Ansiedade, noites mal dormidas, aumento de peso e dificuldade de concentração ou socialização. Os prejuízos causados pelo uso excessivo das telas são cada vez mais evidentes no meio da saúde. Para além do risco social da conectividade, está também a saúde mental.
A atenção começa na infância, passa pela juventude e é refletida na vida adulta. Nesse contexto, percebe-se pessoas menos interativas e, por vezes, infelizes. Segundo dados da da Rede de Atenção Psicossocial do SUS, em 2022, pela primeira vez na história, os registros de ansiedade entre crianças e jovens superaram os de adultos. O Relatório Mundial da Felicidade de 2023, elaborado pela ONU, também aponta uma tendência à maior sensação de infelicidade entre os jovens.
Informações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e do Censo Demográfico 2022, ainda evidenciam que, no Brasil, existem mais celulares do que pessoas. Em 2020, por exemplo, o país tinha 226,3 milhões de celulares e uma população de 203 milhões de brasileiros. Grande parte desses aparelhos também estão nas mãos de crianças e adolescentes.
Desafios diários
O resultado disso é percebido no dia a dia das famílias. Coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (caps) de Lajeado, Michele Ravel percebe que as telas são utilizadas, hoje, como um mecanismo para acalmar os filhos, com um papel parecido com o da “chupeta”. Ela ressalta que, muitas vezes, nesse processo, ao se permitir o acesso do celular aos pequenos, se permite também o consumo de outros conteúdos não adequados para a idade, sem que os pais percebam.
Outra realidade observada por ela nos atendimentos são adolescentes com dificuldades de fazer amigos e que preferem os jogos e a socialização virtual. Nesse contexto, Michele reforça a atenção dos pais em relação às pessoas com quem os filhos se relacionam.
“Conversam com pessoas de outros locais, São Paulo, Rio de Janeiro, que não conhecem, não sabem a idade. Vale sempre a pena pegar o celular do filho de vez em quando e ver o que ele está fazendo.”
Do ponto de vista do desenvolvimento e da saúde mental, ela destaca prejuízos, com muitos casos de depressão e, inclusive, episódios de pequenas automutilações. “Eles escondem, e acabam contando apenas nas terapias.”
Riscos ao desenvolvimento
Os primeiros anos de vida configuram o período em que o cérebro está em pleno desenvolvimento em todas as áreas, conforme destaca o pediatra João Paulo Weiand. O médico afirma que os prejuízos com o uso de telas são percebidos em todas as áreas do desenvolvimento, como o atraso da fala, e a diminuição da imaginação e criatividade. Ainda, cita a diminuição e o não desenvolvimento da percepção espacial, já que a criança fica focada em uma tela.
O excesso no uso dos dispositivos também gera mais irritabilidade, e causa distúrbio do sono, com insônias. “Cada vez mais se estuda e percebe o efeito nocivo do uso de telas”, afirma o pediatra.
Do ponto de vista físico, Weiand alerta para uma tendência maior à obesidade, sedentarismo e desvios posturais, assim como alterações visuais cada vez mais precoces. Já do ponto de vista social, há uma tendência maior ao isolamento. “Provocam o aumento nos casos de depressão e distúrbios do humor. Os transtornos do desenvolvimento como déficit de atenção e hiperatividade também são percebidos com o uso exagerado de telas.”
Apesar de não existir uma relação causal com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), o pediatra acredita que o uso dos dispositivos possa ser um agravante, e dificultar o tratamento.
“O uso de telas funciona no organismos como uma droga, liberando os mesmos hormônios e estimulantes que o uso de drogas libera, levando ao vício da mesma maneira”. Ele destaca que nos Estados Unidos e Europa, há clínicas que já trabalham a dependência do uso de telas.
Exemplo em casa
O pediatra ainda afirma que os pais devem dar o exemplo, deixar o celular de lado em momentos de lazer e, principalmente, na hora das refeições. Ele explica que o hábito de comer enquanto se utiliza o celular pode causar distúrbios, como seletividade alimentar, compulsividade e maior tendência à obesidade, já que também aumenta a ansiedade e o sedentarismo.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que, até os dois anos de idade, as telas sejam evitadas para crianças. De 2 a 5 anos, o ideal é que não ultrapasse de uma hora diária. De 6 a 10, é permitido o uso de uma a duas horas por dia, e de 11 a 18 anos, de duas a três horas por dia.
“A educação para uso de telas é obrigação dos pais. Firmeza nas combinações, explicar os malefícios do uso para os filhos, bem como estimular atividade física são ações importantes.”
