Ele disse: “Não recebo  ordens de mulheres”

Vale do Taquari

Ele disse: “Não recebo ordens de mulheres”

No trabalho, na rua e mesmo em casa. O machismo tenta emudecer as mulheres. Da década de 50 até hoje, a luta contra o patriarcalismo supera barreiras. As mulheres galgam posições e conquistam espaços. No mês dedicado a elas, histórias como a de Elka Hassmann, de Imigrante, de Antônia Baugratz, de Teutônia, e Clari Rodrigues, de Lajeado, ilustram o caminho trilhado para alcançar uma sociedade mais igualitária.

Ele disse: “Não recebo  ordens de mulheres”
Vale do Taquari

O episódio na Metalúrgica Hassmann continua na memória de Elka. Ela trabalhava na administração junto com o marido Karl, dono da empresa. No setor de produção, o melhor torneiro da fábrica desligou a máquina e sentou-se do lado de fora. Preocupada, questionou se estava tudo bem.

A resposta exigiu de Elka uma postura rígida diante dos demais 39 funcionários. “Ele disse que não queria mais trabalhar. Que tinha decidido encerrar o expediente.”

Pediu ao homem que retornasse ao trabalho. “Ele disse: quem é você pra me dar ordens? Não recebo ordens de mulheres”, relembra. Elka demitiu o funcionário na hora. As dúvidas surgiram quando tomou a decisão. O marido estava longe e aquele era o melhor torneiro.

“Disse para que ele não entrasse mais na fábrica. As coisas dele seriam jogadas na rua, onde ele queria estar. Nunca mais encontramos alguém que trabalhasse como ele. Hoje passa por mim na rua e vira o rosto, não me cumprimenta.”

As mãos calejadas ajudaram a construir uma das maiores metalúrgicas do país. Aos 88 anos, ela mantém a rotina. Todos os dias ocupa uma mesa, colocada na entrada da empresa. O dia de Elka começa por volta das 6h. Prepara o café da manhã e observa os pássaros. Admira a natureza e põe as ideias a funcionar. Depois da reflexão, segue até a fábrica, a poucos metros de casa, geralmente antes das 8h. “Ficar em casa é dose. Preciso de movimentação, ver pessoas”, diz.

No escritório, o “bom dia” é em alto e bom tom. Sobre a mesa, dois jornais e uma revista lhe aguardam. Manter o cérebro em atividade contribui para manter a serenidade. Além de jornais e revistas, lê livros.

A leitura a transporta para outra dimensão, onde as dores da artrite não alcançam. Entre as escolas literárias preferidas, histórias policiais com traços realistas e romances. O mergulho nos livros é intenso, a ponto de afastar o sono. Por vezes, inquieta por não concluir a história e na expectativa pelo próximo capítulo, vai dormir depois da meia-noite.

Na biblioteca pessoal, mais de 200 títulos ocupam a prateleira. Amor em Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez, a hipnotiza. A história relembra momentos da sua vida e dos caminhos destes quase quase 90 anos de vida. Embora brasileira, prefere a literatura em escrita alemã. Considera mais rica.

O contato com outras culturas facilita a escrita, hábito que mantém em paralelo com a leitura e com o gosto pelo cinema francês. Quando surge inspiração, pega caneta, papel e materializa os pensamentos. Segundo ela, tem vários escritos. “Às vezes, de um enterro que é triste, escrevo algo alegre, como uma comédia”, conta.

Frieza da guerra ensinou disciplina

A Segunda Guerra Mundial traz recordações. Elka tinha 10 anos. O policiamento na rua procurava qualquer descendente alemão que por ali cruzasse. As guarnições queriam inibir propagação política. Durante a noite, ninguém se arriscava a sair para a rua. “Fui perseguida como quinta coluna. Era muito ruim.”

Os cabelos louros, olhos claros e sotaque denunciavam a origem e preocupavam. O período foi tenso. Os clubes e comunidade evangélicas mantinham as tradições. Em cultos, músicas e rodas de conversa, imperava o idioma alemão, mas era motivo de alerta à polícia. “Parecia que éramos arquinimigos. Os jovens de hoje não conseguem nem imaginar o que sofremos.”

Divergências com uma cunhada levaram Elka a tomar uma decisão pouco convencional na época. Aos 12 anos, arrumou as malas e saiu de casa. De Imigrante foi morar com uma irmã em Lajeado. Na cidade, dedicou-se aos estudos e cursos profissionalizantes.

“Não queria voltar para a colônia e trabalhar na roça”, lembra. A dedicação levou a jovem Elka a estudar em internato e ser professora por 12 anos. Com 24 anos, retornou à cidade natal e conheceu o austríaco Karl Hassmann, com quem se casou.

Trabalho árduo

Em 1956, Elka e o marido abriram uma pequena empresa de esquadrias de aço, onde faziam aberturas. O casal e mais dois sócios mantinham os negócios. Havia poucas estradas abertas. O trajeto até a capital exigia um dia e meio até a entrega das encomendas.

Tempos depois, a sociedade foi desfeita e o casal Hassmann ficou sozinho. Elka trabalhou como funcionária a pedido do marido. As atividades eram as mais diversas, todas junto com os demais empregados. “Foi a melhor coisa que fiz. Todo empresário deveria ser funcionário antes de comandar os negócios. O aprendizado é imenso.”

