Era fim de tarde da segunda-feira, 4, e a chuva não cessava. Ainda assim, moradores ribeirinhos ao Rio Taquari não imaginavam que seriam atingidos pela força da água. As horas avançavam e o volume do rio também.
Famílias entravam em pânico ao mesmo tempo em que a água invadia ruas, pátios, casas e prédios. Pouco tempo depois, já não tinha muito a ser feito. Iniciava ali uma luta pela sobrevivência. Era preciso optar entre salvar os bens materiais ou a própria vida.
Considerado um dos maiores desastres naturais do estado, a cheia do Taquari deixou pelo menos 48 mortos, milhares de desabrigados e perdas econômicas e sociais ainda em apuração. Em meio ao cenário de destruição, histórias de sobreviventes e pessoas que se arriscaram para auxiliar quem estava em perigo.
A solidariedade e doações de todas as partes confortam as famílias impactadas. O desafio agora é na reconstrução das cidades e o apoio emocional para superar o momento de dor e luto. Além das cidades mais atingidas, como é o caso de Encantado, Muçum e Roca Sales, outros municípios do Vale articulam medidas de socorro à comunidade.
Correnteza abaixo

Janete foi arrastada pela água e resgatada pelo pedreiro da obra ao lado do imóvel
Por volta de 18h daquela segunda, cinco pessoas da família de Janete Zilio, 57, estavam no interior da casa em Linha Alegre, comunidade de Muçum. Eles perceberam a água subir aos poucos, mas não deram muita atenção, afinal, chovia no momento. Com o passar das horas, o nível aumentava e a correnteza vinha mais forte ao ponto de inundar a residência.
“Estava eu, meus dois cunhados, minha cunhada e meu sogro. Começamos a nos preocupar quando a água entrou na cozinha. Corremos para a casa dos fundos que é mais alta”, relata Janete. Naquele momento, ela colocou o sogro sentado numa cadeira, em cima da mesa. Esse foi o local onde os demais se abrigaram. “A água arrancou parte da garagem e depois caiu toda a estrutura. O desespero aumentou”, conta.
Mas o pior ainda estava por vir. “Começamos a rezar. Lá pelas tantas, desabamos na água, todos caímos, gritamos e eu consegui me segurar no suporte da janela, saí da água, mas depois caí novamente porque ela subia muito”.
Janete lembra que o sogro já não dava mais sinais, e o cunhado também não respondia. Ela ainda se segurou na ponta do telhado e a cunhada se agarrou nas pernas dela, mas se desprendeu, foi embora com a correnteza. “Eu desci o rio e chamava por socorro, mas ninguém escutava nada. Engoli muita água, mas segui firme, confiante, parecia que alguém me segurava, era Deus, só pode”.
Em algum momento lançaram uma corda. Os dedos estavam rígidos por conta do frio, mas conseguiu segurar. Janete foi resgatada pelo pedreiro que construiu a casa, cerca de 20 metros distante de sua residência. Dos cinco que estavam dentro do imóvel, somente dois sobreviveram.

Foto: Matheus Laste
“Eu vi a morte”
A aposentada Maria Luísa Schuh, 66, sua mãe, Adiles Grandi, 90, e o esposo de Maria Luísa, Celso Schuh, 71, passaram no mínimo cinco horas na água até o resgate chegar. A casa foi tomada pela enchente. A única solução encontrada era subir nos móveis do quarto dos filhos, parte mais alta. O nível da água subia e restava apenas 30 cm até alcançar o forro, espaço em que conseguiram sobreviver.
“Eu vi a morte, não tinha outra explicação. Quando a água começou a subir, minha mãe de 90 anos já estava medicada e dormia. Fui ao quarto chamá-la e não tínhamos mais como sair, então, subimos na cama, nos agarramos nos nichos onde tinha as fotos dos netos, a imagem de santos”, descreve.
Maria Luísa colocou o celular com a lanterna ligada dentro de uma caixa. Assim protegeu o equipamento da água e ligou para o filho. “Me despedi dele e falei para cuidar bem dos meu netos, pois eu partiria feliz com a mãe e com meu marido. E vi a morte, abraçava a mãe, beijava, ela gemia de frio”, relata.
O socorro
Mesmo diante do desespero, a aposentada teve a ideia de enviar um áudio para o filho com o local exato em que estavam. A intenção de orientar para o resgate deu certo. Um grupo de voluntários chegou à residência. “O Jeremias que estava no resgate conhecia o quarto das crianças, pois convivia com meus filhos e conseguiu quebrar no local exato onde estávamos e fomos resgatados”.

