Segunda chance para a vida

Doação de órgãos

Segunda chance para a vida

Em meio à dor da perda, famílias são consultadas sobre a possibilidade de doação dos órgãos da pessoa falecida. O “sim” pode salvar até outras sete vidas. Nos últimos três anos, as mortes encefálicas registradas no Hospital Bruno Born resultaram, na proporção, em mais doações de órgãos do que no estado e no país

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Atualizado sexta-feira,
03 de Fevereiro de 2023 às 08:46

Segunda chance para a vida
Juliano Santiago com a foto de Henrique, irmão mais novo que morreu em acidente em 2017. Doador declarado, ajudou a salvar outras quatro pessoas. Crédito: Júlia Amaral
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Quando receberam a notícia da morte de Henrique, a família Santiago sabia que deveria aceitar a doação de órgãos. Era a forma de cumprir a vontade declarada do filho mais novo de dona Vera. Henrique tinha 24 anos quando, no dia 24 de dezembro de 2017, sofreu um acidente de carro que tirou a sua vida, mas salvou outras quatro pessoas.

A família de Bom Retiro do Sul faz parte de uma porcentagem pequena, mas positiva. Dos 23 protocolos de morte cerebral constatados em 2022 no Hospital Bruno Born, oito tiveram órgãos doados. Em 2021, foram quatro de 14. Na proporção, os números são superiores aos percentuais do estado nos últimos três anos, mas poderiam ser melhores.

No caso de Henrique, a família sabia qual era a decisão desejada, o que nem sempre acontece. O jovem sofria de diabetes tipo um e, naquela véspera de Natal, a caminho do almoço dos sogros, desmaiou enquanto dirigia. A morte de Henrique só foi constatada dia 26 de dezembro. “No dia 25 nos ligaram. Chegamos no hospital e o médico nos disse que não tinha nos chamado. Na verdade, foi visto pouco depois da ligação que ainda havia sangue circulando no cérebro, então não podiam dizer que tinha morrido”, lembra Juliano.

Assim que aceitaram a doação de órgãos, o tempo até o velório aumentou. A princípio, seria possível doar o fígado, os rins, o coração e o pulmão. No entanto, o pulmão não pode ser transplantado, o que prolongou em algumas horas o tempo de saída do corpo do hospital. Nesse momento, a família é informada somente sobre o hospital para onde o órgão vai, além da idade e sexo do paciente que receberá a doação.

Mensagem inesperada

Passados três dias do enterro, Juliano percebeu uma notificação nas suas redes sociais. Era a mensagem de Ricardo, irmão de Gustavo, que recebeu um dos rins de Henrique. “Ele me agradeceu pela doação, e dizia que tínhamos salvado a vida do irmão dele”, conta. Gustavo mora em São Leopoldo e mantém contato com Juliano até hoje.

“Não é só a vida de uma pessoa que salvamos. É também dos familiares e dos amigos. Seriam outras pessoas que estariam enlutadas como nós, mas conseguimos mudar isso”, destaca Juliano.

No Hospital Bruno Born, em Lajeado, a fila de espera por um transplante de rim chega a 67 pessoas,
o que corresponde a 70% dos pacientes que fazem hemodiálise. Crédito: Arquivo

Coração que ainda bate

Para doar, é preciso constatar a morte cerebral. “Neste caso, é difícil a família assimilar a notícia. O que viram ontem, quando a pessoa estava viva, e o que vê hoje, já com a notícia da morte, é praticamente a mesma coisa”, explica o coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO6), Nelson Barbosa Franco Neto. A OPO6 tem sede no HBB e corresponde, entre outras regiões, aos Vales do Taquari e do Rio Pardo.

Até a constatação da morte, um longo caminho é percorrido. São necessárias avaliações de dois médicos diferentes, ambos com treinamento em detecção de morte cerebral, além de mais um exame. O processo é garantido pela Lei Nacional dos Transplantes, de 1997.

Para Neto, falar sobre o assunto somente na hora em que a família precisa decidir se vai ou não fazer a doação torna o processo mais difícil. “O que a gente precisa que as pessoas entendam é: o benefício vai ser para pessoas que você nem está enxergando”.

Corrida contra o tempo

Quando uma família aceita a doação, a equipe médica encaminha os exames especializados, que devem ser feitos com rapidez. Conforme Neto, no HBB, todo suporte necessário é disponibilizado, o que também ajuda a garantir bons índices de doação. Depois disso, as informações serão registradas em um programa que cruza os dados do doador com os dados das pessoas que estão na lista de espera de transplante.

Assim que o programa encontra o melhor receptor, a Central de Estadual de Transplantes contata a equipe do paciente, que avalia se aceita o órgão e se o paciente tem condições de fazer o transplante naquele momento. Caso não tenha receptor apto no RS, é destinado para qualquer cidade do país.

Vidas salvas

Quando tudo dá certo no processo de doação, o corpo de uma pessoa pode salvar até sete vidas. É possível doar o coração, pulmão, o fígado, dois rins, pâncreas e intestino – os dois últimos sendo os mais raros. A pele e as córneas também podem ser doadas.
Existem poucas contraindicações para doação. Não podem doar apenas aqueles que têm AIDS ou HIV, câncer ativo ou infecção generalizada muito grave. Idade avançada ou hipertensão, por exemplo, não são impeditivos.

Na fila do transplante

O HBB faz transplantes de rins e de córneas. A fila de espera por um rim chega a 67 pessoas, o que corresponde a 70% dos pacientes que fazem hemodiálise. Os outros 30% não têm condições de fazer o transplante.

A fila de espera por um órgão é angustiante. Para os pais de um recém nascido, é ainda pior. Andrea da Cunha Weber e o marido Gilmar Stach, celebravam a chegada do segundo filho, em 2013, quando perceberam que havia algo errado com Raizo Weber Stach. O pequeno tinha 15 dias e apresentava uma cor amarela, além de cólicas fortes. A família de Estrela buscou ajuda em três pediatras diferentes da região, até receber a notícia de que o tratamento adequado só poderia ser feito em Porto Alegre.

Raizo tinha dois meses, não conseguia mais ganhar peso e se alimentava por sonda. Tudo o que os pais sabiam era que o fígado do menino estava maior do que o normal. Depois das biópsias, o anúncio era de uma missão quase impossível: Raizo sofria de atresia de vias biliares (AVB), uma doença do fígado e ductos biliares, e precisava de um transplante de fígado o mais rápido possível, sem tempo para fila de espera.

De tio para sobrinho

O primeiro candidato foi Gilmar, que descobriu que tinha anticorpos da hepatite e não poderia ser o doador. Andrea, na época, pesava 137kg e tinha passado pela cesárea, também não poderia doar.

A salvação veio do tio, Jonas da Cunha Weber, com 23 anos na época. Raizo foi o primeiro bebê a passar por transplante intravivos no Rio Grande do Sul, em dezembro de 2013, e teve a vida salva pelo tio.

“Até hoje eles são muito amigos. Meu irmão é dindo dele e gosta de dizer que ele faz parte do Raizo, que está dentro dele”, conta Andreia. Periodicamente, o menino que completa 10 anos em junho precisa fazer exames e tem tratamento com medicação contínua. Mas nenhum dos desafios foi tão grande como em 2013. Hoje, Andrea também organiza grupos de WhatsApp de incentivo à doação de órgãos e participa de campanhas todos os anos.

Raizo Weber Stach foi o menor bebê do estado a passar por um transplante, aos seis meses. Quem salvou a sua vida foi o tio, Jonas da Cunha Weber

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