Imigração haitiana: entre o sonho e a marginalização

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Imigração haitiana: entre o sonho e a marginalização

Janeiro de 2010. As fronteiras entre Brasil e Haiti, apesar da distância de quase quatro mil quilômetros, parecem anexas. Uma série de desgraças, naturais e políticas, motiva debandada no país caribenho. Milhares partem em busca de recomeço. Entre os principais destinos no país, o Rio Grande do Sul. Calcula-se haver mais de mil no Vale do Taquari. Mas para a grande maioria as expectativas acabam em frustração.

Vale do Taquari – Em meio à multidão está Bernadel Ambroise, 39 anos. Natural da cidade de Jacmel, presenciou a casa ser reduzida a destroços pelo terremoto de 2010, quando dois primos morreram soterrados. Filho de pastor, casado e pai de três crianças, se viu forçado a deixar tudo para trás em busca de emprego. Vendeu o carro para conseguir chegar ao Brasil por uma rota que cruzou Quito, capital do Equador.

Mas os US$ 3 mil reservados para a viagem e primeiros meses de estadia acabaram antes do previsto. Foi explorado por estranhos que lhe cobravam caro por singelas informações. Outras despesas como passagem e documentação o deixaram sem um único centavo quando chegou ao Amazonas.

2Sem alternativas, agarrou a primeira oportunidade de trabalho, por R$ 722. Pagava R$ 500 de aluguel e enviava o restante ao Haiti para ajudar no sustento da família. Com as contas apertadas, passou fome e recorreu a outros homens para dividir a moradia e custear a locação. Chegou a perder quase 20 quilos.

Meses de miséria o fizeram cogitar um retorno ao Haiti. Mas como muitos outros que enfrentam a mesma experiência, voltar para casa é quase impossível. “Aqui tudo é caro e o salário muito baixo. Com o que sobra mal conseguimos viver, sequer sonhar com outra coisa.”

Passado quase um ano, obteve a informação, via internet, de haitianos bem-sucedidos no Vale do Taquari. No fim de 2012, decidiu arriscar a viagem para Lajeado. Empregado como servente de pedreiro passou a ganhar cento e poucos reais a mais, diferença pouco significativa.

Como ainda precisava repartir o salário com parentes e destinar quase o mesmo valor de aluguel pago antes no Amazonas, trouxe mulher e filhos para perto. Desde então, aponta uma melhora gradual nas condições de vida. Ela está empregada em uma indústria na cidade e ambos dividem as contas. Todos, junto com a cunhada, agora moram em uma casa mista no centro.

Mas a necessidade de trabalhar e cuidar da família ao mesmo tempo, por vezes, volta a separar o casal. A mulher trabalha à noite e Ambroise de dia. Quando um sai para o serviço, o outro está voltando.

Com visto humanitário, o homem tem direito a permanecer no país até 2021, podendo renovar a licença por igual período. A mulher e as crianças têm ainda pouco mais de quatro anos e dependerão de análise do governo federal para renovação.

“Eles precisam de oportunidades”

O apoio brasileiro ao processo migratório, no qual abre suas divisas para o ingresso de estrangeiros, faz parte um complexo sistema de globalização. No caso do Haiti, a população local sofreu ao longo da construção do país, tanto por questões de colonização como por governos autoritários.

Tais condições, antes precárias, decaíram até a miséria profunda com o terremoto de 2010. “A comunidade se viu diante de uma grande pressão e ficou vulnerável”, avalia o sociólogo Cesar Goes. As nações protetoras dessas classes ainda precisam fortificar suas estratégias de restabelecer a democracia, de reconstrução no caso de tragédias e de recepção de refugiados, pontifica.

Haitianos migrantes para o Brasil enfrentam seguidos preconceitos e discriminações, opina Goes. Esses povos só serão aceitos pela sociedade brasileira na medida em que consigam mostrar suas tradições e valores. Contudo, precisam de oportunidades dignas.

No caso específico do Vale do Taquari, o sociólogo descarta haver tratamento diferenciado em relação a outras regiões devido à origem cultural. “Quem vem para cá não tem muito a perder. Qualquer acolhimento será fantástico”, supõe o sociólogo.