Weiand ainda destaca a importância dos pais dedicarem tempo de qualidade para os filhos, com brincadeiras e com o estímulo de atividades lúdicas, que permitam a criatividade. Segundo o pediatra, esses são os principais aliados para que as telas não sejam um atrativo e não prejudiquem o desenvolvimento dos filhos.
Números no país e no mundo
- 82% das crianças brasileiras têm acesso à internet (10 a 13 anos de idade);
- 55% já possui celular (idade entre 10 e 13 anos);
- 95% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos de todo o país acessam a internet, principalmente redes sociais como o Instagram (66%) e o TikTok (63%);
- Nos Estados Unidos, pesquisa aponta que adolescentes entre 13 e 18 anos gastam mais de 6 horas por dia na internet, sem contar acessos por demandas escolares. Entre crianças de 8 a 12 anos, a média do uso diário de telas é de 4,6 horas.
- Fontes: ANATEL e Censo Demográfico 2022
Como colocar limites
- Estabelecer horários: definir momentos sem telas, como refeições e antes de dormir. Duas horas antes de dormir, desligar as telas para ter uma boa higiene do sono.
- Criar alternativas: incentivar atividades físicas, leitura e momentos em família. Como alternativa ao uso de telas, colocar algo prazeroso nesse espaço de tempo.
- Modelo parental: crianças e adolescentes seguem exemplos, então é importante que os adultos também tenham limites no uso das telas.
- Regras combinadas: ao invés de impor limites de forma rígida, envolver a criança/adolescente na criação de regras pode gerar maior adesão de todos.
- Uso consciente: ensinar a diferenciar o uso produtivo (estudo, criação) do consumo passivo e excessivo que parece ser o grande problema do exagero nas telas.
Impactos na saúde
- Déficit de atenção;
- Isolamento social: adolescentes que preferem interações virtuais às presenciais, impactando suas habilidades sociais.
- Alterações no humor: irritabilidade, insônia e baixa tolerância à frustração.
- Dependência digital: dificuldade em se desconectar das redes sociais ou jogos, gerando angústia quando não têm acesso.
- Alterações posturais e problemas de coluna
- Transtornos do sono e/ou alimentação (sobrepeso, obesidade, anorexia, bulimia)
- Sedentarismo
- Transtornos da imagem corporal e da autoestima
- Riscos da sexualidade (nudez, extorsão, abuso sexual)
- Comportamentos autolesivos e risco de suicídio
Entrevista
Daniel Cadore • psicólogo
“É importante que os adultos também tenham limites no uso das telas”
Como o uso excessivo de telas pode afetar o desenvolvimento cognitivo?
De diversas maneiras, como por exemplo a redução da capacidade de atenção, a memória de trabalho, e também deixa as pessoas menos tolerantes para lidar com atividades longas, você pode ver o tipo de mídia que os adolescentes estão consumindo que são vídeos curtos, ou até mesmo a função 2x nos áudios do WhatsApp, logo, leitura e raciocínio crítico estão cada vez menos evidentes.
Quais as situações mais recorrentes de problemas relacionados ao uso das telas?
No ambiente escolar e clínico, alguns dos problemas mais comuns incluem déficit de atenção e isolamento social. Um rapaz que avaliei me deixou muito intrigado, pois ele não fazia contato visual enquanto falava, depois de um tempo percebi que ele não tinha um círculo de amigos “reais”, todos eram virtuais e ele utilizava aplicativos para conversar, portanto ele olhava para outras coisas enquanto conversava. Ainda há alterações no humor, distúrbios do sono e dependência digital. Existe um termo chamado “fomo” – “Fear of missing out”, que é um estado de ansiedade em que as pessoas têm medo de perder algo que está acontecendo nas redes sociais.
Existe uma relação entre o tempo de tela e o aumento da ansiedade e depressão?
Há estudos que indicam uma correlação entre o tempo excessivo de tela e o aumento de sintomas de ansiedade e depressão, especialmente em adolescentes. Alguns fatores contribuem para essa relação, como por exemplo a privação de sono, a comparação social nas redes sociais, o cyberbullying e a busca de validação digital.
Como colocar limites?
Colocar limites no uso de telas é um desafio essencial, mas deve ser feito com equilíbrio e diálogo. Algumas estratégias incluem estabelecer horários, definir momentos sem telas, incentivar atividades físicas, leitura e momentos em família. Como alternativa ao uso de telas, recomendo sempre colocar algo prazeroso nesse espaço de tempo. Crianças e adolescentes seguem exemplos, então é importante que os adultos também tenham limites no uso das telas. Ao invés de impor limites de forma rígida, envolver a criança/adolescente na criação de regras pode gerar maior adesão de todos. Por fim, ensinar a diferenciar o uso produtivo do consumo passivo e excessivo, que me parece ser o grande problema do exagero nas telas.