Rio Grande do Sul – Os primeiros contatos entre líderes regionais e o governo do estado Autônomo da Galícia ocorreram em 2005. Uma comitiva formada pelas principais entidades representativas do Vale do Taquari visitou a região espanhola, considerada modelo mundial na produção leiteira.
De lá, vieram exemplos e projetos que ajudam a organizar e qualificar a cadeia produtiva local. Oito anos depois, a ação do Ministério Público (MP) dessa semana comprova que, apesar da melhora na produtividade, sanidade e genética dos animais, o setor segue atrasado.
A investigação do MP mostrou como ocorria a adulteração do leite cru no transporte do produto entre o posto de resfriamento e as indústrias. Água, ureia e formol foram detectados em amostras. Cinco transportadores estão envolvidos no esquema. Nenhum da região. As indústrias Latvida e Hollmann, com fábricas no Vale do Taquari, foram interditadas.
A operação resultou em 13 mandados de busca e na prisão de seis pessoas. Ao todo 600 mil litros de leite serão descartados. Na tarde dessa quinta-feira, o secretário estadual de Agricultura, Luiz Fernando Mainardi, anunciou que o estado irá propor o fim da atividade do transportador autônomo. O governo quer exigir das fábricas a responsabilidade pelo transporte.
No Vale, a atuação desses transportadores angustia autoridades. A falta de fiscalização comprova o atraso do setor, mesmo após a implantação do Projeto Piloto de Erradicação de Brucelose e Tuberculose. Com a falta de matéria-prima, a maioria das indústrias remunera o transportador pela quantidade entregue.
O produtor José Gabriel Labres, de Lajeado, trabalha há 30 anos com a atividade e vende para uma das empresas citadas no processo. O transporte é feito por motoristas autônomos. Ele tem três vacas que produzem uma média de 30 litros por dia. A ordenha é manual, com pouca higiene. “Lavo bem o úbere.”
O local não apresenta garantia de sanidade. Há fezes por toda estrebaria. No local, há proliferação de moscas e mosquitos, o que comprova a precariedade com a limpeza.
Admite o desleixo e argumenta: “Estou largando esse serviço. Acho que ano que vem encerro minha produção”. O transportador que recolhe o leite para levar à fábrica não se preocupa com a estrutura precária. Todos os dias, busca o leite armazenado no freezer da família por até 48 horas de forma amadora em bacias, baldes e tarros. “O leiteiro leva de tudo. Inclusive azedo ou coalhado. Diz que faz queijo e não faz mal.”
“Uma teta é para o leiteiro”
Labres reclama da forma de atuação dos transportadores. Com o baixo valor do frete, comenta que muitos subornam o produtor na hora de pesar o leite que é vendido. Ironiza a situação com a música da banda gaúcha “Os 3 Xirus”, cuja letra provoca: “Uma teta é para o leiteiro”. Labres garante que dificilmente a pesagem do produtor fecha com a do freteiro. “Não vale a pena reclamar por pouco. Mas se eles fazem isso com todos, o lucro é bem atrativo no fim do mês.”
De acordo com o agricultor, em propriedades vizinhas chega a faltar até cem litros por mês em decorrência das diferenças de pesagens. Muitas vezes o fato resulta em brigas entre o freteiro e o dono da propriedade.
Lamenta o pagamento por quantidade, em detrimento a qualidade do produto. Alguns levam amostras do leite recolhido. Mas inexiste obrigação ou comprovação de que eles serão analisados por um laboratório.
Labres faz parte de um grupo de pequenos produtores que resiste em qualificar a produção. Chegou a ter sete vacas. De uma delas, tirou sete crias, quando o ideal sugerido pela Câmara Setorial do Leite são três. Ele recebe R$ 0,63 por litro de leite. Descontado os impostos e taxas, sobra pouco mais de R$ 0,40. Possui 2,5 hectares de terra. “Poderia ter até dez vacas e produzir média de180 litros diários. Mas faltam crédito e assistência técnica. Por isso todos estão saindo da roça.”
Calcula em R$ 20 mil os gastos para modernizar a estrutura. Para se adequar ao modelo ideal projetado para a cadeia produtiva do Vale, seria necessário, no mínimo, construir uma nova sala de ordenha com equipamentos, comprar um resfriador e renovar o rebanho com vacas de melhor genética. “Não faço porque nunca vou recuperar o investimento.” Recebe cerca de R$ 450 mensais com a venda do leite.
Detalhes do processo
Conforme dados apresentados pelo Ministério Público (MP), o total de produto adulterado pelos criminosos em um ano foi próximo de cem milhões de litros. Mais de cem toneladas de ureia foram compradas pelos envolvidos para fazer a mistura.
