Frio congela a amargurada rotina

Você

Frio congela a amargurada rotina

Temperaturas baixam e tornam o repouso de quem vive em situação de rua ainda mais doloroso. Em Lajeado, o problema se acentua na medida que a cidade cresce. Moradores de outros municípios são atraídos pelas promessas de emprego e caem na vasta oferta de drogas. Muitos têm família, mas parecem não conseguir decidir o próprio futuro

Lajeado – O relógio marca 7h dessa sexta-feira. O termômetro um pouco menos. Os 4,7Cº gelados abalavam dois homens que dormiam em um espaço reservado a veículos na antiga sede de uma seguradora. O refúgio da rua Bento Gonçalves é disputado por outros moradores de rua durante a noite. Obviamente, é insuficiente para escapulir do frio.

03No local, a sujeira predomina. Cachimbos, restos de papelotes de cocaína e crack, camisinhas usadas, roupas íntimas, isqueiros quebrados, comida estragada, roupas sujas, jornais velhos, sapatos rasgados e até cascas de pinhão tornam o ambiente ainda mais nauseante.

Aos 25 anos e com um curioso bom humor, um bom-retirense repousa sobre um colchão surrado e aquecido por um cobertor grosso e sujo. Afirma se chamar Edson. “Estou aqui de sem-vergonha mesmo. Tenho família e emprego se eu quiser”, conta ele, antes de mostrar a carteira de trabalho com pelo menos cinco empregos recentes.

O abuso com as drogas fez ele escolher, há cerca de um mês, sair de Bom Retiro do Sul para viver nas ruas de Lajeado. Gripado e tossindo muito, ele pede auxílio para ter o que comer. “Não como faz dois dias”, relata. E depois faz outro pedido. “Eu gostaria de uma Coca-Cola, bem gelada.” Após, sorri novamente com um bom humor inusitado.

Edson diz ter duas filhas. Mas não soube responder as respectivas idades. Baixa a cabeça para falar delas. A mãe das meninas teria lhe deixado. “Faz tempo que não as vejo.”

Ao seu lado, repousa um homem de 38 anos, natural de Ijuí, mas que vive faz mais tempo em Lajeado. O nome dele é Luciano. Ele parece não acreditar que o amigo tenha filhas. “Isso tu não me contou.” Logo depois, cobra menos “brincadeiras”, cujo companheirismo foi criado pela dependência de drogas. “Tu ri agora, mas na verdade estamos chorando por dentro.”

Entre ele e o chão, há três pedaços de papelão. Sob a cabeça, um amontoado de tecidos sujos serve como travesseiro. O desconforto é flagrante. E a pouca renda vem de alguns bicos feitos na cidade. “Só consegui dormir porque bebi muito ontem. Hoje foi a noite mais fria”, confessa.

Luciano lastima a própria situação. Ao levantar-se do chão, tenta limpar a roupa e olha para si. “Olha que horror, que situação.” Neste momento, um antigo amigo passa em frente ao local. Ele se constrange. “Estes dias pedi dinheiro para ele de forma mais nervosa. É triste a gente perder amigos assim”, fala baixinho, enquanto o conhecido cruza a rua.

Ele afirma já ter passado pela Clínica Central e também pelo abrigo disponibilizado pela administração municipal para moradores de rua. Sobre este espaço, reclama. “Falta lugar.” Questionado se gostava de passar a noite no local ao invés de sofrer com o frio, ele reclama. “O responsável lá só me incomoda.”

Antes de se despedir, Luciano fala sobre um filme que o inspira. “É um com o Will Smith, Em Busca da Felicidade, eu assisti na Central. O cara enfrentou tudo e venceu. É possível”, consola-se.

Logo após, ele e Edson deixaram os colchões velhos e os trapos que o aqueceram para tentar arranjar dinheiro para o café.

“Só sei que nasci em 1955”

Deitado sob a marquise do prédio do INSS, na av. Benjamin Constant, em uma noite fria chuvosa da semana retrasada, Jorge diz não saber o próprio sobrenome. Sem documentos, não sabe a idade. “Só sei que nasci em 1955.”

