Enraizados na miséria

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Enraizados na miséria

Índios vivem em situações degradantes de higiene em aldeias improvisadas. A falta de auxílio social os leva a uma triste realidade submergida muitas vezes em drogas, alcoolismo e criminalidade. Prisão da cacique Maria Antônia Soares por suposto tráfico de drogas reabre a discussão sobre situação dos povos indígenas no estado, abandonados pelas autoridades e pela própria Funai.

aA presença dos índios em território brasileiro é muito anterior à che­gada dos exploradores europeus no século XV. Conforme estudos de historiadores e pesqui­sadores, a população indígena se aproximava de cinco milhões. As aldeias eram instaladas em enormes áreas de terra, capazes de sustentar tribos com mais de 750 membros. Para o sustento próprio, caçavam, pescavam e plantavam. O artesanato, fabri­cado pelas mulheres, era utiliza­do como “moeda de troca”.

Passados mais de 500 anos do início da colonização, os poucos ín­dios que vivem de forma precária nas beiras de rodovias da região perderam seus laços culturais. Restou apenas a destreza para fa­bricar pequenos balaios, vendidos a “preço de banana” entre os pré­dios e calçadas das cidades.

No centro de Lajeado, maior ci­dade do Vale do Taquari, crianças indígenas são vistas quase todos os dias pedindo esmola. Muitos a pedem antes mesmo de oferece­rem seus produtos fabricados de forma manual dentro das aldeias ou mesmo nas calçadas.

Próximo da esquina da rua Júlio de Castilhos com a Alberto Torres, a índia caingangue Marta Amaro prepara um cesto com ci­pós. Ao mesmo tempo em que cui­da e alimenta os dois filhos: uma menina de 1 ano e meio e um menino de 6 anos. Nenhum deles está matriculado em creches ou escolas municipais.

Marta diz que consegue, com auxílio do marido, produzir quatro cestos por dia. O produto é a úni­ca fonte de renda, além das cestas básicas recebidas do governo. Cada um é vendido por R$ 10. Em duas semanas, Marta vendeu dois ba­laios. “Já foi melhor”, lembra.

Vive com o marido e os filhos na aldeia às margens da ERS-130, na divisa dos bairros Santo Antônio e Jardim do Cedro, em Lajeado. No local tem 80 índios divididos em 16 famílias. Há apenas um ba­nheiro para toda a tribo.

Pobreza e descaso às margens da BR-386

A pequena sala de aula em um casebre de madeira às margens da BR-386 acomodou, durante mais de cinco anos, os alunos in­dígenas caingangues que vivem na aldeia ao lado da escola. O ba­rulho de carros e caminhões que trafegam todos os dias pela rodo­via tornou difícil o entendimento das matérias.

O descaso com a educação re­sume a situação precária em que vive a maioria dos habitantes da aldeia. Inexiste saneamento bási­co no local. Muitos indígenas so­frem com problemas de drogas e, principalmente, alcoolismo.

A produção de balaios e cestos é pífia. Não há produtos à venda na pequena tenda às margens da rodovia. O mesmo ocorre com a produção de alimentos no local.

Um dos irmãos da cacique presa na se­mana retrasada é o retrato do desampa­ro. Com problemas dentários graves, o índio de 44 anos tem pouco estudo. Mal sabe ler e escrever. Em cinco anos, preci­sou desistir de diver­sos empregos pela discriminação que sentiu nos lo­cais. “Sou xingado e esculachado. Nunca fiz mal algum aos colegas de serviço.”

Sua companheira também so­fre com o preconceito. Diz que, após a operação da Polícia na se­mana passada, diversos motoris­tas passam pela aldeia buzinan­do e falando palavras ofensivas a ela. “Trabalho e crio meus filhos, não sou lixo para ser xingada na rua.” Tem problemas mentais, mas entende perfeitamente o pre­conceito sofrido.

Até as professoras da pequena e humil­de escola sentem na pele a discriminação. “Vieram perguntar se eu também havia sido presa. É muita igno­rância, poucos sabem que aqui vivem exce­lentes pessoas.” Mas ela afirma que pouco sabe sobre as ocorrências dentro da aldeia. “Não quero comentar nada, é mais seguro assim.”

Com a duplicação da BR-386, a tribo receberá uma nova escola. Segundo a coordenadora regional

de Educação, Marisa Bastos, a 3ª CRE tem um projeto pedagógico voltado para a cultura indígena, com a contratação de um profes­sor caingangue bilíngue, formado em magistério e cursando Peda­gogia. “A escola foi inserida em programa de tempo integral e re­ceberá mais verbas para merenda, contratação de monitores e aquisi­ção de materiais.”

Estão previstas oficinas como Arte Corporal e Som, Canteiros Sustentáveis e a oficina de Acom­panhamento Pedagógico. Serão dois prédios circulares, confor­me as duas metades mitológicas kamé e kanhrú. Um dos prédios abrigará salas de aula, banheiros, cozinha e refeitório, coberto com telhas. O segundo terá um espa­ço de convivência com cobertura e aberto nas laterais. Um terceiro prédio, administrativo, será cons­truído à parte.

A história dos caingangues de Estrela

Desde a década de 60, a tribo se desacomoda em uma insig­nificante área de terra na loca­lidade de Linha Glória, interior de Estrela. Espremida entre dois municípios e margeada pela BR-386, a acanhada aldeia serve de moradia para 19 famí­lias que, juntas, somam cerca de 80 moradores.

Antes de se apossarem do local, em meados de 1960, a tribo lide­rada pelo então cacique Manoel Soares vivia em uma gruta em Santa Cruz do Sul. Foi nesse local que a cacique Maria Antônia So­ares da Siva nasceu e passou os primeiros anos de vida. Lá está enterrado seu cordão umbilical, seguindo uma tradição indígena.

