Menina, menino e menine:  linguagem neutra divide opiniões

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Menina, menino e menine: linguagem neutra divide opiniões

Onde quer que seja apresentado, o assunto provoca reações. Assim como no Brasil, diversos países debatem o uso da linguagem que surge da intenção de contemplar “pessoas não-binárias”

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Menina, menino e menine:  linguagem neutra divide opiniões
O debate não encontra consenso entre os estudiosos da língua portuguesa. Ainda assim, leis ou imposições são insuficientes para instituir ou barrar a linguagem. Crédito: Júlia Amaral
Vale do Taquari
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A tentativa de incluir pessoas não-binárias no sistema linguístico divide opiniões e ultrapassa o debate da gramática. Nas últimas semanas, o assunto repercutiu na região, depois que uma professora da rede privada usou a linguagem neutra em uma apresentação no início do ano letivo.

Para além do Vale, a discussão é destaque em nível nacional. Recentemente o assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal em função de uma lei em Rondônia, que proibiu a linguagem neutra em instituições de ensino e editais de concursos públicos, o que o STF declarou inconstitucional.

Para a escritora, palestrante e especialista em formação de professores, Priscila Boy, a linguagem neutra é uma falsa inclusão. Priscila entende que, ao incluir o pronome neutro, excluem-se outras pessoas, como surdos e mudos.

A escritora enfatiza que esta linguagem exclui crianças deficientes. “Como vou mostrar para o cego, no braille, “todex”? É homem ou mulher? Ele nunca vai entender o texto. Para o surdo, como vou colocar em libras um gênero neutro? Aos meninos com dislexia, como vão entender a escrita?”

Debate sem consenso

Conforme a docente do curso de Letras da Univates, Kari Forneck, o debate não encontra acordo entre os profissionais da área. “Há linguistas que argumentam que o sistema da língua portuguesa já possui uma forma de indicação de neutralidade, como em ‘aluno aplicado’, em que o ‘O’ final abarcaria, nessa perspectiva, estudantes que se identificam com o gênero masculino, com o gênero feminino ou com nenhum dos dois”, explica.

Por outro lado, há também compreensões de que essa forma de organização da língua portuguesa dá preferência explícita ao masculino. “Exemplo disso é o fato de que, se houver em uma sala 99 homens e uma mulher, usamos ‘todos’ para nos referir à totalidade do grupo; se há 99 mulheres e uma homem, igualmente usamos ‘todos’”. Mas o debate não se limita aos dois argumentos.

A língua é viva

Kari ressalta que as línguas estão em modificação o tempo todo e que não é possível controlá-las. Há, inclusive, mudanças que variam conforme as gerações. Um exemplo é a aplicação da segunda pessoa do plural – vós – que resiste ainda em poucos contextos. Por isso, argumentos de preservação da língua também não se sustentam.

Leis ou imposições são insuficientes para instituir ou para barrar a linguagem. “Os falantes precisam se apropriar dos usos, para que uma mudança venha a acontecer. E isso costuma levar bastante tempo”, reforça Kari. Para a professora, debater essas questões na escola pode ser uma boa maneira de discutir o tema sem preconceitos, e trazer à tona as complexidades que o assunto carrega.

Além das letras

Mais do que a gramática, a linguagem neutra aponta também para a afirmação de determinados grupos, que antes não encontravam espaço de expressão. “É um desdobramento da luta de identidade e luta de gênero. São pessoas que não querem ser dominadas por aquilo que não se reconhecem”, explica o doutor em Sociologia pela UFRGS e professor da Unisc, César Goes.

Telmo, Bianca e Ágata pesquisaram sobre gênero e sexualidade durante o ensino fundamental. Trabalho foi exposto na feira Estrelas do Conhecimento. Crédito: Divulgação

Para o professor, a polarização, os debates e a resistência em torno do assunto são naturais, porque se trata de uma novidade que abala a ordem conhecida até então. “Se a gente pensar no tempo anterior, era pior. A homogeneidade era opressora. Agora, se há polarização, é porque há expressão. As mudanças levam tempo”, ressalta.

A transformação, entretanto, aponta para possibilidades que não eram alternativas no passado, seja pela evolução da tecnologia – uma vez que é possível utilizar ‘@’ no lugar de ‘A’ ou ‘O’, ou seja, uma mudança no modo de escrever que não passa pela fonética – quanto da cultura da sociedade. Ainda segundo Goes, enquanto o Brasil tiver problemas mais urgentes para serem tratados, como a fome, o debate da língua ficará restrito às lutas de identidades.

Estudo de gênero na sala de aula

Os episódios de homofobia dentro de sala de aula sempre incomodaram Telmo Montesdioca Nunes Neto, 16, Ágatha Paulina Cardozo da Fontoura, 15, e Bianca Feil, 15. No ano passado, enquanto ainda eram alunos da escola Emef Pedro Jorge Schmidt, viram no projeto Estrelas do Conhecimento a oportunidade de trabalhar a fundo um assunto que sentiam necessidade de esclarecimento: gênero e sexualidade.

Orientados pela professora Caroline Maria Cadore Borges, os estudantes apresentaram as diferenças entre os termos e os significados de todas as causas da comunidade. Os saberes foram difundidos na escola e geraram efeitos positivos. “A gente pode perceber que no decorrer do ano mudaram muito as falas do pessoal. Teve muita gente que veio para nós e disse que achava uma coisa, mas que agora tinha entendido melhor”, conta.

Hoje, Telmo é estudante do Instituto Estadual de Educação Estrela da Manhã (IEEEM) e Bianca e Ágata do Ensino Médio Estrela. Mesmo em escolas separadas, o trio deve apresentar o trabalho na Feira Municipal de Ciências e Ideias (Femuci), de Esteio. Além do reconhecimento, o aprendizado também abriu as portas para a vida sem preconceito.

“Nunca ouvi ninguém usando a linguagem neutra. Mas aqui, no IEEEM, tem uma diversidade muito grande de culturas. Tem gente que é mais flexível, outros não”, conta Telmo. Para ele, o uso de pronomes sem marcação de gênero não seria um problema. “Acho que a gente deve respeitar. E não teria problema nenhum em usar. Eu me identifico com o meu pronome, mas acho que cada um deve ter a liberdade de ser chamado como quer. Tem que respeitar, sim”.

Dialeto próprio

O “Pajubá”, conhecido em alguns contextos como “Bajubá”, é um dialeto ligado à cultura das populações LGBTQIAPN+. Conforme o diplomado em Letras e mestrando em educação, Jean Valandro, o surgimento está ligado a dois grupos que foram historicamente oprimidos: religiões de matriz africana e pessoas transgênero, transexuais ou travestis. “Pajubá surge como forma “secreta” de comunicação que mistura palavras e expressões utilizadas pelas religiões de matriz africana em seus cultos e elementos da língua portuguesa”, explica.

O pesquisador lembra que nem todo indivíduo LGBTQIAPN+ entende o Pajubá ou sabe se comunicar por esse dialeto, apesar de muitos utilizarem algumas expressões. Além disso, artistas como Linn da Quebrada, Majur e Jup do Bairro usam o dialeto em suas músicas, e a doutora em Literatura, Amara Moira, publicou o livro “Neca + 20 poemetos travessos”, obra em que apresenta termos do Pajubá.

 

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