Morte de adolescente abre debate sobre abordagem policial

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Morte de adolescente abre debate sobre abordagem policial

Abordagem da BM em paciente do CapsI é criticada por especialistas da saúde e da segurança pública. Vítima de 17 anos foi alvejada no abdome com um tiro de calibre 12 após supostamente ameaçar policiais e agentes do Samu com uma faca de 15 centímetros. Ele estava em “surto psicótico” no momento do fato, e também teria ameaçado familiares. Inquérito interno e Polícia Civil investigam a conduta do autor do disparo

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Lajeado – O corpo clínico do Hospital Bruno Born (HBB) confirmou a morte do adolescente Miguel Osório Alves da Silva, 17, às 10h30min de ontem. A vítima foi morta com um tiro de espingarda calibre 12, disparado pelo policial militar Bruno Dias Neves. O fato aconteceu na segunda-feira de manhã, em frente à residência do menor. Paciente com diagnóstico de esquizofrenia, ele estaria sofrendo um “surto psicótico” no momento do disparo.

Crédito: Anderson LopesA abordagem policial ocorreu na rua Elsa Maria Berner, no bairro Florestal. O adolescente teria ameaçado a mãe durante o surto. Com duas facas em punho, forçou ela a se trancar em um dos quartos da residência antes de ela chamar a equipe do Samu. O padrasto interveio e conseguiu retirar uma das facas de cozinha.

Ao chegar na casa do jovem, a equipe do Samu também teria sido ameaçada pelo paciente do CapsI, após ele deixar a residência “transtornado” e sair à rua com uma das facas. Os agentes de saúde se trancaram dentro do veículo de resgate médico, e então chamaram a Brigada Militar.

De acordo com o major Inácio Caye, chefe do 22º Batalhão da BM em Lajeado, e responsável pelo inquérito policial militar, os três policiais que foram deslocados até a casa do menor estavam em uma ocorrência anterior, e por isso o atirador estaria com sua espingarda carregada com projetéis ao invés de balas de borracha.

O disparo fatal teria acontecido por legítima defesa, segundo o major. Conforme a versão da BM, o jovem “investiu para cima de um policial com a faca em punho”. Ele estaria a menos de dois metros do possível agredido, quando Bruno disparou sua espingarda calibre 12. O tiro à queima-roupa atingiu parte do braço e do abdome da vítima, principalmente a região do fígado.

“Ele estava tentando substituir a munição por balas de borracha, mas não teve tempo”, sustenta. E acrescenta. “Pegou de raspão, não foi disparado contra órgão vital. Ele parece ter mirado em direção à mão”, reforça o major.

Segundo Caye, a mãe e o padrasto do adolescente, os agentes de saúde do Samu, e os policiais militares que participaram da ação serão ouvidos durante o inquérito interno da BM.

Respondendo pelo Comando Regional de Policiamento Ostensivo (CRPO) do Vale do Taquari, o major Ivan Urquia ressalta a instauração do Inquérito Policial Militar (IPM). “É esse IPM que vai averiguar o que aconteceu, se a arma usada era adequada ou não, se a abordagem foi correta ou não. A partir do momento em que o IPM é instaurado, qualquer comentário será precipitado.”

Conforme Urquia, o prazo para conclusão desse IPM, conforme previsto no Código de Processo Penal Militar, é de 40 dias. “Podendo tal prazo ser prorrogado por mais 20 dias se houver necessidade.”

Registro na PC após dez horas

O disparo contra o adolescente aconteceu por volta de 11h. No entanto, o registro da BM junto à Polícia Civil (PC) foi registrado somente às 21h9min. O atraso atrapalha as investigações. Não foi possível, por exemplo, fazer a perícia criminal no local para avaliar melhor a abordagem realizada pelos policiais militares.

“O registro foi feito tardiamente. A PC não tinha qualquer informação sobre o fato até receber o registro. Nem informalmente fomos visados”, reclama o delegado, Juliano Stobbe. Para ele, a demora na comunicação “causa estranheza e será avaliada na investigação”.

Stobbe reitera que a atribuição para investigar esse tipo de caso é da PC, e não da BM. Ele volta a criticar a demora do registro policial na delegacia. “É prejudicial pra investigação. O local foi desfeito, e de nada adiantaria perícia depois do atraso. O caso poderia ser resolvido com maior facilidade. Mas não acredito em má-fé da BM, e, sim, falha grave de comunicação”, salienta.

