DA FEBEM À FASE – Vale carece de estrutura para internação

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DA FEBEM À FASE – Vale carece de estrutura para internação

A punição com cadeia para menores infratores gera discussão na sociedade. Defensores da medida afirmam que tal decisão reduziria a criminalidade. Por outro lado, grupos realçam que prender adolescentes aumentaria a desigualdade social e abasteceria o crime organizado das penitenciárias com mais soldados. Com a aprovação da redução da maioridade penal por parte da Câmara dos Deputados, a polêmica ganhou novos episódios. Para virar lei, a proposta ainda deve passar pelo Congresso mais três vezes. Apesar disso, a internação dos jovens em fundações socioeducativas entra em xeque frente à dificuldade de recuperação dos infratores.

oktober-2024

Estado – A Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) foi a última unidade de internação de menores infratores na região. Desativada em 2002, restaram as histórias de maus-tratos e de cárcere privado. O complexo deu lugar à expansão do centro universitário de Lajeado.

Mas o que poderia ser um exemplo de desenvolvimento, na verdade, expõe a falta de espaços para a ressocialização e punição de adolescentes. Hoje, eles são encaminhados para a superlotada Fase, em Porto Alegre.

Um dos principais pontos de encontro de adolescentes lajeadenses foi palco de histórias de vida envolvendo jovens abandonados ou infratores. A área da unidade fica onde hoje está o Centro Cultural da Univates.

04A Febem foi fundada em 1978. A unidade de Lajeado tinha capacidade para 30 jovens com idades de 12 a 18 anos. Eram mantidos em regime de internato ou semi-internato. Iniciou como Centro de Atendimento ao Menor e Profissionalização Rural, oferecendo cursos de produtor de frutas e hortigranjeiros, avicultura e suinocultura.

A qualidade dos serviços atraiu outros adolescentes de cidades da região, lembra o historiador, José Alfredo Schieholt. Esses, mesmo sem terem cometido infrações ou serem vítimas de maus-tratos, vinham pela profissionalização oferecida no local.

O centro educacional da Febem em Lajeado levava o nome de Dr. Adalberto Brayer. Lá, misturavam-se crianças abandonadas, vítimas de maus-tratos, e também os jovens infratores. Não havia cercas nem muros. Por isso, adolescentes apreendidos por crimes mais graves eram encaminhados para unidades da capital gaúcha.

No local, foram implantadas parcerias com a administração municipal. Uma delas consistia na doação – por parte do Executivo – para a Febem. Em contrapartida, a Fundação repassava alimentos produzidos pelos internos às creches e demais entidades sociais.

Mas, com o passar dos anos, a degradação do local e a falta de investimento do Estado tornaram o espaço cada vez mais hostil. No início da década de 1990, eram intensos os rumores de agressões físicas, aplicação em excesso de medicamentos, castigos e cárcere privado em salas isoladas.

O atual vereador de Lajeado, Ildo Salvi, foi o último diretor da Febem. Ele assumiu em 2000, e confirma a degradação da estrutura. “Quando chegamos, os internos moravam em uma pequena casa de madeira e dormiam em retalhos de colchões. Não havia água potável e nenhum banheiro com porta”, lembra.

“Viviam em condições degradáveis”

A comida, preparada pelas cozinheiras contratadas pelo Estado, era entregue “entre grades” para os internos. O clima deixava claro as poucas possibilidades de ressocialização. “O complexo não objetivava ser uma unidade de internação. ”

Em poucos meses, a nova direção implantou o Programa Casa Lar, na tentativa de eliminar o estigma de internação do local. A medida tinha como principal objetivo humanizar o atendimento de crianças e adolescentes sem referência familiar, ou impossibilitados de conviver com ela.

Nova política

Dois anos depois, em 2002, por ordem do então governador Olívio Dutra, foi sancionado projeto de lei desmembrando a Febem no Estado. Foi criada a Fundação de Proteção Especial, para jovens abandonados ou vítimas de maus-tratos, e a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), para adolescentes infratores.

A Febem de Lajeado passou oficialmente a ser uma Fundação de proteção, ligada à Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social. Os adolescentes eram encaminhados pela Justiça ou pelo Conselho Tutelar.

Ella Johann foi empossada coordenadora da unidade em Lajeado em abril daquele ano. Em 2003, estavam abrigados dez meninos que eram atendidos por uma equipe de 11 funcionários, dos quais sete eram monitores.

