Negros buscam a consciência da sociedade

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Negros buscam a consciência da sociedade

Cultura africana está intrínseca em nosso cotidiano, mas falta reconhecimento

Vale do Taquari – Em 20 de novembro de 1695, o líder Zumbi dos Palmares foi morto em uma emboscada após ser traído por um companheiro. Teve a cabeça cortada e exposta em praça pública para servir de exemplo a outros escravos que ousassem buscar sua liberdade. Desde 2011 essa data é instituída como Dia da Consciência Negra.

03No Vale do Taquari, hoje, segundo o IBGE, há 8,2 mil pessoas que se consideram afrodescendentes. Antes da chegada dos alemães, os negros escravos já moravam na região. De acordo com o historiador José Alfredo Schierholt, no Vale do Taquari, os irmãos João e José Inácio Teixeira, donos das sesmarias na região, tinham cerca de 300 escravos.

A presença dos afro-brasileiros enriqueceu a etnia, vocabulário, culinária, farmacologia, folclore, ritmo e música no Estado. Ao longo deste mês, reflexões acerca do racismo e da discriminação ocorrrem em todo o país. O tráfico organizado de carne humana redesenhou o Brasil nos três séculos que absorveu esta prática criminosa. A escravidão deixou problemas profundos, dentre eles, o preconceito racial, a divisão de classes, a exclusão de setores sociais, a falta de reconhecimento e o estudo precário e ínfimo acerca da história africana nas escolas.

No Brasil, os negros buscam ainda hoje o reconhecimento. Conforme a professora de História e pesquisadora, Karen Daniela Pires, a Lei Áurea que os libertou da escravidão não devolveu a dignidade aos descendentes de africanos. “Não bastava receber alforria. Foram libertos, mas não tinham estudo, trabalho, nem moradia. Qual espaço iriam buscar?”, indaga.

As pesquisas do grupo do qual faz parte se baseiam, na maior parte, nas publicações de 1887 e 1888 do Jornal Taquaryense. O Projeto Análises e Perspectivas Geoambientais da Arqueologia e História do Vale do Taquari-RS procura analisar o processo de imigração e inserção da cultura açoriana e afro-brasileira no Vale do Taquari, entre os séculos XVII e XIX. Karen investiga a origem do discurso abolicionista da imprensa local nas páginas de um dos jornais mais antigos do Estado. Indícios apontam que os negros trabalhavam no cultivo do trigo, na extração da erva-mate e nos engenhos, destacando a região perante o Estado.

Até agora, a pesquisa conseguiu comprovar que antes da abolição, há pouco mais de 126 anos, proprietários de escravos estavam concedendo alforrias no Estado. “Temos uma dívida histórica com os negros. Não é porque se passou mais de um século que isto ainda não influencia em suas vidas. Os imigrantes europeus chegaram com outros objetivos, não para serem escravos. Enfrentaram dificuldades, mas ganharam suas terras. E os negros que já estavam aqui?”

Para a professora, o preconceito racial, a discriminação e a falta de igualdade é nítida nas escolas, universidades e no mercado de trabalho.

Quilombolas buscam apoio e união

Em Arroio do Meio, a comunidade quilombola que existe na localidade de São Roque conquistou direitos ao longo dos anos. Recursos básicos como água eram problemáticos antes do reconhecimento dos quilombolas. Hoje, além de ter resolvido esses problemas emergenciais, as 18 famílias quilombolas têm a possibilidade de construção de um espaço para a cultura africana.

Segundo o chefe da Emater do município, André Michel Müller, um projeto do Governo do Estado com o município angariou R$ 90 mil para a edificação de um Centro Multiuso. O espaço servirá como ponto de visita aos turistas, com exposição da gastronomia, utensílios dos grupos artísticos de danças, além de ser um espaço para assembleias. Outro recurso de R$ 15 mil chegará do Governo do Estado para o mobiliário e eletrodomésticos.

A dona de casa Rejane Maria da Silva, 54, vive no loal faz 25 anos. Ela está empolgada com a construção do centro. Depois de oficializar o território, relata que a vida da comunidade melhorou muito.