O delegado pretende solicitar apreensão da espingarda calibre 12 utilizada pelo policial militar, além da faca apreendida com o menor. Também será analisada a cópia do procedimento administrativo da BM. “O inquérito analisa a dinâmica dos fatos, para averiguar os eventuais indiciamentos dos envolvidos.”

Ocorrência acusa vítima

A declaração dos três policiais envolvidos na ocorrência policial de número 7847 trata a atitude do adolescente como “homicídio doloso tentado”. Registrado às 21h9min na delegacia da PC, o documento cita a participação dos policiais Diego Custodio da Silva, Rodrigo Pretto Rodrigues, além do responsável pelo disparo, Bruno Dias Neves.

Segundo o texto, ao chegarem no local, os três policiais encontraram Miguel parado na esquina com uma faca. Eles estacionaram a viatura atrás da ambulância do Samu, de onde saíram o motorista e uma enfermeira, confirmando a identidade do jovem e as ameaças sofridas anteriormente.

De acordo com depoimento dos policiais, Silva desceu do carro e viu Miguel indo em direção aos policiais. Rodrigues, que estava no banco traseiro, desceu e foi até o porta– malas da viatura para pegar um bastão. Enquanto isso, Bruno estaria descarregando a espingarda para trocar a munição real por antimotim.

Nesse momento, citam os policiais, Miguel correu em direção a Rodrigues dizendo: “É tu bombadinho, agora tu vai ver”. Silva sacou uma pistola e ordenou que o adolescente parasse. O jovem não teria obedecido. Quando ele estava a pouco mais de dois metros de Rodrigues – que estaria de costas para Miguel –, Bruno disparou uma vez com a espingarda 12 ainda carregada com munição real. Ele teria visado o braço direito, cuja mão portava a faca.

Os policiais falam da rapidez dos fatos, e citam ainda a participação de agentes do Samu na prestação de socorro ao menor baleado. Após, ele foi encaminhado ainda com vida ao HBB.

Mãe já registrou queixas

De acordo com o delegado, a mãe do adolescente já registrou mais de uma ocorrência via Lei Maria da Penha contra o filho. Segundo os relatos, ele já teria ameaçado ela de morte em outras oportunidades. O uso de facas para tais ameaças era corriqueiro, informa a PC. “Ele tem este histórico, mas não há outros antecedentes que não sejam contra a própria mãe”, informa Stobbe.

O delegado confirma o quadro psicótico do adolescente, e informa que ele não tinha a internação determinada pela equipe médica do CapsI. “Há indícios de esquizofrenia, de doença mental”, diz. Conforme informações da BM, o adolescente não gostava de frequentar o CapsI.

Para a secretária do Trabalho, Habitação e Assistência Social, Ana Reckziegel, a BM deveria ter ido ao local com armas não letais. “Se a Samu chamou eles, já deveriam saber que estavam tratando com um doente. Não deveriam ter ido armados.”

Segundo Ana, o paciente não tinha histórico de uso de drogas. “É a primeira vez que ocorre fato semelhante contra um paciente psiquiátrico. Uma tragédia”, cita ela, lembrando que ele também sofria de retardo e problemas familiares.

Familiares da vítima evitam comentar o ocorrido. Informam que os surtos de violência não eram comuns no cotidiano de Miguel, mas citam outros casos em que a Brigada Militar conseguiu conter o jovem sem o uso de armas de fogo.

A família alega ter solicitado internações compulsórias para o menor. Devido ao estado mental, ele raramente saía de casa. “Era uma pessoa especial que precisava de tratamento. Foi uma barbárie”, disse uma senhora que preferiu não se identificar.

MP aguarda investigação

O promotor da Infância e Juventude, Sérgio Diefenbach, espera a conclusão das investigações sobre o fato para tomar eventuais providências. “Ainda é cedo para um posicionamento do Ministério Público.”

Segundo ele, serão avaliadas responsabilidades. “Precisamos saber se foram adotados os procedimentos corretos e se o fato poderia ser evitado ou não.”

Mesmo assim, ressalta que é fundamental tirar lições para que tragédias como essa não se repitam. “Faremos reuniões com os serviços de saúde e segurança para uniformizar e aprimorar formas, métodos e condições de abordagem para este tipo de situação.”

Equipe do CapsI abalada

A notícia da morte de Miguel impactou a equipe do CapsI. A coordenadora de Saúde Mental da Secretaria de Assistência Social (Sthas), Josiane Bandeira, conversava com a reportagem quando a informação foi repassada pelos colegas. Ela critica a abordagem pontual da BM, classificando-a como “desastrosa”.