Pouco tempo depois, já sob poucas perspectivas de investimentos por parte do governo estadual, uma negociação entre Ministério Público e Univates resultou na venda daquela área para o centro universitário. Os internos foram encaminhados para a Saidan, e os funcionários transferidos para unidades semelhantes em Taquari.

“Vamos pleitear uma unidade”

Promotor de Justiça responsável pela Infância e Juventude da Comarca de Lajeado, Carlos Fiorioli (acima) demonstra preocupação com a ausência de um local adequado para internação de jovens infratores na região. “Tão logo finalizada a obra da ala feminina no presídio, a nossa luta será por uma unidade da Fase no Vale do Taquari”, garante.

O promotor alerta para um aumento no número de delitos cometidos por menores nos últimos anos. “É fato que a região precisa, no máximo em uma década, ter uma unidade própria para internação de jovens punidos com medidas socioeducativas”, reitera o Fiorioli.

Hoje, mesmo com a defasagem em algumas unidades, o promotor garante nunca ter tido um pedido de vaga negado pela direção da Fase. “Desde que assumi, em 2013, nunca tivemos problemas com falta de espaço. Nunca deixamos de internar alguém.”

Fiorioli também elogia a agilidade do sistema. Segundo ele, nenhum processo envolvendo adolescentes infratores pode demorar mais de 45 dias para a sentença. “Ele é rápido e eficaz. Ao contrário do sistema penitenciário”, observa.

Homicídio e latrocínio em 2015

No ano em que a discussão sobre a maioridade penal voltou à tona, os crimes contra a vida cometidos ou com envolvimento de menores voltaram a assombrar o Vale. São dois registros em pouco mais de um mês.

O primeiro foi registrado em março, em Cruzeiro do Sul. Conforme inquérito policial, um adolescente de 16 anos teria atraído a própria mãe e o namorado dela para uma emboscada. Os dois acabaram mortos pelo pai do garoto, e ex-marido da vítima. O menor foi encaminhado para a Fase.

Outro caso ocorreu em abril. Por uma dívida de drogas no valor de R$ 400, Alcione Margarete Zwirtes Lopes de Oliveira e seu namorado, um menor de 17 anos, tentaram assaltar o taxista Valdir Antônio Pitol, 68 anos, de Arroio do Meio.

Ambos pegaram o táxi naquela cidade. Quando chegaram ao bairro Jardim do Cedro, em Lajeado, ela anunciou o assalto e ao mesmo tempo tentou estrangular o taxista com uma corda. Neste momento, o adolescente desferiu oito facadas na vítima. O jovem também foi encaminhado à Fase.

Comarca de Lajeado registra 131 ocorrências

De acordo com Fiorioli, além dos casos de homicídio e latrocínio envolvendo adolescentes nas cidades atendidas pela comarca, houve outras 129 ocorrências em 2015. Desse total, cerca de 95% resultou em penas educativas, cujo cumprimento fica a cargo das equipes dos Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas).

Por outro lado, quatro adolescentes foram encaminhados à Fase. Os infratores recolhidos à unidade instalada na av. Padre Cacique, na capital gaúcha, foram apreendidos por crimes como tráfico de drogas e furto.

O promotor alerta para os índices. “É um número alto, pois há uma média anual de dez encaminhamentos. Só nos cinco primeiros meses de 2015, foram seis”, observa. Segundo ele, nos primeiros cinco meses de 2014, só três jovens haviam sido levados para Porto Alegre.

Entre os principais crimes cometidos, Fiorioli enfatiza aumento na incidência de roubos, furtos, tráfico de drogas, receptação, furtos, estupros, direção perigosa e delitos ligados ao uso da internet.

Maior controle sobre os jovens

O promotor salienta a importância do trabalho com o Creas, da Secretaria de Assistência Social (Sthas) de Lajeado. Diz que o número de jovens encaminhados para medidas socioeducativas dobrou desde 2013. Lá, recebem advertências, prestam serviços à comunidade ou têm a liberdade assistida. A reincidência é de 10%, diz Fiorioli.

De acordo com a secretária da Sthas, Ana Reckziegel, em média 80 jovens infratores são atendidos pela equipe do Creas. “Fizemos um trabalho que é considerado referencial no estado. Estou muito incomodada com a redução da maioridade penal. É um absurdo. Um retrocesso.”

“É embaçado ver meus pais revistados ao entrar”

Com unhas e cutículas corroídas e hematomas nos dedos, um jovem lajeadense demonstra respeito ao diretor do Centro de Atendimento Socioeducativo Padre Cacique (Case PC) no momento da entrevista. Foi internado faz pouco mais de cinco meses. O crime pelo qual cumpre pena é tentativa de homicídio.

