A família Palácios iniciou a vida circense há mais de 150 anos. Willi Palácios, que tinha descendência russa, iniciou o Circo Moscou, levando a companheira e os filhos para conhecer o mundo. Hoje, após passar por toda a América Latina e alguns países do oriente, o circo soma 66 integrantes, sendo que apenas 26 atuam no picadeiro. Alguns têm origem chilena, outros uruguaia, reflexos das paixões geradas pelos artistas aos simpatizantes da vida circense.
O circo é uma empresa familiar que tem chefe, gerente e diretores. Alguns colaboradores têm carteira assinada, outros contratos temporários. Por onde passam, geram empregos passageiros, desde a mão de obra até a divulgação e o marketing.
Em Lajeado, foram contratadas 60 pessoas para ajudar na divulgação, montagem e manutenção da estrutura. Sem contar a movimentação financeira na mídia local: propaganda na TV, rádios e jornais.
Com o mesmo nome do bisavô, Willi Palácios, 31 anos, pouco sabe de seus antepassados, mas tem a certeza de que o dom está no sangue. “Nasci e me criei aqui. Amo o que faço.”
Casado e com três filhos, atua no globo da morte e observa que a cultura do circo – a de mostrar animais e pessoas defeituosas – mudou. Hoje, a atuação dos artistas e o alto risco que se submetem fazem o brilho do espetáculo.
“O circo está em extinção”
A utilização dos animais em circos foi proibida pela governadora Yeda Crusius no dia 24 de junho de 2008. A medida mudou a rotina, diminuindo o público em 70%, conforme o responsável pelo marketing, Marcelo Palácios, 28 anos.
Segundo ele, a medida é contraditória, pois em rodeios, hipismo e outras modalidades os animais são usados. “Proibiram porque era mais fácil do que fiscalizar.” Os animais dos circos foram vendidos por baixo preço aos zoológicos.
Ele acredita que no circo as pessoas tinham mais contato com os bichos, especialmente em Lajeado, de onde o zoológico mais próximo está a 150 quilômetros. “Tem criança que não conhece elefante ou leão.”
Marcelo, desde os 5 anos, brincava com o leão Kimba que participou do filme dos Trapalhões Os Saltimbancos e foi protagonista de comerciais de TV.
O Moscou ainda tem alguns animais como: elefante, macacos e leão, que entram no espetáculo, quando o circo atua fora do Brasil.
A facilidade de acessar na internet vídeos gravados em apresentações é outro motivo que o artista cita para a redução da plateia. Ainda assim, o público alcançado em Lajeado superou as expectativas.
Segundo Marcelo, em 2007, no Brasil havia oito mil circos em atividade, mas hoje restam menos de 700.
Falta espaço adequado
Outra dificuldade para trazer o circo à cidade foi encontrar um espaço adequado próximo do centro. Após encontrar o terreno, as negociações levaram quase um ano, embora a montagem completa ainda não tenha sido possível.
Avaliada em R$ 150 mil, a lona de 40 metros de diâmetro tem estrutura para abrigar duas mil pessoas, mas teve que ser readequada devido ao espaço pequeno. Mesmo assim, pelo menos 1,5 mil pessoas podem assistir aos espetáculos. Em Lajeado, o circo alcançou oito mil espectadores.
Os investimentos do circo são considerados altos. Conforme Marcelo, foram gastos cerca de R$ 4 mil em combustível para vir a Lajeado, sem contar os gastos com água, luz, alimentação e manutenção da rede elétrica e da estrutura.
“Os problemas ficam atrás das cortinas”
Num picadeiro quase vazio, aos poucos surgem pessoas de diferentes idades. Crianças aparecem nos vãos da lona e brincam nas arquibancadas, pulando de uma para outra, com extrema facilidade, sob o olhar vigilante dos adultos.
O chileno Luiz Ugalde, 62 anos, passou toda sua vida sob a lona colorida. Era trapezista e, agora, capataz. Coordena a mão de obra na montagem, desmontagem e manutenção do circo. Em rápida passagem pelo Oriente Médio, revela que nesses países, circo só uma vez por ano.
“Não podíamos olhar uma mulher, pois seríamos punidos com chibatadas.” Ele afirma que quando estiveram na Arábia Saudita, em 1972, um representante de uma empresa de refrigerante foi expulso do país porque quis namorar.
Para a trapezista e bailarina Thaiane Palácios, 17 anos, o circo é a sua vida. Nesta temporada, ela faz um número com tecidos, na parte mais alta do picadeiro. Para um movimento bonito é preciso estar concentrada.
Tensões, angústias, tristezas e aborrecimentos existem, mas são deixados de lado na hora do show. “Temos que passar alegria”, conta. “Os problemas ficam atrás das cortinas.”
