em casos pontuais.

“Se dermos placebo para milhares de pessoas, uma parcela delas também vai apresentar melhora”, avalia. Segundo Brust, o Congresso interfere politicamente em uma questão científica ao invés de focar em mecanismos que assegurem agilidade na aprovação de estudos clínicos.

“O Japão demora um mês para aprovar um estudo. O Brasil demora um ano. Por isso temos apenas 3% de participação na pesquisa científica mundial em saúde”, reforça.

O oncologista lembra que o Conselho Federal de Medicina orienta os médicos a não prescrever o medicamento. Com isso, o projeto de lei da Câmara não teria finalidade, pois exige a indicação de um clínico para a administração do composto. “Se não tem comprovação nenhuma, o que acontece se ela for pior para a saúde? Quem vai pagar esse preço?”

Agência critica decisão

Em nota, a Anvisa declarou preocupação com a aprovação da medida. Conforme a agência, o uso do medicamento sem testes que garantam segurança e eficácia pode representar perigo à população.

Conforme a Agência, não há nenhum pedido protocolado para a realização de ensaios clínicos ou solicitação de registro da substância. “Os desenvolvedores dessa substância nunca procuraram estabelecer um processo produtivo em fábrica legalmente estabelecida e certificada para operar com qualidade”, diz a nota.

Segundo o texto, qualquer medicamento desenvolvido no Brasil, ou de uso relevante em saúde pública, recebe tratamento prioritário para as análises da Anvisa. “A única coisa inusitada é o fato de que uma substância desenvolvida há 20 anos, usada de maneira ilegal, nunca ter suscitado em seus desenvolvedores a preocupação em realizar ensaios clínicos de acordo com os protocolos.”

Por fim, a Agência afirma estar à disposição do Congresso para colaborar com o debate e fornecer todas as informações técnicas possíveis. No entanto, ressalta que liberar medicamentos dessa forma coloca em risco a saúde da população, além de retirar a credibilidade da Anvisa e dos medicamentos fabricados no país.

Criador aponta má vontade

No Congresso, o cientista responsável pelos estudos com a fosfoetanolamina alega que a substância não chegou ao mercado por “má vontade” das autoridades. Ele afirma que o composto começou a ser pesquisado antes da criação da Anvisa, seguindo as regras estabelecidas na época pelo Ministério da Saúde.

Os resultados do estudo foram publicados em nove revistas científicas internacionais, mas não prosseguiram, de acordo com o pesquisador, por interesses financeiros. Alega ter solicitado diversas vezes à Anvisa a realização de pesquisas clínicas para liberação da substância.

Para o pesquisador, o câncer tem cura, não apenas por meio da fosfoetanolamina, mas também por outras substâncias que não foram avaliadas devido à lógica estabelecida pela medicina e os interesses da indústria farmacêutica.

Decisão judicial

Matéria publicada nos dias 21 e 22 de novembro relata o caso de um paciente de Arvorezinha que obteve na Justiça o direito de receber as pílulas de fosfoetanolamina sintética. Quarto gaúcho a conseguir acesso ao remédio, Oli Troian Pirovano morreu 20 dias antes da decisão judicial, após lutar por seis anos contra um câncer na próstata.

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