O jovem completou 18 anos dentro da Fundação. Quando cometeu o crime, já usava drogas há pelo menos quatro anos. “Comecei vendo a gurizada usando maconha e cocaína. Mas nunca cheguei a roubar para isso. Usava mais nas festas mesmo.”

Filho único de pais casados e trabalhadores, viveu toda infância em um dos bairros mais pobres de Lajeado. Meses antes do crime, havia largado os estudos no 9º ano do Ensino Fundamental. “Eu frequentava antigamente. Parei de estudar porque não tava mais a fim.” Dentro da Fase, ele é obrigado a frequentar a sala de aula todas às tardes de segunda a sexta-feira.

Ele afirma já ter trabalhado durante a adolescência como auxiliar em obras. “Tudo frio.” Na Fundação, utiliza o tempo à tarde para aprender com os cursos de especialização disponibilizados aos internos. Entre eles, oficinas de Rádio, Música, Dança Costura, Informática e iniciação ao mercado de trabalho e Pintura em gesso e tecido.

“Quero sair e tentar abrir negócio próprio. Meu pai tem ferramentas e eu sempre gostei de mexer com moto”, comenta. Ele deve ficar os três anos limite de internação. Mas, a cada seis meses, passa por nova reavaliação pela equipe da Fase e por um juiz. “Depende de como eu tiver na casa né?”, questiona o jovem ao diretor da unidade, Cláudio Luiz Gonçalves. A resposta é positiva.

Questionado sobre uma unidade de detenção mais próxima à cidade natal, comenta. “Iria ser melhor para as visitas, né ‘seu’. Vai saber, em dias de chuva, pode acontecer alguma coisa com os parentes que viajam.” Lembra também que há outros internos da região naquele internato. A Fase auxilia no custeio dessas viagens, de acordo com a necessidade das famílias.

Mesmo assim, ele demonstra ressentimento por receber os pais no hostil ambiente. “É embaçado ver meus pais sendo revistados para me ver. Não gosto que me visitem. Pedi para virem só de 15 em 15 dias.” Antes, eles vinham toda semana. “Mas é bom porque assim eles tão vendo que eu to bem. Me sinto seguro aqui.”

“É preciso readequar o ECA”

O presidente da Fase, Robson Luis Zinn (ao lado) é um dos expoentes gaúchos na defesa da maioridade penal a partir dos 18 anos. “A redução para 16 anos não vai diminuir de maneira nenhuma a criminalidade. O crime se movimenta, é preciso, sim, um sistema socioeducativo mais forte e adequado à nossa nova realidade”, afirma.

Zinn defende a atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com aumento do tempo de punição. Hoje, o documento assinado em 1990 prevê internação máxima de três anos para jovens que cometam crimes hediondos. “Mas aqui eles são obrigados a estudar e a frequentar cursos e oficinas de profissionalização. Há um portfólio de atendimento. O que não ocorre nos presídios.”

Segundo ele, além das 23 unidades instaladas no estado, o governo pretende construir mais três. Uma delas será em Santa Cruz do Sul. “Isso atinge diretamente a região do Vale do Taquari”, sustenta Zinn. “Com um local próximo, os jovens daí não precisarão vir até Porto Alegre. E o juiz não deixará de internar por falta de vagas.”

O presidente também ressalta os baixos números de apreensões de drogas, armas ou celulares. Diz que a última ação desse tipo ocorreu há dois meses, na unidade de Pelotas.

Fase tem sete internos do Vale

São sete jovens da região internados ou cumprindo medidas no Case PC. Eles são de Lajeado, Estrela, Encantado e Taquari. Dividem espaço com quase 80 internos do Vale do Rio Pardo. O prédio é inadequado.

Construído em 1864, foi doado por Dom Pedro II ao padre Cacique. Foi erguido no pé do morro Santa Tereza, nome que homenageia a então mulher do imperador, Tereza de Bourbon.

Antes de servir à Fase, funcionou como internato de meninas. Hoje, abriga infratores de 12 a 21 anos. “É preciso nova estrutura. De preferência, com apenas um pavimento”, sugere o diretor da unidade. Para Gonçalves, os cinco andares do centenário prédio prejudicam a agilidade da equipe de segurança em caso de brigas ou motins. E essas confusões são mais comuns do que o divulgado.