Até o momento, foi apurado a presença de formol em lotes específicos das marcas Italac, Líder, Mumu e Latvida. A sede da VRS Indústria de Laticínios (Latvida), em Estrela, teve as atividades suspensas pela Secretaria Estadual da Agricultura. Ela é responsável pela Latvida, e está proibida de envasar outras três marcas de leite terceirizadas – Hollmann, Goolac e Só Milk –, mesmo sem indícios de adulteração. A proibição não afeta derivados das marcas, como queijos e iogurtes, cuja venda está liberada e a fabricação é feita por outras indústrias.
Foi exigido dos mercados a retirada imediata dos produtos apontados pela investigação. Clientes foram orientados a trocar por outras marcas qualquer tipo de mercadoria suspeita.
Em nota, a VRS, afirma que até fevereiro o laboratório de análises e a fiscalização adotada para verificar a qualidade do leite que chegava à empresa servia de modelo para treinar fiscais sanitários. No dia 15 de fevereiro, foi registrada ocorrência para denunciar a fraude e descredenciou os transportadores envolvidos.
Mecanização valorizou em R$ 0,02 o produto
Morador do bairro Carneiros, em Lajeado, o produtor Décio Valmir Gerhardt, 52, investiu na modernização da estrutura. Há oito anos, gastou R$ 24 mil. Trabalha com ordenha canalizada. O investimento trouxe uma valorização de R$ 0,02 no litro. “Há seis anos recebemos R$ 0,80, e os custos só aumentam. Está na hora de mudar de centavos para real”, reclama.
Ele tem 30 vacas que produzem em média 18 litros por dia. Vende o leite para uma empresa de Estrela e não reclama do transportador. Se queixa da falta de rigidez do governo com as indústrias e das exigências impostas aos agricultores.
Conforme Décio, se dependesse do produtor, o leite que chega às prateleiras seria de melhor qualidade. “O problema é a importação de produto de baixa qualidade para ser misturado com o nosso. Falta fiscalização, assistência técnica, crédito e acesso a tecnologias para profissionalizar o setor e aumentar a oferta.”
“Às vezes tem gente que fecha um olho”
Transportador há 18 anos, leva diariamente para indústria 14 mil litros de leite coletados em três municípios do Vale do Taquari. Na sua lista de clientes há agricultores que produzem desde 40 litros a mais de 500 por dia. A maioria deles armazena o leite em resfriadores de imersão (água) ou até mesmo na geladeira em bacias. “São poucos que têm o modelo a granel.”
Destaca que a empresa cadastra e faz o pagamento direto ao produtor. “Sou um mero freteiro. Recebo por litro transportado.” Salienta que a fiscalização é rigorosa, porém falha em alguns pontos da cadeia. Antes do leite chegar à indústria ele passa por três testes de qualidade – o primeiro é feito na propriedade e os outros dois quando o produto chega na empresa.
O transportador observa que não carrega leite azedo, coalhado ou que tenha mistura de água, que é a adulteração mais comum verificada no interior. “Com os aparelhos que são cedidos pela empresa, o teste aponta na hora as irregularidades.”
A fraude deixou ele e os companheiros surpresos quando chegaram na empresa onde descarregaram o produto nessa quarta-feira. “Quando cheguei na vez de coletar e fazer o teste, tive que esperar um pouco pelo chefe da inspeção. Assim que ele veio, cumprimentei e disse:
– Estou preocupado, o que deu com nossa coirmã? Como isso entrou na empresa?
– Ah, às vezes tem gente que fecha um olho.
Ele me respondeu na presença de um outro colega.”
Com a falta de matéria-prima, ele recebe propostas diárias de outras lacticínios para trocar de empresa. Afirma que isso afrouxa a fiscalização e assim supre parte da demanda que existe.
“Nossas leis e nossas multas são fracas”
Entrevista com Oreno Ardêmio Heineck – Coordenador do G-Leite e assessor da Câmara Temática do Leite e da Câmara Setorial do Leite
O desafio é organizar a cadeia produtiva, investir em qualidade, genética, aumentar a oferta de matéria-prima, sem descuidar da sanidade e sem excluir o pequeno produtor.
A seguir o coordenador do G-Leite do Vale do Taquari e assessor da Câmara Temática do Leite e da Câmara Setorial do Leite do RS, Oreno Ardemio Heineck, destaca as carências e projetos para tornar a região e o estado em um polo referencial do setor, tendo o modelo galego como exemplo.
A Hora: As indústrias são negligentes no controle de qualidade?
Oreno Ardêmio Heineck: Sim. De alguma forma até involuntária. Dois aspectos, o leite que chega na indústria, por norma Precisa ser analisado por ela. Mas a tecnologia da fraude se aprimora de forma rápida e o aparato da indústria não está preparado.