Para ela, que sempre estudou em escolas diferentes, o aprendizado é mais complicado. Em época de exames, o que os outros alunos aprenderam em dois meses, precisa assimilar numa semana.
Thaiane fala que percebe a diferença entre algumas escolas. Muitas vezes diz estar adiantada, pois fica em turmas que estão aprendendo matérias que já conhece. Noutras, a dificuldade existe. “Depende do ritmo da escola.”
Há três anos e meio, Thaiane namora um trapezista uruguaio, que trabalha em outro circo, em Montevidéu. “A saudade é grande, mas falo com ele pela internet.” Embora tenha residência fixa em São Paulo, ela pretende concluir o Ensino Médio e seguir carreira no circo. Certa vez, ela caiu do trapézio, a cama elástica amenizou a queda, mas com o impacto fraturou o cotovelo.
A diferença de temperatura entre um estado e outro trouxe a gripe. O frio do sul é sentido por ela, que também percebeu a diferença no sotaque. Atuando há duas semanas na cidade, o público de Lajeado foi muito elogiado pela artista. “Todas as sessões foram lotadas e fomos muito aplaudidos no fim do espetáculo.”
As festas de Natal, Ano-novo, Páscoa e aniversários são comemoradas dentro do picadeiro. Quando completou 15 anos, as comemorações atravessaram a noite debaixo da lona. “Esta é a nossa vida.”
O trailer como lar
Natural de Santo André, em São Paulo, Marcelo Palácios, 28 anos, nasceu no circo. Para ele, hoje está mais fácil viver num circo, pois a tecnologia contribui para o conforto. Os artistas levam gerador de energia elétrica para abastecer os trailers, equipados com geladeira, ar condicionado, micro-ondas, máquina de lavar roupas, banheira de hidromassagem, TV a cabo e internet.
Cada família tem sua cozinha, mas o circo oferece uma coletiva para eventos festivos. A vida deles é considerada normal, exceto pelo fato de serem viajantes, que fazem de cada cidade o seu lar.
Para Marcelo, morar no trailer facilita o cuidado dos filhos. “É mais seguro, pois sabemos quem são os amigos de nossos filhos.” Marcelo conta que a maioria dos seus amigos de infância, que não quis entrar no circo, trilhou outros caminhos, como o da criminalidade e das drogas.
Alguns motor home têm até o formato de uma casa, inclusive com área e varanda na rua, enfeitados com mesa e cadeira de jardim e algumas folhagens. Nas horas de folga, eles assistem a filmes, leem livros e navegam na internet.
No circo, artista não ajuda na montagem, sob pena de “martelar um dedo e acabar o artista”. A brincadeira das crianças é o próprio treinamento: viram cambalhotas, saltam mortais e exercitam a voz, mostrando que no circo não se separa a vida pessoal da profissional.
“Quiero morir en una casa”
Natural da Argentina, Luis Munhoz, 42 anos, pratica há dez um número perigoso. Ele anda de bicicleta sobre um cabo de aço a 11 metros do chão, sem proteção. Como nasceu no circo, foi palhaço, trapezista, acrobata, piloto de moto no globo da morte, mas sua atividade preferida é o equilíbrio, assim como seu pai, tempos atrás.
O argentino naturalizado brasileiro ganhou no ano 2000 o prêmio Estrela do Mar, em Mar Del Plata, pela sua apresentação de equilíbrio. “Circo é reciclagem. Se alguém fez, você tenta fazer melhor.”
Ele acrescentou ao número o andar de pernas de pau sobre o cabo. Depois de perceber que outras faziam o que ele tinha prática, inovou. Apesar do perigo, se diz seguro devido ao intenso treinamento.
Munhoz sabe todas as falas do palhaço, mas não se acha engraçado. “Por mais técnica que se tenha, se não atingir o público, tudo está perdido.” Munhoz conta que Inácio de Loiola, antes de entrar para a igreja, era equilibrista e admite que tem sangue frio e que vive para o aplauso.
Afirma que quanto mais difícil for a apresentação, melhor será o espetáculo e o cachê. Formado no Ensino Médio, chegou a cursar algumas disciplinas no curso superior de Educação Física, como as de ginástica olímpica.
O equilibrista diz que não quer ficar para sempre fazendo a mesma coisa, por isso tenta colocar mais uma dificuldade no exercício, a fim de aumentar o aplauso e o salário. Com sotaque espanhol, diz que quer subir na vida. “Não quero ser uma rês no meio do rebanho.”
Depois de tantas viagens e conquistas de meninas e, apesar de ser muitas vezes aplaudido de pé, Munhoz revela num tom melancólico que quer morrer numa casa fixa.