A presença dos índios em território brasileiro é muito anterior à chegada dos exploradores europeus no século XV. Conforme estudos de historiadores e pesquisadores, a população indígena se aproximava de cinco milhões. As aldeias eram instaladas em enormes áreas de terra, capazes de sustentar tribos com mais de 750 membros. Para o sustento próprio, caçavam, pescavam e plantavam. O artesanato, fabricado pelas mulheres, era utilizado como “moeda de troca”.
Passados mais de 500 anos do início da colonização, os poucos índios que vivem de forma precária nas beiras de rodovias da região perderam seus laços culturais. Restou apenas a destreza para fabricar pequenos balaios, vendidos a “preço de banana” entre os prédios e calçadas das cidades.
No centro de Lajeado, maior cidade do Vale do Taquari, crianças indígenas são vistas quase todos os dias pedindo esmola. Muitos a pedem antes mesmo de oferecerem seus produtos fabricados de forma manual dentro das aldeias ou mesmo nas calçadas.
Próximo da esquina da rua Júlio de Castilhos com a Alberto Torres, a índia caingangue Marta Amaro prepara um cesto com cipós. Ao mesmo tempo em que cuida e alimenta os dois filhos: uma menina de 1 ano e meio e um menino de 6 anos. Nenhum deles está matriculado em creches ou escolas municipais.
Marta diz que consegue, com auxílio do marido, produzir quatro cestos por dia. O produto é a única fonte de renda, além das cestas básicas recebidas do governo. Cada um é vendido por R$ 10. Em duas semanas, Marta vendeu dois balaios. “Já foi melhor”, lembra.
Vive com o marido e os filhos na aldeia às margens da ERS-130, na divisa dos bairros Santo Antônio e Jardim do Cedro, em Lajeado. No local tem 80 índios divididos em 16 famílias. Há apenas um banheiro para toda a tribo.
Pobreza e descaso às margens da BR-386
A pequena sala de aula em um casebre de madeira às margens da BR-386 acomodou, durante mais de cinco anos, os alunos indígenas caingangues que vivem na aldeia ao lado da escola. O barulho de carros e caminhões que trafegam todos os dias pela rodovia tornou difícil o entendimento das matérias.
O descaso com a educação resume a situação precária em que vive a maioria dos habitantes da aldeia. Inexiste saneamento básico no local. Muitos indígenas sofrem com problemas de drogas e, principalmente, alcoolismo.
A produção de balaios e cestos é pífia. Não há produtos à venda na pequena tenda às margens da rodovia. O mesmo ocorre com a produção de alimentos no local.
Um dos irmãos da cacique presa na semana retrasada é o retrato do desamparo. Com problemas dentários graves, o índio de 44 anos tem pouco estudo. Mal sabe ler e escrever. Em cinco anos, precisou desistir de diversos empregos pela discriminação que sentiu nos locais. “Sou xingado e esculachado. Nunca fiz mal algum aos colegas de serviço.”
Sua companheira também sofre com o preconceito. Diz que, após a operação da Polícia na semana passada, diversos motoristas passam pela aldeia buzinando e falando palavras ofensivas a ela. “Trabalho e crio meus filhos, não sou lixo para ser xingada na rua.” Tem problemas mentais, mas entende perfeitamente o preconceito sofrido.
Até as professoras da pequena e humilde escola sentem na pele a discriminação. “Vieram perguntar se eu também havia sido presa. É muita ignorância, poucos sabem que aqui vivem excelentes pessoas.” Mas ela afirma que pouco sabe sobre as ocorrências dentro da aldeia. “Não quero comentar nada, é mais seguro assim.”
Com a duplicação da BR-386, a tribo receberá uma nova escola. Segundo a coordenadora regional
de Educação, Marisa Bastos, a 3ª CRE tem um projeto pedagógico voltado para a cultura indígena, com a contratação de um professor caingangue bilíngue, formado em magistério e cursando Pedagogia. “A escola foi inserida em programa de tempo integral e receberá mais verbas para merenda, contratação de monitores e aquisição de materiais.”
Estão previstas oficinas como Arte Corporal e Som, Canteiros Sustentáveis e a oficina de Acompanhamento Pedagógico. Serão dois prédios circulares, conforme as duas metades mitológicas kamé e kanhrú. Um dos prédios abrigará salas de aula, banheiros, cozinha e refeitório, coberto com telhas. O segundo terá um espaço de convivência com cobertura e aberto nas laterais. Um terceiro prédio, administrativo, será construído à parte.
A história dos caingangues de Estrela
Desde a década de 60, a tribo se desacomoda em uma insignificante área de terra na localidade de Linha Glória, interior de Estrela. Espremida entre dois municípios e margeada pela BR-386, a acanhada aldeia serve de moradia para 19 famílias que, juntas, somam cerca de 80 moradores.
Antes de se apossarem do local, em meados de 1960, a tribo liderada pelo então cacique Manoel Soares vivia em uma gruta em Santa Cruz do Sul. Foi nesse local que a cacique Maria Antônia Soares da Siva nasceu e passou os primeiros anos de vida. Lá está enterrado seu cordão umbilical, seguindo uma tradição indígena.