Pode ter havido negligência no recebimento. Por norma o leite não apropriado para industrialização precisa ser descartado e inutilizado, mas acho que muitos não fazem isso. Talvez por não ter onde descartar. Às vezes tu não manda o cara embora em vez de arranjar um incômodo. A empresa deveria ter mais cuidado. A fiscalização do leite é como do abate de gado, do porco. Ela não precisa ser a toda hora. Isso cabe à indústria fazer.
A atuação dos mesmos fiscais nas empresas afrouxa o rigor na hora de fiscalizar?
Heineck: Sim. Deveria haver um rodízio maior de pessoas. Não que o fiscal seja mal-intencionado, mas a amizade e a aproximação levam à tolerância. É outro furo no esquema.
O governo falha na fiscalização?
Heineck: Acho que não. Talvez um pouco pela falta de profissionais, assim como em outras áreas. Ele falha em muitas áreas por falta de gente. Há falha na legislação punitiva. Nossas leis e as multas são fracas. Na Galácia, se o produtor ou a indústria falharem três vezes estão fora do mercado. Pode até ter fiscalização 24 horas, que não é obrigação alguma, mas se não for punido não adianta.
A falta de matéria-prima que obriga a indústria a trabalhar com 50% de ociosidade torna-a refém de qualquer tipo de produto?
Heineck: Não, o que obriga é o leiteiro fraudador. Ele frauda porque a lei não o alcança, porque é branda. Se for pego, pagará uma multa insignificante. Ele continua porque tem um receptador.
Existe algum projeto para corrigir este descontrole?
Heineck: Sim. Estamos iniciando um trabalho aqui na Câmara Setorial. O secretário de Agricultura, Pecuária e Agronegócio, Luiz Fernando Mainardi, sempre encarou de frente essa questão. Um decreto aumentou o valor das multas. Organizamos a cadeia do leite. Visitou Galícia, Nova Zelândia, Israel, Holanda, e está em fase final de conclusão o Prodeleite que será um regramento para o setor. O estado está com trabalho em andamento. Com essa investigação todos precisam iniciar um trabalho mais rígido.
O que precisa mudar na cadeia produtiva, desde a propriedade até as prateleiras?
Heineck: Primeiro a consciência. Estamos lidando com alimento. A cultura e a responsabilidade precisam mudar. Se sou produtor, preciso manejar bem todos os processos. Depois precisamos cobrar isso do transportador. Ele pode até não ser fraudador, mas não cuida por exemplo no momento de colocar a mangueira no resfriador. Coloca-a suja e assim temos contaminação. O cuidado do produtor de nada adiantou.
A indústria precisa realizar o papel dela dentro das normas. A grande maioria faz, mas muitas não. A fiscalização tem que melhorar, normas e leis necessitam ser atualizadas. A punição ser mais rigorosa no processo de acompanhamento. Olha a Normativa 62, porque ela só é aplicada para empresas que sofrem inspeção federal. Precisam ser para indústrias estadual e municipal. Ai aquele transportador que não respeitar não terá brechas para fraudar. O transporte precisa ser encarado como prestador de serviço, não como comprador ou vendedor de leite. Ele não pode entregar cada dia numa fábrica diferente. Tem que haver um controle sobre a intermediação do leite, a compra e a venda. Sempre vai muito bem a indústria que fomenta, capacita o produtor como algumas cooperativas que se responsabilizam pelo transporte e assistência técnica. O produtor precisa ser desenvolvido, 40% daqueles produtores precários estão dispostos a entrar no processo. Cadeia que ficou para em segundo plano e agora começa se reorganizar.
Por que a maioria dos municípios do Vale resiste em implantar o projeto de sanidade da Comarca de Arroio do Meio?
Heineck: Primeiro porque o leite não saneado continua sendo aceito. Mas daqui há um tempo isso acabará. O produtor não tem a visão a longo prazo. E a lei é falha, precisaria insistir. Os serviços de inspeção sofrem influências políticas de gestores. É um paternalismo. A sociedade precisa mudar sua postura. O ministério falha na certificação do produtor.
A reorganização excluirá produtores?
Heineck: A visão é não excluir, mas acho que 50% de todos os envolvidos deve ser excluídos. Ficarão os bons, aqueles que encararem a atividade, como negócio. Em outros países como na Galícia, 80% desistiram da atividade. Nossa região desponta como um processo adiantado. Acredito que em quatro anos a cadeia do leite alcançará a organização do setor de aves e suínos.
O trabalho do estado prevê um Estatuto Gaúcho do Leite para investir em genética, sanidade, manejo, alimentação e política pública. Será criado o Fundoleite para financiar projetos. Vislumbro para a cadeia do leite gaúcha boas notícias. A área é vital para a economia.