Tecnologia altera os modos de brincar

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Tecnologia altera os modos de brincar

O avanço acelerado das tecnologias, aliado a incentivos consumistas massivos, transforma o jeito das crianças brincar. Práticas comuns de décadas passadas cedem espaço a brincadeiras virtuais. A mudança nos hábitos infantis preocupa educadores, pais e estudiosos. Reportagem a seguir compara o estilo de brincadeiras de gerações passadas com as atuais. Também ouve especialistas sobre os impactos da tecnologia na formação e no aprendizado.

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Joice Muncio Compagnone, 44, nasceu em Arroio do Meio na década de 70. A energia elétrica chegou com o aniversário de 4 anos. As bonecas eram de pano e espiga de milho, costuradas pela avó. Ramas de aipim serviam para construção de casinhas.

Anderson LopesNa escola, a diversão entre os colegas era pega-pega, esconde-esconde e pular corda. A criatividade era despertada o tempo todo. Jogos de bolita, futebol e caçador se espalhavam pelos pátios dos colégios. Joice cresceu no interior, mudou-se para o centro de Arroio do Meio aos 18 anos. Casou e teve dois filhos.

Um deles é Guthierre de 9 anos. Na escola, a preferência na hora do recreio está no smartphone ou no tablet. Em casa, jogos eletrônicos e redes sociais ocupam a maioria do tempo. Filho de uma geração digital, desconhece as brincadeiras da mãe. “No fim de semana, levo eles para o interior para que larguem os aparelhos, corram, se sujem e brinquem até na chuva. Se a vó deixar,” diz.

O exemplo da mãe e do filho acima é retrato da maioria das famílias. Expõe um paradoxo que desafia educadores, pais e estudiosos. Se no século XX as brincadeiras giravam em torno de objetos manuais, fabricados pelas próprias crianças, agora a diversão fica restrita aos aparelhos eletrônicos, que também se tornam canal de acesso para propaganda infantil. A indústria de brinquedos, eletrônicos e fast foods fez das crianças o principal alvo do mercado.

A coordenação pedagógica do Colégio Madre Bárbara, em Lajeado, constatou, em 2013, que na hora do intervalo correria, gritos, risadas e suor diminuíram. As crianças estavam quietas, sentadas e conectadas ao celular.

Segundo a coordenadora pedagógica dos anos iniciais Soraya Abichequer Beer, foi preciso um projeto para humanizar a hora do recreio, evitando o isolamento dos alunos em um horário destinado à socialização. “Muitas vezes nem notavam que estavam no sol, comendo sem parar, conectados ao celular.”

De acordo com Soraya, quanto mais ficavam conectados, mais reflexos surgiam. Por exemplo, a obesidade devido à alimentação inclinada a produtos industrializados – carregados em gordura hidrogenada, corantes e aromatizantes. “Foi preciso um trabalho de dois anos em parceria com os pais para que pudéssemos retomar a infância das crianças.”

A direção proibiu o uso do celular na hora do recreio e inseriu na cantina da escola salada de fruta, bolos integrais e sucos. Novos brinquedos foram instalados, calçadas e piso pintados para proporcionar brincadeiras como sapata, amarelinha e labirinto. O uso do celular ficou restrito: só pode usar em caso de urgência. “Isolados, têm dificuldades em aceitar a opinião contrária, tornando-se mais individualistas e não conseguem desenvolver um projeto em equipe.”

A medida adotada pela escola melhorou o relacionamento entre os estudantes, facilitando inclusive os trabalhos de grupo. Na semana da criança, turmas formaram elencos e apresentaram peças como O Mágico de Oz. Uma brincadeira que separava o palco e a plateia por uma linha invisível: a do jogo cênico.

De volta às bolitas

Há um ano, alunos da Escola de Ensino Fundamental Jacob Sehn, de Cruzeiro do Sul, passaram a levar de casa bolas de gude para jogar no recreio. A ideia foi assimilada pela maioria das crianças. A brincadeira era de fácil acesso para todos.

Segundo a coordenadora pedagógica Edelvânia dos Santos Santos, a prática é mais presente nos estudantes do 6º ao 9º ano. Na hora do recreio, nada de eletrônicos. Vários grupos se formaram para competições chamadas “às pelas”.