Ela chama a atenção para o problema envolvendo abordagem de adolescentes, mas a resposta da equipe veio por meio de uma nota encaminhada pelo secretário de Saúde, Glademir Schwingel. No texto, o CapsI lamenta o ocorrido e reitera a doença mental e momento de surto psicótico pelo qual passava o jovem na hora do disparo.

Sobre a abordagem da polícia, a Sesa se limita a dizer que “é prematuro qualquer tipo de julgamento, haja visto estar em andamento o procedimento investigatório”. Também presta solidariedade a todos os envolvidos, classificando como “uma infelicidade que afeta a vida, daqueles que vinham desenvolvendo esforços para integrar o jovem da melhor forma possível em um mundo que foi duro com ele.”

Casos envolvendo BM

Há pelo menos dois casos de morte envolvendo policiais militares nos últimos dois anos na região. Um deles foi registrado no dia 14 de julho de 2013, em Santa Clara do Sul. Lorran Rodrigues Diniz, 19 , foi atingido com um tiro na perna, disparado por um policial militar em serviço.

No depoimento, o PM afirmou que passava pelo centro por volta das 3h30 min quando ouviu três homens gritarem. O policial então teria parado a viatura, momento em que supostamente foi xingado. Após, Lorran e dois amigos teriam se envolvido em uma briga com o PM, que utilizou spray de pimenta para afastar os envolvidos.

Conforme versão da BM, após chamar outra viatura, o PM teria recebido um golpe no pescoço e atirado contra Lorran. O tiro atingiu a artéria femural da perna e a vítima morreu no HBB por volta das 9h50min.

Outro caso oconteceu em janeiro do ano passado, em Arroio do Meio, quando uma perseguição resultou na morte de Lucas Abel Knecht, 17, no dia 7. O fato aconteceu por volta das 20h, quando o adolescente pegou a motocicleta do pai para ir até a casa da namorada, no Loteamento Schuck.

De acordo com a BM, o jovem teria fugido após perceber viaturas. Foi perseguido e, durante a fuga, colidiu contra uma árvore. Ele morreu dias depois no hospital. No entanto, segundo familiares, Lucas teria sido agredido com um cassetete por um policial, e isso teria provocado a queda que o matou posteriormente.

Urquia não soube precisar os resultados dos IPMs realizados nesses casos. Ambos foram encaminhados e tramitam na Justiça Militar do Estado (JME).

Caso tem características recorrentes em situações de violência policial.”

Domingos Dresch da Silveira é procurador da República e professor de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A Hora – Como o senhor avalia o caso que vitimou o jovem Miguel da Silva?

Domingos Dresch da Silveira – É uma desproporção. Um adolescente, com transtorno mental e uma faca na mão contra três policiais militares armados. O caso tem características recorrentes em situações de violência policial. A principal é a desproporcionalidade. Mesmo que a pessoa esteja com uma faca, o policial armado e treinado não deve agir dessa forma. Existem formas de neutralizar que não seja o uso de arma de fogo.

A demora para o registro na polícia civil é um fator preocupante?

Domingos – Sim, pois de alguma forma pode evitar que se apresentem elementos que confrontem a versão policial. É uma questão muito séria e que precisa ser apurada pelo Ministério Público, pois vai além da situação de despreparo. A família também precisa procurar a Defensoria Pública, pois me parece um caso em que cabe indenização em processo contra o Estado.

Casos como esse são recorrentes no estado? Por quê?

Domingos – Infelizmente, sim, e temos que pensar além do caso concreto. Não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil. São vários motivos e o principal deles é a ausência de uma política pública de qualificação e formação dos policiais. Entra governo, sai governo e não temos propostas nesse sentido. Não existe nada mais perigoso para a população do que uma polícia despreparada, pois ela enxerga o cidadão como um inimigo.

Há mecanismos governamentais de proteção a pessoas que sofrem transtornos mentais?

Domingos – No dia 7 deste mês, foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que tem intenção de mudar a relação da sociedade com esses cidadãos e estabelecer políticas públicas em defesa dessa população. O caso ocorrido em Lajeado é uma triste coincidência, pois essa situação envolvendo a polícia ocorre no momento em que a lei foi recém-aprovada. Estão previstas medidas que proíbem a discriminação e estabelecem o tratamento prioritário dessas pessoas. Além disso, o estatuto assegura o direito à moradia e segurança, entre outras garantias semelhantes às do ECA e do Estatuto do Idoso.

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