Buraco aberto no forro da casa onde família foi resgatada em Roca Sales (Foto: Matheus Laste)
Ele precisou usar uma marreta para quebrar o concreto e puxar os sobreviventes. “Estávamos congelados, os vizinhos nos acolheram, nos deram chá, bolsas de água quente. Tudo doía por causa da água fria”, conta.
Hoje, Maria Luísa e o esposo moram na casa do filho mais velho, enquanto a mãe foi levada para casa de outro filho. Ao olhar pela janela do apartamento e ver a casa onde tudo aconteceu, emocionada, lamenta a perda de tantas vidas. “Estamos felizes por estarmos vivos, tristes pela perda de muitas pessoas que não tiveram a graça de estarem vivos e agora precisamos reconstruir a cidade juntos. Cada dia que passa o choro é maior porque vem na memória tudo que vivenciamos”.
Reencontro com o “herói”

O reencontro com o “herói” que salvou mais de 140 pessoas durante a enchente (Foto: Matheus Laste)
Nove dias depois, o reencontro emocionante da família Schuh com um dos heróis. O abraço apertado e o sentimento de gratidão resumem esse momento. Luiz Gracioli trabalha como pedreiro e aos 62 anos jamais imaginou que pudesse salvar tantas pessoas.
Luiz contou com a ajuda de Sérgio Benini e Jeremias, em um barco resgataram mais de 140 moradores de Roca Sales naquela noite. “Começamos os resgates na praça, depois subimos e mais pessoas gritavam por socorro. A correnteza levava o barco, mas seguimos firmes. Na casa da família Schuh, usamos uma marreta para quebrar o forro de concreto e conseguimos tirar eles de lá, com vida. Reencontrar eles e poder abraçar, não tem dinheiro que pague”. Essa é a segunda enchente que o pedreiro auxilia no resgate a sobreviventes. “Deus me deu essa força e se for preciso, farei tudo novamente”.
Outra sobrevivente a essa tragédia é Dorly Johans, conhecida como Lika. Aos 61 anos, descreve os momentos de terror que viveu na noite de segunda-feira, 4. “A minha maior preocupação era com a vizinha, porque eles estarem presos dentro de casa, quase morrendo afogados. A gente pedia socorro até que fomos resgatados pelo Luiz. Ele nos tirou de cima do telhado por volta de 4h da manhã, após quase 6h”.
Passado o momento de angústia, agora é hora de unir forças para recomeçar. “Perdemos tudo, mas a gente tem a vida e muitos que nos ajudam. Se não fosse a solidariedade desse povo, não sei o que seria da gente. Nós vamos dar a volta por cima, com certeza”, relata Dorly.

Foto: Matheus Laste
Resgate de 17 cães
A empresária Vitória Bortoletti, 32, em meio a um cenário de inundação, só pensava em salvar os animais que estavam em seu pet shop. “Estávamos finalizando os serviços de atendimento aos cães no pet e ouvindo a rádio que informava o nível do rio aumentando, mas como nunca aconteceu um episódio de enchente na loja, ficamos tranquilos”.
Alguns clientes levaram seus animais para o pet, em Roca Sales, para que ficassem lá, pois imaginavam estar fora de perigo. A rápida elevação do nível do rio surpreendeu a todos. A preocupação a partir de então, era em salvar os cães. “Chamamos por socorro e após algum tempo veio um bote para auxiliar no resgate. Foi horrível, mas consegui salvar os 17 cães”, disse.
Vitória é coordenadora da ONG ASPA que auxiliou no resgate a animais que estavam nos telhados durante a enchente. Muitos deles encontrados com ferimentos, mas levados para atendimento médico e outros para lares temporários. Muitos cães se perderam, alguns ainda estão sendo procurados e, outros já reencontraram seus donos.
Momentos de pânico
Em meio a muitas histórias de sobreviventes, há o relato da cuidadora de idosos, Sibila Ermani, 68, de Roca Sales. Ela descreve os momentos de pânico que viveu ao longo das 12 horas presa dentro de casa aguardando o resgate.
Sibila morava há 11 anos com Adila Weirich, 89, que entrou para a lista de vítimas da enchente. A cuidadora conta que viram a água subir, mas já não tinham mais como deixar a casa e resolveram subir no fogão. “Me segurei no varão da cortina. Por volta das 3h da manhã o suporte quebrou e caímos na água. A partir daquele momento, não vi mais a Adila”, lembra.
A cuidadora ainda caiu por duas vezes e quando foi resgatada estava sentada na pia. A equipe de socorristas arrebentou a porta da frente para conseguir acessar o imóvel. Naquele momento, Sibila estava roxa e tremendo de frio.

Foto: Matheus Laste