Lajeado – A dor causada pela morte de um filho é imensurável. Quatro anos depois de passar por isso, o mecânico Alex da Rosa luta para evitar o amargo sentimento pela segunda vez. Sem condições financeiras para conseguir um tratamento para a filha Pamily, de apenas nove meses, ele se agarrou na fé.
Desde a madrugada de quinta-feira, caminha pela BR-386 em direção a Porto Alegre. São quase 120 quilômetros de chão entre Lajeado e a capital gaúcha. Com uma cruz de quase 10 quilos pesando nas costas, busca por um milagre: a cura para a Atrofia Muscular Espinhal (AME), até hoje desconhecida pela medicina mundial. A doença mata lentamente a filha.
A mescla de esperança e desespero do pedreiro de 34 anos iniciou há duas semanas, quando a doença foi diagnosticada. A morte precoce da outra filha, até então um mistério para a família, também foi decifrada com os exames de Pamily. A doença é genética. “Minha outra menina morreu dormindo no berço.”
Pamily é alegre, ativa e encantadora. É a caçula de outros dois irmãos, que nasceram saudáveis. A família tem poucas condições financeiras. Vivem com uma renda mensal inferior a R$ 1 mil. A filha que morreu foi pouquíssimas vezes analisada por um médico enquanto viva.
Sabedores da gravidade da doença, Alex e a esposa Elizabeth se agarraram a fé para suportar os últimos dias de angústia. Na noite de quarta-feira, o pedreiro afirmou ter sentido um “toque” de Deus. “Estava rezando ajoelhado, quando me veio na cabeça: vou caminhar até Porto Alegre.”
Menos de 10 horas depois, de chinelo, bermuda e algumas peças de roupa em uma mochila, ele iniciou a peregrinação. Montou ele mesmo uma cruz de madeira. Pendurou uma lanterna na frente e um refletor de bicicleta na parte de trás para enfrentar os riscos da noite na rodovia. Junto dele um cartaz: Pela cura de Pamily.
Solidariedade no caminho
Pouco mais de 30 quilômetros após deixar a singela residência no bairro Santo Antônio, debaixo de um dilúvio, o primeiro bom sinal. Eram pouco mais de 11h e os pés já doíam. O chinelo pouco amortecia o impacto com o chão. Ao sentar em uma parada de ônibus para descansar, Alex encontrou um par de tênis usado. “Serviu direitinho”, brinca. Um pouco adiante, uma mulher lhe entregou um santinho.
Enquanto conversava com a reportagem, foi abordado por um gerente de uma rede de farmácias, que deixou o carro no acostamento da rodovia para ir ao encontro a Alex. Meio sem jeito, o empresário pediu licença para ajudar. “Posso te entregar algum dinheiro para tu comer”, questionou. Ele aceitou, e, sem olhar a quantia, apenas guardou as notas no bolso. “Vai com Deus”, disse.
Por volta das 20h de quinta-feira, quando já chegava em Tabaí, Alex foi impedido de prosseguir por dois moradores. Eles insistiram para que ele descansasse e dormisse um pouco em um pequeno galpão à beira da estrada. O pedreiro refutou, mas acabou aceitando a ajuda.
Partiu logo pela manhã cedo, levando alguns lanches doados, e que só seriam consumidos após às 18h. Além da peregrinação, ele cumpre uma outra promessa e mantém jejum todas as sextas-feiras. Quando os pés estavam cobertos de bolhas e o tênis “novo” gasto, outra grata surpresa. Um casal de religiosos o interpelou na estrada e doou um calçado novo, na caixa. “Surgiram do nada”, lembra.
Até o início da noite dessa sexta-feira, Alex seguia na peregrinação. Estava em Canoas. Não pretende desistir, mas não sabe presumir o que lhe aguarda no destino. “Não sei o que me espera. Quero uma bênção, e que na hora em que eu voltar ela esteja curada. Se Deus quiser, vai ter alguém me esperando para me ajudar.”
Apoio de quem viveu mesmo drama
A dona de casa Therezinha Klein, de Lajeado, 49 anos, se emociona com a perseverança de Alex. “Só eu sei o que ele está sentindo.” Em maio do ano passado, a filha dela morreu vitimada pela mesma doença. Ela tinha 19 anos quando sofreu uma parada cardíaca no sofá de casa. Os médicos haviam lhe dado apenas nove anos de vida. “É uma doença cruel.”
Therezinha estava recolhendo roupas no momento em que a filha parou de respirar. “Fiquei cinco minutos longe, e quando voltei ela estava morta. Em toda vida, não passei dois dias sem ver ela.” A doença de Karine Klein foi diagnosticada quando ela tinha pouco mais de um ano de idade. Foi o pior momento. Até então, seu desenvolvimento foi perfeito. Tudo indicava para uma criança saudável.
