Uma pequena igreja serve como abrigo para dezenas de cachorros. Perambulam de uma rua a outra, agindo como se fossem os donos do local. Os moradores acham graça na situação. Estão acostumados com esta presença, e saem de suas casas como se tivessem a certeza de que estão protegidos.
Nem se assustam quando os cães duelam de maneira feroz pelas cadelas em frente aos portões. As crianças sorriem com a briga, para logo depois brincar com os cachorros, alheios aos problemas de saúde que podem ter com este contato.
Alguns animais não têm dono, mas tratam os moradores como se fossem seus melhores amigos. Só os moradores. Os Correios interromperam o serviço em algumas ruas por tempo indeterminado, pois os carteiros eram mordidos com frequência. Eram considerados invasores.
A cada dia, mais cachorros são largados no loteamento. Os moradores acusam os habitantes dos municípios vizinhos de aproveitarem a “fama canina” do local para se livrarem dos bichos que não querem mais.
“As pessoas soltam os filhotes aqui. Já contei mais de 20 cachorros juntos na cancha de areia correndo atrás de uma cadelinha”, avisa um morador que passeia pelas ruas, de forma tranquila, acompanhado por quatro animais. “Nenhum é meu.”
Preconceito atrapalha a busca por emprego
As casas estão construídas entre os bairros Oriental e Moinhos. As primeiras foram levantadas há três décadas pela administração municipal, para abrigar migrantes de outros municípios, que buscaram em Estrela uma oportunidade de emprego.
Apesar de ser um loteamento, os estrelenses consideram o Marmitt um bairro. “Os moradores do bairro Moinhos não gostam de dizer que este local pertence a eles”, conta Crislaine Spelmeier, diretora da Escola Infantil Criança Feliz.
Os próprios moradores mantêm este preconceito. Uma senhora, que vive há 29 anos no local, não se considera uma residente do Marmitt. “Aqui é o loteamento Eidelwein. Esse (Marmitt) é aquele perto do posto de saúde.”
O Marmitt é considerado um local perigoso e ninguém quer ser atrelado a ele. Crislaine diz que os furtos e roubos diminuíram e que muitos falam do loteamento sem conhecê-lo.
O preconceito chega até as empresas. “Quando a gente fala que mora no Marmitt, os empregadores dizem para voltarmos na próxima semana porque não existem mais vagas”, reclama o servente Antônio Barcellos, 52 anos, natural de Fontoura Xavier. Há 32 anos ele mora no loteamento, e só conseguiu emprego ao colocar na ficha que mora no bairro Moinhos.
Barcellos vive em um casebre de 20 metros quadrados, com água encanada e energia elétrica, mas tem dificuldade para pagar as prestações. O valor de R$ 1 mil foi parcelado em 36 vezes.
O servente tem dificuldades para se manter, pois a remuneração de R$ 636 é dividida para pagar a pensão das três filhas, que moram com a sua ex-mulher, na casa ao lado. “Só não saio daqui porque não tenho lugar melhor para ir.”
Detalhes próprios nas construções
No bairro as construções são diversificadas, com casas de alvenaria e casebres de madeira. Todas são sustentadas cerca de um metro e meio do chão, para evitar que as enchentes estraguem as mobílias.
Os preços variam, e algumas custam até R$ 3,5 mil. Embora pareça baixo, é alto para os padrões das famílias que lá vivem.
Leoni Teresinha Prezniska pagou este valor por sua casa. Ela vive há 20 anos no Marmitt, mas pouco tempo na “nova” casa, cujo assoalho fica a quase dois metros do chão. Ela mora sozinha e afirma que gostaria de sair do bairro. “Sempre que chove fico com medo da enchente. Vivo sob intensa intranquilidade.” A falta de condições financeiras a obriga a seguir amedrontada.
A proximidade entre os casebres quase causou uma tragédia no fim de semana passado. Durante a madrugada, uma casa de madeira pegou fogo, apavorando os vizinhos. Um deles era Karlinda Freitas Berg, de 58 anos.
Sua casa, também de madeira, fica a menos de dois metros da que foi incendiada. “Senti um calor estranho no meio da noite, e acordei com o grito das meninas que moravam na casa.”
Ninguém ficou ferido, mas os vizinhos demoraram cinco dias para receber luz e água de volta. Márcia Dias, que mora ao lado da casa incendiada, acolheu na sua os antigos moradores.
Segundo ela, todos tiveram “mais sorte que juízo”. “Meu filho saiu de cueca para ajudar. Ligávamos para a polícia, e eles achavam que era trote”, reclama. Ela garante que, em momento algum, a área foi isolada para perícias.