Araci da Silva, 78, é filha do fundador da comunidade, o Vovô Theobaldo. Conta que seu pai saiu da senzala em Moçambique e desembarcou em Estrela. “Seu primeiro trabalho foi cavar valetas”, diz. Conforme a aposentada, certa vez uma mensagem do além chegou ao se pai, dando-lhe uma missão. “Era para ele ajudar as pessoas do vilarejo e ele fez muita caridade. Benzia e receitava chás aos doentes”, conta.

Religião afro sofre preconceito

O babalorixá Julio de Xangô vem de uma linhagem com raízes diretamente ligadas ao continente africano – a cabinda. O primeiro a chegar ao Brasil com esta cultura foi Pai Valdemar. Ele passou os conhecimentos para Palmira e por conseguinte a Luiz Roberto e assim chegou a Henrique, seu pai de inspiração, fornecedor de seus conhecimentos. Júlio de Xangô é reconhecido pela Federação das Religiões Afro-Brasileiras (Afrobras) e diz que a presença de praticantes da religião sem a devida formação prejudica a cultura e dissemina o preconceito. Para ele, quem segue a hierarquia não tem por que cometer equívocos. “Geralmente se faz a pergunta de que vasilha você veio? E a gente sabe qual é a raiz.”

Vertentes como cabinda, candomblê, gege são encontradas principalmente do Estado e são cada vez menos cultuadas. Os nomes das religiões que são vertentes do batuque fazem referência às antigas tribos africanas.

Segundo o pai de santo, as oferendas e rituais são vistos como algo ruim pelas pessoas menos esclarecidas, quando na verdade fazem parte até dos escritos bíblicos. A simbologia do sacrifício do carneiro é exemplo disto. “Na escravidão, os senhores de engenho mandavam matar os animais e o que sobrava para os negros eram as vísceras, o sangue, a cabeça dos animais. Com isto, eles faziam as oferendas”, afirma.

No entanto, segundo ele, hoje é possível praticar a religião com ética. Na última semana, fatos assustaram a população de Estrela. Algumas ruas do centro amanheceram cobertas de pedaços de animais como cabeça de cabra e outras partes. “Isto não faz parte do batuque, que tem sacrifícios sim, mas não fazemos isto no meio da rua, tem que ter cuidado com isto”.

Segundo o pai de santo, algumas práticas culturais e religiosas estão se perdendo. O balê, culto que faz o assentamento aos praticantes, dando-lhes o direito a fazer rituais sozinhos, é exemplo disso. “Para fazer este ritual que iniciará um novo pai de santo é preciso o canto em língua yorubá – idioma falado no oeste da África – que pouca gente sabe ainda.”

A religião africana está intrínseca na cultura brasileira, embora não seja reconhecida. “No fim de ano não usamos roupas brancas? Não escolhemos as cores das roupas íntimas conforme nossos desejos? Não pulamos ondas no mar? Não comemos lentilha? Feijoada? Então somos todos batuqueiros”, finaliza.

Comunidade quilombola não reconhecida

João Gomes, 80, mora na localidade de Cupido, interior de Bom Retiro do Sul. Ali há uma comunidade com 25 famílias que buscam reconhecimento como quilombolas. No entanto, isto ainda não ocorreu. “Quando o boi não tem as guampas furadas, não afirma. Puxa cada um para um lado”. O provérbio de seu João é o reflexo do que acontece hoje na localidade. Diz que quando agentes do governo foram à localidade fazer a procuração, a maioria não compareceu à reunião. Lembra de quando era pequeno e não tinha água nem luz no vilarejo. “Fui eu que batalhei e briguei para chegar a água e a luz em nossa comunidade.”

Ao longo da vida, Gomes sofreu muito preconceito. Nascido em 1933, lembra com carinho da casa da avó, onde comia pão e algum prato de comida, quando estava com muita fome. Viúvo há 16 anos, sua esposa Maria de Lourdes Gomes foi vítima de uma infecção pulmonar e também sofria racismo. Teve oito filhos, um deles já morreu. Considerado um guru da comunidade, dá conselhos aos mais jovens. “Digo para não andarem em bando, nem usarem drogas.”

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