Goes ressalta a importância de haver um processo mútuo de aprendizagem entre as diferentes culturas. Para ele, elas não devem buscar uma união, mas sim criar raízes diferenciadas e em respeito coletivo. “Seria trágico se esse processo de socialização acabasse com as características de um povo”, conclui.

Lajeado começa mapeamento

Nenhuma entidade ou órgão público tem informações precisas sobre o número de estrangeiros ou sua localização no país. Pesquisadores estimam a existência de 20 mil imigrantes haitianos, quantidade que pode atingir a casa dos 50 mil até o fim deste ano. No Vale do Taquari, talvez passe de mil.

Desde a metade do ano passado, a Secretaria de Trabalho, Habitação e Assistência Social (Sthas) de Lajeado contabiliza os estrangeiros na cidade. A medida surgiu após uma enchente, quando dezenas de imigrantes ficaram desalojados e precisaram de abrigo. “Sabíamos das empresas os buscando no norte, mas não fazíamos ideia de quantos eram”, aponta a secretária Ana Reckziegel.

Várias reuniões foram realizadas pelo governo a fim de encontrar uma maneira de amparar as famílias. Empresários foram convidados, mas, segundo Ana, nenhum compareceu ou mostrou interesse em ajudar. “Tem exemplos de municípios em que as empresas trazem, dão moradia e auxílio por meio ano. Aqui isso não acontece.”

Nas primeiras tentativas de contato com os estrangeiros, surge o primeiro entrave: a dificuldade de comunicação. Nesse meio tempo a secretária conheceu Renel Simon, 25, um haitiano que trabalhava como tradutor intérprete no Haiti e conhecedor de quatro idiomas: inglês, francês, português, espanhol e do dialeto crioulo, língua nativa. Contratado pelo Cras, em 9 de abril deste ano, ajuda na mediação.

O trabalho de Simon apresenta resultados, mas ainda depende do apoio das empresas para apontar os números exatos. A partir das pesquisas, diz ter identificado cerca de 400 haitianos em Lajeado, 100 imigrantes de Bangladesh e outros 100 entre indianos, nigerianos e senegaleses.

Do preconceito a superação

Os haitianos evitam falar com estranhos, e também aparecer em fotos. Muitos tiveram seu direitos sonegados, sofreram preconceitos ou foram enganados. De acordo com eles, a maioria dessas agressões ocorre no próprio trabalho, inclusive por empregadores.

Simon está entre os poucos haitianos que integram o poder público, essa condição lhe permite gozar da confiança de seus conterrâneos. Como ele, os demais chegaram ao país na mesma situação: sem dinheiro e apenas com a roupa do corpo.

Diversas doações por parte de moradores são feitas aos estrangeiros, como roupas, sofás e alguns equipamentos domésticos. Mas boa parte dos itens não pode ser reaproveitada. “As pessoas associam negros à pobreza”, alega Simon. “Em vez de colocar no lixo, elas nos dão. Precisamos de coisas que ainda podem ser usadas, não de trapos”, sustenta.

Para o intérprete, haitianos podem até apresentar dificuldades, mas são extremamente organizados. A maioria dos problemas do Haiti, avalia, decorre da má administração dos governos e da influência norte-americana.

Diferente de como ocorre no Brasil, na terra de Simon jovens só podem começar a trabalhar a partir dos 18 anos. A regra sucede pela falta de opções de emprego. “Era complicado antes do terremoto, mas depois acabou quase tudo. Viemos para cá porque no nosso país não temos condições para nada.”

A força de vontade de Simon se assemelha a de muitos outros imigrantes do país caribenho. Como ele, a grande maioria quer estudar e se desenvolver, mas a jornada diária de trabalho tornou-se um dos principais desafios.

Está concluindo o Ensino Médio na escola Érico Veríssimo, de Lajeado, e foi aprovado no último vestibular da Univates para o curso de Relações Internacionais. “Como somos de fora, precisamos de ajuda no estudo, porque o dinheiro é pouco. Vou buscar uma bolsa ou outro tipo de auxílio.”

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