Dispostos aos desafios, passaram a comprar vinho dos Irmãos Maristas, em Garibaldi, e vender em São Paulo. Para tanto, ficavam quase uma semana na estrada. Em uma cidade paulista, entregavam a mercadoria para um sócio. No retorno para o RS, compravam garrafas vazias e vendiam para as vinícolas. O negócio paralelo era lucrativo. Foram quatro anos mantendo as duas atividades.

Decidiram ingressar no ramo de parafusos. Compraram máquinas e iniciaram a produção. Elka continuava como empregada e ao mesmo tempo comandava os trabalhadores enquanto o marido viajava. Durante esse período, percebeu que precisava se impor e despertou o espírito de liderança. “Desde criança eu era muito chorosa, sentia pena se um animalzinho morria. Chegou um momento em que seria prejudicada por isso. Resolvi mudar.”

Aposta nas novas gerações

Os filhos Carlos e Peter Hassmann começaram a trabalhar na metalúrgica aos 14 anos. Ficavam um turno na fábrica e outro na escola. Hoje, os dois comandam o negócio, que emprega quase cem pessoas. Carlos é responsável pelo setor comercial e Peter atua no complexo técnico.

A continuidade da empresa que exporta parafusos já prepara a terceira geração. Os três netos sonham em manter a metalúrgica. Augusto Hassmann, 24, estuda Engenharia Mecânica. Letícia, 24, trabalha no setor administrativo. Gabriele, 15, está no colegial, mas se prepara para ingressar na empresa.

Força e disposição para vencer o preconceito

Entre as histórias de mulheres que fazem a diferença, a professora aposentada Antônia Baugratz acumula uma vitória que jamais pensara. Aos 74 anos iniciou musculação em uma academia em Teutônia. Em casa, sentia muitas dores. Ficar sentada no sofá assistindo televisão parecia tortura. Por indicação de amigos, ingressou na atividade.

Logo nos primeiros dias, já notou a diferença. O sono parecia mais tranquilo. Pela manhã, se sentia mais disposta. Os vizinhos notaram que estava mais ágil e caminhando mais rápido. “As dores que eu tinha foram saindo e percebi que fazer uma atividade física é melhor do que tomar um monte de remédio para dor.”

Hoje Antônia vai à academia todos os dias. A progressão nos treinos é compatível com a idade, mas evolui e promove bem-estar. “Gostei tanto que estou pagando para um dos meus netos praticar também. Ele fica muito tempo na frente do computador”.

Além da musculação, a aposentada se dedica a pinturas em tela e leitura de jornais. O Facebook é outra ocupação que administra bem. Há sete anos o filho instalou notebook para que a mãe navegasse na internet. O tempo na rede social serve para rever alunos e amigos.

Algumas reportagens sobre artesanato também chamam atenção. “Não gostava de computador, mas aprendi a usar e hoje lido bem. É uma ferramenta incrível, pena que tem muita informação desinteressante.”

Reconhecida por ensinar

Natural de Santa Rosa, Antônia passou por dificuldades quando se mudou para Teutônia. Com cinco filhos, mulher e negra, foi alvo de preconceito. No entanto, com perseverança e coragem, superou os problemas e conseguiu ser reconhecida no trabalho.

Formada em Ciências, pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), também se graduou em Biologia, em Passo Fundo. Por último, fez pós-graduação em Administração e Supervisão Escolar. Lecionou na escola Reynaldo Affonso Augustin e no Ieceg. No total, foram 29 anos dedicados à profissão.

Naqueles anos, havia mais respeito ao educador, compara. Nenhum aluno ousava desafiar os professores. Os pais delegavam a eles toda autoridade necessária para que os filhos aprendessem, acima de tudo, valores.

“Antes éramos bem vistos pela comunidade, tínhamos destaque. Hoje o professor é como mais um trabalhador.” Conforme Antônia, a maioria das mulheres negras da cidade era lavadeira ou doméstica.

Exceção à regra

Nas estradas, a direção dos caminhões é dominada pelos homens. As mulheres representam apenas 0,2% na profissão. Entre essa minoria, está Clari Rodrigues, 39. Faz nove anos que ela enfrenta o desafio. Escolheu mudar de trabalho para ganhar mais e também conhecer outros lugares.

Moradora de Lajeado, não economiza na personalização da cabine. Tapetes e protetores ganham a cor rosa, enquanto alguns acessórios servem para organização de produtos de higiene e beleza. “Preconceito ainda existe, mas onde eu ando já sou conhecida pelo trabalho.”

Como forma de cuidar da saúde e da segurança, é criteriosa na escolha dos locais de parada. Evita comer frituras e carne vermelha. Apesar dos cuidados, afirma ser difícil o controle alimentar. Em seis anos, estima ter ganho cerca de 30 quilos.“Os cuidados são individuais, muita gente não tem atenção.”

Aprendeu os roteiros com o ex-marido com quem viajou durante cinco anos e, hoje, chega a rodar mais de 17 mil quilômetros por mês. Com três filhos, todos acima dos 19 anos, fica mais de mês fora. A atuação nas estradas já lhe rendeu a participação em documentários mostrando a rotina do público feminino à frente de caminhões e carretas.

Em uma atividade dominada pelos homens, Clari Rodrigues desafia as estradas faz nove anos

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