Todas as noites, ele procura um abrigo para não dormir ao relento. Leva consigo apenas alguns cobertores velhos. O prédio do INSS é um dos locais preferidos, mas Jorge só pode ficar ali até a chegada dos seguranças, por volta das 6h30min. “Depois, vou para o mundo.”

Natural de Lajeado, foi morar na rua após a morte da mãe e da irmã, mas não sabe precisar como ou quando aconteceu. “Faz muito tempo, eu também deveria estar no cemitério”, divaga. Quanto à possibilidade de passar a noite em um abrigo, rechaça. “Só tem louco naquele lugar.”

Faltam vagas no abrigo

O único local adequado para receber moradores de rua em Lajeado carece de maior espaço. Hoje, 18 leitos estão disponíveis só para homens. Não há camas para mulheres no Abrigo São Chico, acanhadamente instalado em uma casa do bairro Florestal. O fato preocupa a secretária de Habitação e Assistência Social (Sthas), Ana Reckziegel. “É preciso um espaço maior.”

A demanda não para de aumentar. Conforme Ana, muito pela chegada de pessoas de outras cidades. Sobre a “revolta” de alguns com o abrigo, ela ameniza. Cita que a maioria opta por não ir em função das exigências. Lá, por exemplo, eles perdem a liberdade para beber e usar drogas, além da necessidade de manter a ordem e a limpeza própria.

Paulo Ervino Monteiro, 40, viveu durante dez anos nas ruas. Passou frio, fome, teve problemas de saúde, depressão. O divórcio foi o estopim para cair no alcoolismo. Bebia para esquecer. Viciou. Se não bebesse, passava mal. “Tinha ataque epilético.”

O álcool foi sua pior droga. Ficou tão viciado que não percebia estar há semanas na rua. Abandonou a família e não manteve mais contato. Não comia. Só bebia e vomitava. “Achei que fosse morrer.” Procurou ajuda no Caps. Foi medicado durante um mês e meio. Desde então, passou a viver no Abrigo São Chico.

Deparou-se com situações piores que a dele e passou a ajudar. O adicto em recuperação é hoje o coordenador do abrigo. Há quatro anos, não bebe, mas diz que ainda sonha com recaídas e que a vontade perdura e machuca. “É ruim porque a bebida está em todos os lugares.”

Há vitórias, garante Ana

Segundo ela, o governo prevê melhorias no local. Enquanto isso, gosta de citar também as boas ações realizadas pelas equipes da Sthas, e comemora a recuperação de quem conseguiu deixar a vida nas ruas. “Já conseguimos levar muitas pessoas de volta aos lares. Recentemente, um morador de Novo Hamburgo que estava aqui retornou para casa”, alega.

Fala com orgulho da história de outra ex-moradora de rua, que era viciada em crack e chegou a perder a guarda dos filhos. Hoje, com auxílio da Sthas e das equipes de apoio, do Cras e do Creas, a mulher recuperou o direito de cuidar das crianças e ainda conseguiu uma residência por meio de um programa popular. “Isso nos motiva. Pois há vitórias”, resume.

Ana atenta ainda para a necessidade de um trabalho contínuo e complexo. Cita a dificuldade de convencer as pessoas a deixarem os ambientes próximos das drogas para buscarem ajuda ou abrigo. “As equipes estão constantemente em contato com essas pessoas. Insistem para ajudá-las, mas muitas vezes a tentativa é em vão.”

Rede social “apresenta” os moradores

Uma comunidade da rede social Facebook tem como objetivo “apresentar” à comunidade aquelas pessoas que optam por morar longe de um abrigo. Denominado Lajeado Invisível, o portal tem série de perfis de pessoas vivendo em situação de rua. Os textos são postados pelos participantes do grupo, e também por profissionais da Sthas.

Em todo o Brasil, a ideia central do projeto é dar voz aos moradores de rua. Os administradores dessas páginas percorrem as vias brasileiras em busca de histórias para sensibilizar os seguidores a cada postagem.

