As crianças se divertem durante uma partida de futebol sob a chuva. As poças acumuladas pouco importam. Elas sorriem com os dribles realizados numa precária cancha de areia localizada em meio a terrenos baldios, repletos de lixos acumulados.
O sorriso inocente é uma fuga momentânea à vida que levam no bairro Santo Antônio. O semblante fica sério, quando pensam no futuro. Todos têm a esperança de crescer na vida, mas ela está longe da comunidade.
William Assunção, 16 anos, desistiu dos estudos na 8a série para trabalhar. Ele quer ser empresário. Pretende montar uma empresa de chapeação em Garibaldi, sua cidade natal, que deixou há dois meses. “Não dá para pensar muito grande, porque a gente sabe que não vai realizar.”
O amigo Kainã Roberto Borges da Costa pensa “alto”. Deseja entrar na Aeronáutica e esquecer os problemas vividos no bairro, enquanto pilota o avião das Forças Armadas.
O menino tem nove irmãos. Seriam dez, se um deles não fosse assassinado em um prostíbulo.
“Dá até vergonha de falar nisso.” A naturalidade com que contam os fatos surpreende só quem desconhece aquela realidade.
“Esses dias eles atiraram nos pés de um pedreiro (sic) porque estava devendo”, diz, aos risos. Kainã e os amigos afirmam que conhecem viciados, mas sabem que precisam manter distância. “Isso não nos leva a nada.”
Os lajeadenses, que falam sobre o bairro mesmo sem conhecê-lo, contribuem para que a fama negativa persista. Serviços de tele-entrega, de táxi e até os de saúde evitam passar por lá.
Sem luz, água e dignidade
Morando em um pequeno barraco de pouco mais de oito metros quadrados, com o marido e seus seis filhos, Doniva Souza Oliveira é o retrato do descaso público com parte da comunidade lajeadense.
Sua família não tem água encanada, que precisa ser comprada de um vizinho. “Pago uma taxa de R$ 30 todo mês para ele.” A renda da família é de pouco mais de R$ 350.
Luz elétrica e banheiro seus filhos só conhecem pela televisão do mesmo vizinho. Para tomar banho, Doniva esquenta água no fogão a lenha, para amenizar o frio. Um balde e uma mangueira substituem o chuveiro. Uma capunga construída em frente ao casebre é utilizada para as demais necessidades da família.
Sem energia, não há como armazenar com qualidade os alimentos. Isto reflete na saúde da família. Ela, diabética, anêmica e depressiva, tem apenas uma preocupação. “Posso morrer de fome, mas meus filhos comerão todos os dias e depois precisam ir à escola.”
Próximo do local vive Adriana Stiehl, 32 anos, que veio de Três Passos para trabalhar em Lajeado. Incapaz de pagar aluguel com o marido, sobrevive graças a um hábito comum dos moradores do bairro. “Fomos acolhidos e construímos nossa casa nos fundos do terreno de parentes. É assim que muitos daqui evitam o pagamento de aluguéis.”
O aluguel na vila varia de R$ 80 a R$ 300. Luz elétrica, água encanada e saneamento básico existem apenas no imaginário da diarista. “É triste ver que outros bairros são bem cuidados, parece que não nos enxergam como seres humanos.”
Marginalizados pelo preconceito
São mais de 900 domicílios registrados que abrigam uma população próxima de quatro mil habitantes, cuja renda média familiar é de R$ 400.
O bairro é mais populoso que pequenas cidades do Vale do Taquari, como Sério, Canudos do Vale e Forquetinha.
A imagem marginalizada do local é rechaçada pelos moradores e até por estrangeiros que lá vivem. Theresa Hofmann, 20 anos, veio de Stuttgart, na Alemanha, para realizar trabalhos voluntários no bairro por um ano.
Quando caminha pelo centro da cidade e conversa com moradores de outros bairros faz questão de dizer que mora na “Vila Santo Antônio”.
Ela lamenta o preconceito estampado nos olhos de quem a ouve. “Todos se espantam e não entendem minha decisão e perguntam se sinto medo. Falam mal do local e têm receio por tudo aquilo que escutaram, mas nunca vieram até aqui conhecer.”
A alemã sentiu na pele um dos muitos problemas enfrentados pelos moradores, gerado pelo preconceito e pela falta de informação. No dia do seu aniversário, fez compras em um supermercado tradicional da cidade. A encomenda teria de ser enviada até a noite, mas atrasou.
“Ligamos e nos disseram que o carro tinha estragado. Mas era mentira, estavam com medo de trazer.” Com muita briga, e atraso, a carga chegou pelas mãos de um constrangido e amedrontado funcionário.
Theresa é hospedada por Petronila Andrade. Ela endossa a opinião da alemã e critica os que julgam os moradores da vila. “Se há lixo nas ruas, é porque não existem locais adequados para serem depositados. Somos educados e cuidamos do lixo, mal-educado é quem não faz seu papel como gestor público.”
Sobre as poucas conquistas da comunidade, garante ter sido tudo “na base do confronto”.
Um pouco da história
No início, por volta de 1940, o local foi denominado Chácara da Prefeitura. Na década de 1950, começaram a surgir alguns casebres, próximos de uma fonte de água, sendo a Vovó Leontina uma das primeiras. Com a fundação da Saidan, em 1953, e a criação da Escola Francisco Oscar Karnal, em 1956, cresceu o número de choupanas. Naquela época, existiam problemas recorrentes verificados nos dias de hoje. A falta de limpeza, dentro e fora das moradias, a proliferação de cachorros, gatos, moscas e insetos davam ao conjunto habitacional o apelido de “Chiqueirão”.