Naquele local, os índios trabalhavam na venda de artesanato e prestavam serviços aos fumicultores. Mas, todos foram forçados a deixar a área, graças à desapropriação de terras por parte do governo e a construção de um parque no mesmo sítio. O local hoje é ponto turístico na cidade e ostenta o nome de Gruta dos Índios.
Após deixarem a antiga aldeia, Manoel e sua tribo chegaram a morar debaixo de pontes de Venâncio Aires, longe das aldeias caingangues, e também em Montenegro, onde trabalhavam auxiliando agricultores.
O fato de o grupo permanecer fora dos aldeamentos se deve à política repressiva do então governador Leonel Brizola, entre 1959 e 1962, que na época conduzia os indígenas a força por meio das chamadas “caçambas do Brizola” às aldeias e para trabalhar aos fazendeiros. A tribo de Manoel era contrária a esse sistema.
Um tempo depois, o cacique Manoel Soares construiu pequenos barracos em Pinheiral. Nessa época, a cacique, então com pouco menos de 12 anos, foi forçada por um casal a se prostituir em prostíbulos da cidade. Ficava lá com medo. Eles ameaçavam colocar fogo na aldeia, caso ela deixasse de prestar os serviços sexuais. Foi liberada quando engravidou.
Ela peregrinou por anos em outras cidades, onde teve mais filhos. Seu pai se estabeleceu no início da década de 60 em Bom Retiro do Sul, ocupando o trevo de acesso ao município. Passado algum tempo, acabaram se fixando no atual local, em Linha Glória, interior de Estrela, por indicação da Polícia Federal.
Em 1990, Manoel morreu atropelado no acostamento da BR-386, em Tabaí. A morte do pai fez com que Maria Antônia assumisse a liderança da tribo. Ela exercia a função até o fim de agosto, quando foi presa durante Operação Apache das Polícias Civil e Militar. Aos 53 anos, viciada em crack e portadora de HIV, Maria Antônia Soares está no presídio de Montenegro aguardando julgamento.
Entrevista com Rogério Reus Gonçalves Rosa, doutor em Antropologia Social
A Hora – Qual a sua experiência com povos indígenas?
Rogério Reus Gonçalves Rosa – Desde 1992, quando ocorreu demarcação da Terra Indígena em Iraí. Nessa mesma época, comecei a pesquisar o Ritual do Kiki, um culto aos mortos praticados pelos Kaingang do Posto Indígena Xapecó, e a visão de mundo dessa sociedade. No início dos anos 2000, passei a estudar a prática xamânica dessa sociedade. Como estou vinculado à Universidade Federal de Pelotas, também trabalho com os descendentes Charrua, Minuano, Guarani-missioneiros e Tapes.
A Hora – As aldeias da região são adequadas para as tribos viverem?
Gonçalves Rosa – No estado, as informações que temos são: do total de 25 milhões de hectares de terras desse estado, só 97,5 mil são ocupados pelos índios, significando isso um percentual de 0,39%, sendo que aqui vivem duas das maiores etnias indígenas do Brasil: os guarani e os kaingang. A ideia que há muita terra para poucos índios é um argumento infundado considerando tal realidade. Evidente que esses números terão um impacto sobre os kaingang que vivem nos municípios de Estrela e Lajeado.
A Hora – Como se sustentam os índios que vivem às margens de rodovias?
Gonçalves Rosa – Considerando que do século XIX até a última década do século XX, os índios perderam enormes parcelas do seu antigo território para a construção de vilas e cidades, essas pessoas se viram forçadas a se colocarem à beira de rodovias, pontes, periferia das cidades. Além da venda do artesanato, agora trabalham como coletores de maça, feijão, frigoríficos, camelôs, professores bilíngues, agentes de saúde, etc. Há, inclusive, situação de índios que se sentem mais realizados e oportunizando um maior bem-estar a sua família vendendo roupas na cidade do que estar a cabresto, a mando de uma liderança indígena.
Funai se esquiva e culpa o governo federal
Responsável pela integridade dos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que deveria se responsabilizar pela saúde dos nativos, se esquiva e culpa o Ministério da Saúde pelo abandono. O Conselho Estadual do Índio (Cepi) está defasado no estado. Apenas dois estagiários são responsáveis pelo atendimento. O atual coordenador também responde pelo setor agropecuário e pouco sabe sobre a tribo caingangue de Estrela.
Com graduação e mestrado em Antropologia Social e doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp, a lajeadense Andréa Martini trabalha desde 1994 na Amazônia e no Acre com questões indígenas. Critica a atuação da Funai, principal órgão responsável pelo auxílio aos povos indígenas. Diz que asituação é de sucateamento. “Tanto dessa esfera do serviço público como outros serviços e instituições correlacionados, como Instituto Chico Mendes e Ibama.”
Andréa comenta que há cerca de dois anos houve concurso público para ingresso na Funai. Diz que no Acre, onde atua há mais de dez anos, muitas pessoas ingressaram na seleção para o serviço técnico. No entanto, a falta de apoio e resguardo institucional faz com que muitos desistam. “Faltam, inclusive, insumos gerais para a realização e aporte destas atividades em territórios e terras indígenas em todo o Brasil.”
Afirma que os índios de hoje são privados de direitos básicos, como atendimento digno na saúde, educação, manutenção da linguagem, casamento e acesso a terras. “Eles sequer têm direito de expressarem suas opiniões. Falo de atenção básica para transporte, comunicação, salários, construção de casas.”