A cidade com pouco mais de dez mil habitantes ainda tenta compreender a violenta madrugada dessa sexta-feira. Manchas de sangue na principal rua, nas imediações da rótula de acesso ao centro, marcam a discussão entre um grupo de pessoas que acabou com a morte do frentista José Carvalho Neto, 29.
Morto pela guarnição da Brigada Militar (BM) de Encantado, tentava proteger um policial do município gravemente ferido no conflito. Eram cerca de 3h. Como de costume, o policial, cujo nome foi mantido em sigilo pela BM, aproveitava os horários de folga para visitar amigos no posto de combustíveis Parada, com atendimento 24h.
Em outro ponto do estabelecimento, em frente ao restaurante, quatro pessoas estavam sentadas a uma mesa consumindo cerveja, segundo informações, desde a noite anterior.
Em determinado momento, o policial e as demais pessoas começaram a discutir. A mulher de um dos integrantes do grupo teria chamado o militar de “pata de porco”, o que potencializou as divergências. O bate-boca se transformou em luta corporal.
Nesse momento, o companheiro da mulher quebrou um copo de cerveja, provocou um corte profundo no pescoço do policial, e saiu correndo em direção a uma casa no outro lado da rua. Sangrando, o militar buscou uma arma guardada no carro e partiu em perseguição ao homem.
Da rua, disparou em direção ao companheiro da mulher, escondido na área da moradia. Na sequência, teria deixado o armamento cair e partiu contra o homem. Os dois voltaram a brigar, mas o policial acabou desmaiando, deixando seu agressor escapar.
Conforme populares, o frentista buscou o revólver para evitar que outra pessoa o pegasse e rendeu a mulher no intuito de proteger o policial machucado. Nesse meio-tempo, uma viatura da BM de Encantado, chamada para prestar reforço ao policiamento local, chegou.
Ao verem Neto armado e imobilizando a mulher por meio de um golpe conhecido por “gravata”, teriam ordenado a ele para recuar, confundido-o com o responsável pelas agressões ao policial. Em seguida, foi efetuado um disparo, que acertou a cabeça do frentista. Ele morreu no local. Com isso, a mulher fugiu. Mas pouco tempo depois, ela e o companheiro acabaram presos.
O policial ferido foi encaminhado ao hospital e se recupera. De acordo com o delegado Sílvio Huppes, o casal foi levado à Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA) e preso em flagrante por tentativa de homicídio.
“Achei que íamos morrer”

Disparo efetuado durante a perseguição atingiu moradia em frente ao posto de combustíveis. Idosos dormiam na sala
Na casa em frente ao posto, palco de parte da briga, vivem dois idosos e seu filho. Com câncer e aos 89 anos, o homem está em coma na sala da moradia. Durante a madrugada, a mulher de 86 anos dormia no sofá para tomar conta e fazer companhia ao marido. “Acordei com alguém chutando a porta querendo entrar. Achei que iríamos morrer”, relata a idosa.
Durante a discussão, ela lembra de um estampido na garagem. O disparo provocado pelo policial à paisana atravessou o portão, ricocheteou na parede e acertou a porta dos fundos. De acordo com ela, a única coisa que manteve os dois homens fora de casa foram as três trancas da porta da área. “Se entrassem, dariam de cara conosco e não poderíamos nos defender.”
Após acalmar a situação, a família saiu para ver o que estava acontecendo. Várias pessoas paradas na rua, olhavam para o corpo de Neto. Na área da casa, o sangue estava espalhado pela parede, na porta e em todo o piso.
Busca por informações
Os fatos ainda não estavam esclarecidos até o fim da tarde dessa sexta-feira. Os policiais responsáveis pela ação e outras testemunhas do fato foram ouvidas. Nem todas versões fecharam. Parte da briga pode ter sido filmada pelas câmeras de vigilância do posto de combustíveis. As imagens são analisadas pela Polícia Civil.
Neto trabalhava desde 2008 no estabelecimento e não tinha antecedentes criminais. Morador de Arroio do Meio, vivia sozinho com a mãe. Ao saber da notícia, ela entrou em estado de choque e precisou ser hospitalizada.
Policiais afastados
O Comando BM de Encantado afastou temporariamente os dois policiais militares envolvidos no caso. A corporação vai prestar acompanhamento psicológico aos agentes e abriu inquérito para apurar o caso, também investigado pela Polícia Civil.
Conforme Huppes, o casal que iniciou a briga será indiciado por tentativa de homicídio contra o PM agredido com um copo de vidro. Ele teve um corte no pescoço e segue internado. A polícia busca imagens das câmeras de segurança do posto e o relato de mais testemunhas para definir como enquadrar a morte do frentista.
“Teremos crescimento no índice policial”
Especialista em Segurança Estratégica, Gustavo Caleffi é sócio-diretor da Squadra Gestão de Riscos e atua na área de segurança faz 17 anos. Autor do livro Caos Social – A Violenta Realidade Brasileira, é administrador de empresas com MBA em Direccion de Seguridad en Empresas pela Universidade de Comillas, na Espanha.
A Hora – Qual sua avaliação sobre abordagens como a de Roca Sales, que resultou na morte de uma pessoa inocente?
Gustavo Caleffi – É um caso do qual ainda não temos conhecimento suficiente para fazer uma avaliação precisa. Na verdade, só vamos conseguir ter certeza sobre isso após a conclusão do inquérito policial. Me preocupa quando culpamos a corporação por essas situações. Faz poucos anos, aconteceu uma situação em Gravataí, no qual uma abordagem resultou em disparo por parte de um delegado muito bem preparado. Em um primeiro momento, toda a imprensa culpou o agente. Mas no inquérito se verificou que não houve erro e ele foi absolvido. É preciso muito cuidado.
A que você atribui as situações que resultam em mortes durante abordagens?
Caleffi – Existe por parte do Estado uma carência muito grande de treinamento e qualificação, tanto por parte da Brigada Militar quanto da Polícia Civil e até mesmo do Exército. A Polícia Federal era a única corporação brasileira com investimentos em treinamento e equipamentos, mas a tendência é de redução. Os outros órgãos não conseguem nem pagar a folha salarial, o que dirá realizar treinamentos adequados. Na minha opinião, teremos crescimento nos índices de erro policial, por falta de investimento em estrutura e qualificação.
Os índices de problemas em abordagens no RS são preocupantes?
Caleffi – Não chega a ser alarmante se compararmos com outros países. Temos índices semelhantes aos dos EUA. É impossível colocar o RS no mesmo patamar do Brasil neste caso. No Rio de Janeiro, por exemplo, temos uma situação grave, com muitas mortes resultantes das abordagens policiais. Infelizmente, não temos como precisar os números, pois os dados oficiais não são confiáveis. Porém acompanho todas as ações e posso dizer que a situação gaúcha não é grave.
A falta de efetivo e as dificuldades salariais são fatores que contribuem para os equívocos?
Caleffi – Embora o salário faça parte de um composto de situações que deveriam resultar em equilíbrio, imagino que os atrasos e a defasagem nos vencimentos não sejam um fator de risco. Porque, quando um agente está na rua, ele é policial, independente do que ocorra na vida particular. Já a falta de efetivo, sim, é uma situação preocupante. Até porque uma abordagem que deveria ser feita por quatro ou seis policiais geralmente acaba sendo atendida por um ou dois. Com isso, a probabilidade de erro aumenta.