Mas a doença não permitiu que Karine aprendesse a caminhar. Com o tempo, o quadro foi piorando e ela precisava de auxílio quase 24 horas por dia. Desesperada, a mãe procurou todos os tipos de terapia que estavam ao alcance. “Fui a Goiás, Rio de Janeiro, passei em dezenas de curandeiros e hospitais. Nada adiantou.”
A menina conseguiu estudar até a quarta série. Após isso, devido à fraqueza, fisioterapeutas e professores particulares passaram a auxiliá-la em casa. Apesar das limitações, era alegre, carinhosa e muito inteligente. “Era ela quem explicava para os outros a doença. Dizia que uma pecinha havia pifado”, lembra a mãe.
Sobre Alex, a mãe de Karine demonstra uma mescla de preocupação e solidariedade. “Sabemos que não existe cura, mas ninguém tem o direito de retirar a esperança desse pai.” Ela pretende procurar a família do pedreiro. Quer ajudar de alguma forma. E faz um pedido. “Se puder falar com ele, tenho um único conselho. Fique o máximo de tempo próximo da menina.”
Médicos atestam: não há cura
Existem estudos avançados com células-tronco para buscar a cura da doença. Mas, por enquanto, são só pesquisas. Segundo a neuropediatra, Patrícia Zambone, a AME é uma doença neuromuscular de origem genética. “Infelizmente, até o momento não existe cura.”
Ela comenta que o único tratamento disponível é o acompanhamento médico, que tem como objetivo retardar as complicações da patologia. A médica alerta. “O paciente deve ser acompanhado em centro de reabilitação física.”
Entre os principais sintomas, estão dificuldades de deglutição e sucção. As pernas tendem a ser mais fracas que os braços, apresentando ainda dificuldades para se alimentar, aumento na susceptibilidade a infecções respiratórias persistentes e acúmulo de secreções nos pulmões e garganta.
Crianças afetadas têm dificuldade em se sentar de forma independente e são incapazes de se levantar e de andar com um ano. A fraqueza muscular (quase sempre simétrica) afeta predominantemente as pernas e os músculos do tronco. Tremor dos dedos é frequente. São comuns a insuficiência respiratória, escoliose e fraturas em resposta ao mínimo trauma. Os óbitos, na maioria dos casos, decorrem de problemas nos pulmões.
A crença influi na saúde
De acordo com o médico, a ciência tem resultados sobre a fé em tratamentos médicos. “A crença influi na saúde”, afirma Spritzer. Segundo ele, há um erro científico quando o mundo físico e o imaterial foram separados em estudos de René Descartes.
Para ele, o ser vivo não é uma máquina, mas algo mais complexo e multidimensional. Hoje, a Física Quântica se aproxima de um conceito mais aceito pelo médico. “Nossa saúde está nessa dança misteriosa entre a matéria e a energia.”
Na avaliação de Spritzer, a fé – não só religiosa – é um excelente remédio. “Pessoas que acreditam em si próprias conseguem resultados surpreendentes. Não é uma entidade que nos agracia. Somos nós os criadores dos milagres.”
“Quando não há uma saída, ela é procurada no mundo mágico”
Pesquisas atestam os efeitos do pensamento em casos como tratamento de doenças. Experiências místicas, como a de Alex da Rosa, podem ter relação com o efeito placebo (tratamento sem ação específica nos sintomas, mas que pode causar efeito), gerado pela expectativa da cura da filha.
Para a psicóloga Cláudia Sbaraini, ele deposita na atitude a fé para mudar a realidade que não aceita. “Deposita nisso uma forma de resolver o caso, de ter o controle da situação.” Concorda que a fé pode contribuir no tratamento das enfermidades.
Segundo ela, pessoas deprimidas têm tendência a algumas doenças. Por outro lado, aqueles com pensamento positivo, têm uma visão da vida e enfrentam os problemas de forma mais clara. “Acreditar em algo ajuda, mas não sei quanto. O poder da mente é grande. Pode transformar, ou ser um empecilho, quando há uma negação da realidade.”
Um dos precursores da Neurolinguística no país, o médico cardiologista Nelson Spritzer avalia essa busca por um milagre como um ato desesperado. Sobre o “toque de Deus” que o pai teria recebido na quarta-feira, diz que a ciência não tem como medir. Mas, acredita ser provável a interferência dos sentimentos frente a uma situação em que pode fazer pouco. Segundo Spritzer, há efeitos positivos em pacientes com alguma crença. Cita uma experiência realizada no Instituto de Cardiologia de Porto Alegre. Dois grupos de operados foram distribuídos em dois grupos.
Um deles participava de orações e o outro com o tratamento convencional. De acordo com o médico, vários estudos comprovam essa relação. “A esperança é um excelente remédio. E não temos uma explicação científica para isso.”
Para Sprintzer, a atitude de Rosa em carregar a cruz, sujeito aos perigos de um atropelamento, é uma temeridade. No entanto, diz, se provocar um efeito benéfico à família, associada a esperança de todos, pode contribuir.