Índios da tribo caingangue cancelaram o segundo bloqueio da BR-386 marcado para ontem à tarde, depois de conseguirem a transferência da cacique presa por suposto envolvimento com o tráfico de drogas. Cobram a liberdade provisória dela, sob alegação de que Maria Antônia Soares da Silva, 53, está com a saúde debilitada. Caso contrário, prometem bloquear a rodovia hoje à tarde.
Ao meio-dia de ontem, os juízes Rodrigo Bortoli e Luís Antônio de Abreu Johnson negociaram com a Justiça de Santa Cruz do Sul a transferência da cacique de Guaíba para o presídio no Vale do Rio Pardo, onde fica até sexta-feira.
Cogitaram a possibilidade de abrir uma vaga especial para a cacique na penitenciária masculina de Encantado, que já abrigou mulheres. O pedido foi negado.
O juiz de Santa Cruz do Sul, Assis Leandro Machado só aceitou a transferência depois de muitas negociações. Uma das condições é que ela deixe o local até o fim de semana.
Na manhã de sexta-feira, 160 policiais civis e militares cumpriram mandados de busca e prisão na aldeia caingangue às margens da BR-386.
Quatro pessoas foram presas: a cacique; o irmão, Adelar Soares; o marido Gelson de Oliveira de Lima; e um foragido do presídio. A filha da cacique, uma menor de 18 anos, foi detida e liberada. Ela estava sob acusação de ser a responsável por levar drogas até a aldeia. A adolescente de 17 anos insiste: “não sabia de nada.”
Índios reclamam de perseguição
O filho da cacique, Adécio Soares da Silva está revoltado com a prisão da mãe. Diz que ela não tem condições médicas para ficar em qualquer presídio do estado e é viciada em crack. Maria Antônia também é portadora do vírus HIV e tem câncer. “Garantiram que ela não seria presa. Aguardaremos até o meio-dia pela liberdade dela, caso contrário bloquearemos a rodovia.”
Contrariados com a ação da policia, os manifestantes garantem que não há tráfico de drogas no local. De acordo com Adécio, as 53 pedras de crak encontradas na aldeia pertenciam ao seu ex-cunhado, Joel dos Santos, morto há dois meses dentro da própria aldeia. Ele também seria o dono de um revólver clandestino apreendido no mesmo dia. “Ele era viciado, e a minha irmã não sabia de nada sobre tráfico, a polícia mente ao acusá-la de ser responsável pelo transporte da droga.”
Adécio diz que os outros dois presos são viciados e não tem envolvimento com o tráfico. Ele culpa o ex-cunhado. “Ele morou um ano e pouco aqui dentro, e o entregamos várias vezes. Mas a BM nada fez.”
Sobre os demais produtos apreendidos (televisão, celulares, máquinas agrícolas e notebook), Adécio garante não serem de origem ilícita. “Tudo foi comprado e nosso advogado apresentará as notas fiscais.” A informação é confirmada pelo advogado de defesa, Marco Mejia. “Há uma série de equívocos que esclareceremos. A cacique, além de não ter condições físicas para traficar droga, sequer tem liderança dentro da aldeia. Ela apenas herdou o posto do marido morto.”
Seu outro irmão, Márcio Cristiano Soares, 35, que nasceu e cresceu naquele local, reclama de abuso por parte da polícia. Comenta que sua mulher ficou nua perante os policiais durante as revistas. “Pelaram ela para achar droga dentro da minha casa, onde está nossa liberdade (sic).” Ele questiona o fato da imprensa ter sido proibida de acompanhar as abordagens.
Divergências entre caciques
A prisão criou discórdia entre as tribos da região. A tribo caingangue que vive no bairro Jardim do Cedro, em Lajeado repudia as atitudes da aldeia de Estrela e diz que não auxiliará nos protestos. Até o fim de semana os caciques de sete aldeias do estado, próximas do Vale, se reúnem para decidir se Maria Antônia Soares permanece com o cargo de líder da tribo.
Conforme o vice cacique, Virgilino Nascimento, a prisão de alguns índios fez com que todos fossem julgados pela sociedade. “Uma aldeia teve problemas e agora parece que todos os índios usam e vendem drogas.”