Nesta semana, um interno “estocou” outro menor dentro da unidade com um pedaço de ferro. Dias atrás, um monitor levou um soco no rosto. Há dois meses, uma briga generalizada envolveu 11 adolescentes. Teve início às 21h, e foi controlada às 3h do dia seguinte. Alguns envolvidos pertenciam a facções criminosas da capital gaúcha. “Houve também participação de jovens do Vale do Taquari, que tomaram lado na briga”, admite. A BM quase foi chamada.

Gonçalves festeja a previsão de inaugurar uma unidade de internação em Santa Cruz do Sul, e garante apoio a um provável pleito do Vale do Taquari por uma estrutura. “O vínculo familiar é essencial para a reabilitação do infrator, pois uma hora ele será desligado da Fase. Por isso incentivamos a visita toda semana. O ideal é estarem próximos, e são raros os casos de abandono.”

O diretor confirma que todas as visitas passam por revistas íntimas antes do contato com o jovem infrator. Há casos de drogas levadas por pais e namoradas. Em 2015, foram recolhidos dois celulares dentro da unidade. Já a apreensão de armas de fogo não é rotineira.

Rigidez constante

A cada seis meses, os internos passam por nova avaliação, a partir da qual o juizado pode antecipar a liberdade. A Fase também sugere alterações nas medidas. “Mandamos relatórios de comportamento aos juízes, em todas as áreas: pedagógica, comportamental, social.” Já o acompanhamento com assistentes sociais ocorre toda semana. “No Presídio Central, isso ocorre uma vez por ano.”

Gonçalves fala sobre as medidas tomadas após a briga envolvendo 11 internos. Conta que no mesmo dia foi instaurada uma comissão de três servidores. Os prazos para encaminhamento dos trâmites ao juizado, assim como as análises da defensoria pública, costumam durar menos de duas semanas.

Quase todos foram punidos com 15 dias de isolamento, sem direito a atividades externas. “Chamamos de atendimento especial. Pois não se usa mais o termo ‘isolamento’.” Todas as penas impostas passam pela avaliação de um juiz, de uma defensora pública, e pela equipe de assistência social e jurídica da Fase. “Por vezes, os prazos são de 24 horas”, afirma a advogada, Vivian Gomes.

Nas celas, o vai e vem de agentes é constante. Os internos andam em silêncio e há pouco barulho dentro das galerias. A reportagem não teve autorização para entrar nas celas. A cada atividade diferenciada, os internos são acompanhados e vigiados. Por vezes, sofrem repreensão por um simples passo a mais em direção ao agente.

Dados inconclusivos

A direção da Fase reitera o índice de reincidência – ou reingresso – de 32%. No entanto, o dado apresentado vale só para os internos que cometam nova infração no mesmo ano em que deixaram a unidade de internação. Ou seja, se ganhar a liberdade em dezembro, e cometer um crime em janeiro do próximo ano, ele não constará nas estatísticas.

“A ressocialização não depende só da Fase. São jovens que, na grande maioria dos casos, vieram de famílias degradadas, pobres, e sem muitas perspectivas”, observa Daniel Oliveira, chefe de equipe do Case PC.

O aliciamento do tráfico, cuja oferta chega a mais de R$ 100 diários só para guardar drogas, é outro agravante na recuperação dos jovens. “O valor é bem superior as bolsas de trabalho pagas e oferecidas a eles. É difícil competir”, sustenta Oliveira.

Para melhorar os índices de ressocialização dos internos, o diretor sugere o enrijecimento do ECA. Entre as mudanças, cita o aumento no tempo de internação para, no máximo, cinco anos. “Hoje eles ficam até três anos, o que já significa metade da adolescência. Mas tem criança de 12 anos que acaba ficando até os 18, pois sempre acaba voltando depois de ganhar a liberdade.”

Aumento da violência

Atuando faz 11 anos na Fase, Oliveira enxerga aumento na criminalidade e na violência dos delitos envolvendo menores. Hoje, 12,3% dos 1.180 internos estão lá por venda de drogas. Enquanto 15,6% são homicidas, 4,1% cometeram latrocínio, e 1,6% são estupradores.

No Vale do Taquari, a venda e a posse de drogas é o principal delito cometido pelos menores apreendidos pela Brigada Militar. Foram 57 apreensões desde 2012, conforme dados do CRPO. Na sequência, aparecem os furtos simples e qualificados, com 40 ocorrências, e a lesão corporal, com 26 registros. Desde 2012, a BM já apreendeu 246 adolescentes na região.

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