Naquele local, os índios tra­balhavam na venda de artesa­nato e prestavam serviços aos fumicultores. Mas, todos foram forçados a deixar a área, graças à desapropriação de terras por parte do governo e a construção de um parque no mesmo sítio. O local hoje é ponto turístico na cidade e ostenta o nome de Gru­ta dos Índios.

Após deixarem a antiga al­deia, Manoel e sua tribo chega­ram a morar debaixo de pontes de Venâncio Aires, longe das aldeias caingangues, e também em Montenegro, onde trabalha­vam auxiliando agricultores.

O fato de o grupo permanecer fora dos aldeamentos se deve à política repressiva do então go­vernador Leonel Brizola, entre 1959 e 1962, que na época con­duzia os indígenas a força por meio das chamadas “caçambas do Brizola” às aldeias e para trabalhar aos fazendeiros. A tribo de Manoel era contrária a esse sistema.

Um tempo depois, o cacique Manoel Soares construiu peque­nos barracos em Pinheiral. Nes­sa época, a cacique, então com pouco menos de 12 anos, foi forçada por um casal a se pros­tituir em prostíbulos da cidade. Ficava lá com medo. Eles ame­açavam colocar fogo na aldeia, caso ela deixasse de prestar os serviços sexuais. Foi liberada quando engravidou.

Ela peregrinou por anos em outras cidades, onde teve mais filhos. Seu pai se estabeleceu no início da década de 60 em Bom Retiro do Sul, ocupando o trevo de acesso ao município. Passado algum tempo, acabaram se fi­xando no atual local, em Linha Glória, interior de Estrela, por in­dicação da Polícia Federal.

Em 1990, Manoel morreu atropelado no acostamento da BR-386, em Tabaí. A morte do pai fez com que Maria Antônia assumisse a liderança da tribo. Ela exercia a função até o fim de agosto, quando foi presa duran­te Operação Apache das Polícias Civil e Militar. Aos 53 anos, vicia­da em crack e portadora de HIV, Maria Antônia Soares está no presídio de Montenegro aguar­dando julgamento.

Entrevista com Rogério Reus Gonçalves Rosa, doutor em Antropologia Social

A Hora – Qual a sua experiência com povos indígenas?

Rogério Reus Gonçalves Rosa – Desde 1992, quando ocor­reu demarcação da Terra Indígena em Iraí. Nessa mesma época, comecei a pesquisar o Ritual do Kiki, um culto aos mortos pra­ticados pelos Kaingang do Posto Indígena Xapecó, e a visão de mundo dessa sociedade. No início dos anos 2000, passei a estudar a prática xamânica dessa sociedade. Como estou vinculado à Universidade Federal de Pelotas, também trabalho com os des­cendentes Charrua, Minuano, Guarani-missioneiros e Tapes.

A Hora – As aldeias da região são adequadas para as tribos viverem?

Gonçalves Rosa – No estado, as informações que temos são: do total de 25 milhões de hectares de terras desse estado, só 97,5 mil são ocupados pelos índios, significando isso um per­centual de 0,39%, sendo que aqui vivem duas das maiores et­nias indígenas do Brasil: os guarani e os kaingang. A ideia que há muita terra para poucos índios é um argumento infundado considerando tal realidade. Evidente que esses números terão um impacto sobre os kaingang que vivem nos municípios de Estrela e Lajeado.

A Hora – Como se sustentam os índios que vivem às margens de rodovias?

Gonçalves Rosa – Considerando que do século XIX até a últi­ma década do século XX, os índios perderam enormes parcelas do seu antigo território para a construção de vilas e cidades, essas pessoas se viram forçadas a se colocarem à beira de ro­dovias, pontes, periferia das cidades. Além da venda do arte­sanato, agora trabalham como coletores de maça, feijão, fri­goríficos, camelôs, professores bilíngues, agentes de saúde, etc. Há, inclusive, situação de índios que se sentem mais realizados e oportunizando um maior bem-estar a sua família vendendo roupas na cidade do que estar a cabresto, a mando de uma li­derança indígena.

Funai se esquiva e culpa o governo federal

Responsável pela integridade dos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que deveria se responsabilizar pela saúde dos nativos, se esqui­va e culpa o Ministério da Saúde pelo abandono. O Conselho Estadual do Índio (Cepi) está defasado no estado. Apenas dois estagiários são responsáveis pelo atendimento. O atual coordenador também responde pelo setor agropecuário e pouco sabe so­bre a tribo caingangue de Estrela.

Com graduação e mestrado em Antropologia Social e doutorado em Ciências Sociais pela Uni­camp, a lajeadense Andréa Martini trabalha des­de 1994 na Amazônia e no Acre com questões indígenas. Critica a atuação da Funai, principal ór­gão responsável pelo auxílio aos povos indígenas. Diz que asitu­ação é de sucateamento. “Tanto dessa esfera do serviço público como outros serviços e institui­ções correlacionados, como Insti­tuto Chico Mendes e Ibama.”

Andréa comenta que há cer­ca de dois anos houve concurso público para ingresso na Funai. Diz que no Acre, onde atua há mais de dez anos, muitas pesso­as ingressaram na seleção para o serviço técnico. No entanto, a falta de apoio e resguardo ins­titucional faz com que muitos desistam. “Faltam, inclusive, in­sumos gerais para a realização e aporte destas atividades em territórios e terras indígenas em todo o Brasil.”

Afirma que os índios de hoje são privados de direitos básicos, como atendimento digno na saú­de, educação, manutenção da linguagem, casamento e acesso a terras. “Eles sequer têm direito de expressarem suas opiniões. Falo de atenção básica para transpor­te, comunicação, salários, cons­trução de casas.”

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