O líder afirma que na tribo de Estrela não há índios nativos e critica a forma como vivem. Conta que sequer falam o idioma indígena.
Nascimento conta que cada aldeia tem uma forma de punir, uma delas é a transferência para outra aldeia. Em Lajeado, vivem 80 índios divididos em 16 famílias. Segundo Nascimento, todos são nativos e isso é um dos critérios para morar na aldeia.
Bloqueio e perigo no sábado à noite
Mesmo com a forte chuva do sábado, os índios bloquearam a BR- 386. Queriam que a cacique da aldeia fosse solta. Sem sinalização e com pouca presença de órgãos da segurança, carros e caminhões realizavam retorno sobre a pista sem orientação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) ou da concessionária responsável pela rodovia.
Sobre a pista os índios e moradores da aldeia depositaram troncos, sofás, placas de sinalização e pedras. Os manifestantes estavam irritados e alguns apresentavam sintomas de embriaguez.
Ninguém passava pela barreira. Motoristas precisavam desviar suas rotas e enfrentar caminhos mais longos, como pela Via Láctea e Rota do Sol, ou se arriscavam em estradas de chão batido que circundam os dois municípios.
Cerca de 40 manifestantes estavam junto aos entulhos. O único veículo da PRF estava parado cerca de 200 metros distante dos manifestantes.
Na madrugada de sábado para domingo, o morador de Estrela, Daniel Dalferth, se dirigia para Bom Retiro do Sul. Afirma que foi atacado com pedras e paus por seis manifestantes, sendo obrigado a abandonar o veículo alugado.
Após ouvir uma suposta ameaça de morte, fugiu pelos matagais e foi resgatado pela BM cerca de meia hora depois. Seu veículo foi encontrado às margens da BR-386. Documentos e objetos pessoais, além de R$ 1,7 mil, estavam dentro do carro. Depois de 18 horas de negociação, os manifestantes liberaram a rodovia no início da tarde de domingo.
“O local não é uma aldeia digna para se viver”
Segundo a antropóloga lajeadense Andréa Martini, que trabalha desde 2009 na Universidade Federal do Acre, onde leciona o curso de Formação Docente para Indígenas, a situação vivida pelos índios caingangues em Bom Retiro do Sul é precária. Diz que o local não pode ser considerado uma aldeia. “Aquilo não é uma aldeia digna de se morar. Um grupo indígena raramente vive numa única aldeia, apertada entre duas cidades.”
Para ela, cada grande família deve ter áreas próprias, correspondentes ao número de membros para trabalhar e de crianças para alimentar. Sobre as drogas em aldeias, diz que o problema tem aparecido com frequência. “Isso é reflexo de uma interação complexa e violenta entre grupos étnicos distintos, no caso indígenas e não indígenas.”
A antropóloga ressalta que muitos índios vivem há anos em situação degradante e que a realidade dos povos indígenas gaúchos está entre as piores no cenário nacional. Comenta que, no Acre, a maioria dos grupos tem suas áreas demarcadas e defendidas pelo governo federal. “Eles vivem na floresta, como é de direito deles. Não moram em uma curva de estrada.”
Sobre a imagem negativa dos índios perante parte da sociedade e refletida principalmente em redes sociais da internet, a antropóloga alerta que muitos dos problemas verificados na aldeia ocorrem dentro das cidades. “A drogadição é tolerada em ruas do centro de Lajeado. Não se trata de um problema exclusivo dos índios.”
Afirma ser normal o fato de moradores sem descendência indígena morarem dentro da aldeia em Bom Retiro do Sul. “Isso é permitido sim, em casos de casamento ou caso a comunidade e suas lideranças assim os desejem.” Andrea diz que conhece diversos casos em que “brancos” vivem em tribos, falam sua língua, são casados com indígenas, mas não se consideram índios.
Radicada na cidade de Cruzeiro do Sul, no estado do Acre, Andréa tem doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp e trabalha há 18 anos na Amazônia com seringueiros e agricultores de reservas extrativistas. Em 2001, começou seu trabalho com grupos indígenas do Rio Negro e, em 2002, passou a realizar atividades com outros grupos do Acre.