Após 60 anos, alfaiate desiste da profissão

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Após 60 anos, alfaiate desiste da profissão

Último do ramo em Estrela, Valandro perdeu clientes para a concorrência chinesa

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Estrela – Último alfaiate de Estrela, Valdemar Rorato Valandro, 71, fecha pela última vez a oficina que manteve intacta por décadas. Em poucas horas, materiais de construção começam a substituir equipamentos, e a alfaiataria de 8,5 metros vira depósito. A renda do aposentado e da mulher será complementada com o aluguel de um imóvel, construído ao lado pelo único filho.

03Valandro garante que não confecciona nem ajusta mais ternos e paletós. Com o tempo, diz, perderá a prática acumulada em 60 anos de profissão. Duas máquinas de costura reta serão vendidas. Outra, de costura zigue-zague, permanece para serviços caseiros.

O aposentado leva para casa, no segundo andar do prédio, só a tesoura. É de metal alemão, montada no Brasil há 38 anos e estanhada para evitar ação do tempo. “Nunca precisei afiar”, orgulha-se. Diz que a ferramenta de trabalho será herança dos netos, apesar de acreditar que nenhum deles seguirá sua carreira.

“A profissão acabou”, garante, apontando como resultado da queda do poder aquisitivo do brasileiro e da invasão dos produtos chineses. Conta que a maioria das tecelarias de qualidade faliu pela concorrência estrangeira. Entre elas, Aurora, Santista e Braspérola, das quais comprava tecidos com frequência. “A qualidade terminou. Não se encontra nem linho mais.”

O aposentado lembra que até os anos 90 o serviço compensava. Se fazia ternos que custavam, em média dois salários mínimos. “Hoje se vende ternos prontos por R$ 400, em até dez vezes sem juros. Lojas têm condições financiar, alfaiate não.”

Para Valandro, a profissão sempre acompanhou a economia do país: teve altos e baixos. Afirma que poucos alfaiates viveram com regalias. Nos períodos em que se vendia bem, o dinheiro era quase todo poupado para a estagnação, sempre certa no horizonte.

Ele lamenta a falta de planejamento do brasileiro, fator decisivo para as crises em alfaiatarias. Pela cultura, diz, se opta primeiro pelo carro e na sequência pela casa. “Vai se vestindo de qualquer forma. A roupa compra quando pode.”

Na estrada

Remetendo o passado em Santo Ângelo, sua terra natal, Valandro tem facilidade para continuar a conversa. Na primeira alfaiataria em que trabalhou, em 1954, seu instrumento foi uma bicicleta. Fazia o papel do telefone. “Tinha que pegar a estrada pra chamar clientes, avisar sobre encomendas e medidas.”

Naquela época, em que as pessoas se movimentavam mais devagar, carros eram raros. Motocicleta nem existia. “Se chamava de motociclo. Eram uns trambolhos.” Santo Ângelo foi um dos primeiros municípios do Estado a asfaltar vias do centro.

Em questão de pouco tempo, o mensageiro se tornou aprendiz. Começou a costurar bolsos e mangas. Em cinco anos, com um documento e algumas roupas, Valandro percorreu o Estado. Trabalhou em Cerro Largo, Cruz Alta, Porto Alegre e General Câmara. Na capital, em época de ditadura, aguentou oito meses. “Tinha muita bagunça nas praças. Muito conflito. Se chamavam de guerrilheiros,” diz. Era comum a repressão policial na Rua da Praia. “Às vezes, os brigadianos fechavam a rua nas duas pontas.”

Mais tarde, em General Câmara, o Exército lhe garantiu renda por 13 anos. O alfaiate fez fardamento para militares, no Arsenal de Guerra.

Em Estrela, chegou em 1981. Casou. Prestou serviços para José Osmar Sulzbach, na época, dono de uma alfaiataria ao lado da imobiliária Novo Lar, na rua Fernando Abott.

Trabalho continua

A decadência das roupas sob medida começou na década de 80, com o avanço do mercado de vestuário. Os alfaiates em atividade hoje têm, em média, de 60 a 70 anos. No entanto, algumas técnicas são repassadas. A maioria, para ajustes.

Há alguns meses, Valandro ensinou uma funcionária da loja Delai Renner, de Estrela, a qual prestava serviços. Parte de sua experiência foi repassada para Lovani Maria Leichtweis, 57. Ensinou como encurtar e alongar mangas, encurtar paletó e fazer bainha de calças. “Com um professor assim ficou fácil”, diz Lovani, que antes sabia só o básico da costura.

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