O objetivo é escutar pessoas em situação de rua, fotografá-las e divulgar os relatos na rede social. Sempre com textos na primeira pessoa.

A página lajeadense já conta com quase 1,2 mil seguidores. Entre os relatos publicados, destaque para a história de Juliana Terezinha Bispo, de 35 anos. Discorre o texto: “Eu moro na rua porque depois que eu comecei a usar drogas, aos 25 anos, decidi ficar na rua junto com os meus amigos. Eu sou uma pessoa espontânea, alegre e feliz, e gosto muito de ajudar os outros.”

“Eles não têm saída a não ser

agredir a legalidade e a normalidade.”

O sociólogo Ivaldo Gehlen é um dos principais especialistas do RS sobre a temática de pessoas em situação de rua. Doutor pela Universidade de Paris e professor do programa de pós-graduação da Ufrgs, coordenou os últimos dois censos da população em situação de rua de Porto Alegre, feitos pela Fundação de Assistência Social e Cidadania.

A Hora – Por meio de suas pesquisas, é possível elencar os principais motivos que levam pessoas para as ruas?

Ivaldo Gehlen – O relatório da pesquisa realizada em 2007/8 com a população adulta em situação de rua em Porto Alegre demonstra padrões. O principal motivo alegado são as rupturas familiares, que representam 41% dos casos. Estão incluídas separações amorosas, maus-tratos que resultaram em fuga e morte de familiares. A carência de condições materiais e financeiras foi apontada por 23% dos entrevistados. Problemas de álcool e drogas, seja do morador de rua ou na família, representam 15%. Casos de conflitos na comunidade de origem e de opção por autonomia também se repetiram.

De que forma essa população se organiza?

Gehlen – A maior parte vive sozinha. “Eu e Deus”, como dizem. Confessam que perderam laços de consistência familiar, de relações sociais e de compromisso. Dormem em grupo por autoproteção ou porque são os poucos espaços permitidos. Nesses espaços, não há banheiros e nenhuma estrutura de serviços.

Na última década, o número de moradores diminuiu ou aumentou?

Ivaldo Gehlen – A população adulta em situação de rua está aumentando na mesma proporção do crescimento demográfico. A exceção ocorre em algumas cidades mais atrativas para eles, como Porto Alegre, onde o percentual de crescimento é maior.

As políticas públicas existentes hoje são satisfatórias para evitar a vulnerabilidade desta população?

Ivaldo Gehlen – Tendem a reproduzir a visão tradicional e externa a eles, que quase não são consultados. Esta situação está sendo superada pela pressão da própria população em situação de rua, que se organiza apresentando pautas e propostas. Há uma enorme dificuldade de diálogos e de entendimento.

Muitos desses moradores evitam ficar em abrigos cedidos pelo governo. Por que isso acontece?

Ivaldo gehlen – Os abrigos são planejados segundo modos e valores estabelecidos por quem pretende que eles retornem ao modo de vida considerado normal pela sociedade dominante. As regras são de negação da condição deles. É quase um prêmio para quem se comporta como nós, os outros, esperamos. Não há soluções que possamos apresentar, pois qualquer alternativa deve ser construída com eles.

Quais alternativas poderiam acolher adequadamente essa população?

Ivaldo Gehlen – Além de políticas de estímulo à saída da rua, é preciso melhorar os espaços urbanos e as oportunidades para essa população. Pessoas com mais de cinco anos nessa condição dificilmente aceitam propostas que mudem radicalmente seu modo de viver. Na maioria das cidades, não há espaço para banho disponível para eles ou banheiros noturnos. Precisam se virar nas praças e ruas e ainda reclamamos do cheiro! São sexualmente ativos, mas não há “lugar” para a intimidade reservada. Como tudo acontece no público, se caracteriza atentado ao pudor. Eles não têm saída a não ser agredir a legalidade e a normalidade.

Acompanhe
nossas
redes sociais