O jogo varia entre gude, buraco ou mata-mata. O primeiro reúne mais gente. Cada um aposta uma bolita no círculo riscado na terra. Depois, uma linha reta é traçada distante do gude. Quem jogar a bolita mais próxima da risca, começa.

Vanessa de Souza, 12, é a única menina do grupo. E uma das melhores. Ela joga desde os 6 anos e aprendeu com os amigos da comunidade de Bom Fim, interior do município Ao jogar na risca, quase sempre sai em primeiro. Quando consegue, “pela o gude” (tira todas as bolitas).

“Troks”, “brinks” e “escaps” fazem parte de um vocabulário próprio. No primeiro, serve para trocar de bolinha. No segundo, serve apenas para ver se vai dar certo a jogada e no último é quando, antes de jogar, a bolita escapa dos dedos. As regras são claras. Não há juiz. Todos sempre chegam a um consenso.

Alvos do mercado

O instituto TNS Brasil desenvolveu uma pesquisa e chegou a um resultado inquietante: as crianças brasileiras influenciam 80% das decisões de compra de uma família, incluindo carros, roupas, alimentos, eletrodomésticos. Quase tudo dentro de casa tem por trás o palpite de uma criança.

Especialistas alertam que na era contemporânea não se pode recompensar a falta de tempo com o filho atendendo os pedidos e expectativas geradas pela propaganda.

A criança é hipervulnerável frente à comunicação mercadológica. Entre os resultados do consumo irresponsável, estão a obesidade infantil, erotização precoce, estresse familiar e banalização da agressividade.

Para a psicóloga Carine Bernhard Duarte, outra consequência do consumismo infantil é a intolerância às frustrações e a inversão de valores – em que a qualidade dos momentos em família e amigos cede espaço à quantidade de brinquedos.

Para ela, o estímulo demasiado das mídias promove confusão na hora das escolhas: de um lado personagens envolventes, de outro, os pais que precisam fazer essa triagem. “Nestes momentos vale cuidar o tempo que as crianças ficam em frente à TV e as demais mídias. É preciso problematizar os pedidos, se é realmente necessário.”

Existe uma diferença na formação de crianças que ganham tudo o que pedem daquelas que não têm acesso a isso. Segundo a psicóloga, é nesse momento que o papel dos pais e da família se torna fundamental. “O indicado é que, além de presentes, as crianças ganhem atenção.”

Psiquiatra Rafael Moreno sugere equilíbrio

Jornal A Hora – Quais as consequências na formação de quem é alvo do consumo irresponsável sem a devida orientação dos pais e/ou educadores?

Dr. Rafael Moreno – As consequências envolvem o início precoce de comportamentos voltados aos exageros, imediatistas e disruptivos: passam a não ter limites.

Qual a responsabilidade dos publicitários neste processo?

Moreno – A função da propaganda é cativar o cliente e vender o seu produto. Não existe melhor cliente do que a criança. Imagine você ter uma empresa onde o seu cliente em geral inicia o consumo do seu produto desde antes dos 2 anos de idade e o consome diariamente até a morte. É o que vivenciamos hoje com a indústria de alimentos, principalmente. A obesidade e suas consequências, como a hipertensão e o diabetes, são doenças modernas que incapacitam e matam – fatores ligados diretamente ao excesso de ingestão calórica.

Quais as diferenças na formação de crianças que recebem tudo o que aparece na TV daquelas que não têm acesso, mas são alvos desse processo consumista?

Moreno – Ainda não são totalmente claras as diferenças, mas podemos realizar algumas reflexões sobre esse tema. Acredito que negar ou não dar acesso às tecnologias disponíveis é tão danoso quanto inundar uma criança com essas inovações. O caminho é o meio-termo.

Qual seria esse meio-termo?

Moreno – A Academia Americana de Pediatria recomenda que crianças com menos de 2 anos não sejam expostas a nenhuma forma de mídia, incluindo computadores, celulares e televisão. Sabe-se que o cérebro infantil necessita de contato humano para aquisição da linguagem e consequentemente da inteligência. Por exemplo, uma criança pequena não aprende a falar em inglês se for exposta diariamente a desenhos animados sem legendas.

O caminho então é dosar a tecnologia e não proibi-la?

Moreno – O ser humano é um ser gregário e social, portanto, necessita de contato humano para aprendizagem. Após os 2 anos de idade, o tempo de exposição às mídias é de, no máximo, duas horas por dia, sendo que os pais devem supervisionar o que a criança assiste.

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