Assédio no consultório alerta psicólogas pelo país

REPORTAGEM ESPECIAL

Assédio no consultório alerta psicólogas pelo país

Homem de Bom Retiro do Sul é investigado por importunação sexual durante atendimentos online. Pelo menos 70 mulheres afirmam terem sido vítimas. Casos provocam discussão nacional sobre os limites do sigilo profissional e do uso das consultas remotas

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Atualizado sábado,
17 de Setembro de 2022 às 07:38

Assédio no consultório alerta psicólogas pelo país
Psicólogas de 12 estados do Brasil estão entre possíveis vítimas de importunação sexual por parte de homem de Bom Retiro do Sul. Crédito: Filipe Faleiro
Vale do Taquari
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O contato via WhatsApp aconteceu em um domingo de fevereiro. Um horário incomum, após as 22h. O homem, morador de Bom Retiro do Sul, de 34 anos, conseguiu o número no perfil da psicóloga de Brasília, Liliany Souza, 37, pelo Instagram.

“Ele pedia uma consulta urgente. Fiquei em dúvida, se deveria atender. Eu disse para mandar um áudio. Ele começou a me ligar de maneira insistente, fazendo chamadas de vídeo”, conta. Negou o atendimento naquele momento e sugeriu agendar. A psicóloga encaminhou uma ficha para o suposto paciente preencher e também a cobrança pelo serviço. Essa conduta dela provocou uma série de ofensas de cunho sexual. “Ele usou muitas palavras de baixo calão. Disse que eu colocava a bunda e os peitos pra fora para atrair clientes e que jamais pagaria uma psicóloga.”

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Liliany bloqueou o contato e semanas após o fato resolveu dividir a experiência nas redes sociais. A postagem criou uma reação nacional. Centenas de mensagens sobre abordagens semelhantes e também de quem aceitou a “consulta” online.

Em seguida, ela criou um grupo de psicólogas do país com mais de 70 profissionais que haviam sido procuradas pelo homem. Em cada relato das profissionais, se percebia um modo de operação. O homem afirmava passar por problemas, ser deficiente físico e estar em sofrimento.

“Me surpreendi com o alcance da publicação e com muitos relatos de outras colegas por todo o país”, destaca Liliany. A partir das conversas, surgiu a denúncia ao Ministério Público de São Paulo, a partir do fato relatado por uma profissional daquele estado.

Essa testemunha aceitou dois atendimentos remotos. No primeiro, o suspeito pediu para ser atendido deitado e posicionou a câmera do celular para mostrar apenas o rosto. Na conversa, falava de problemas sexuais, da rejeição das mulheres e que tinha um “fetiche” fora de controle.

Pelas expressões, respiração ofegante e movimento dos braços, parecia se masturbar. No outro atendimento, o homem relatava um sonho erótico com a psicóloga. Ela desligou e bloqueou o contato. Esse depoimento foi levado à Delegacia de Proteção da Mulher. A Polícia Civil. A investigação começou em maio. Há suspeitas de que ele atue dessa forma há quase dois anos.

“Ajudei a coletar os nomes e informações das psicólogas. Levamos ao Ministério Público e à polícia. Pelo que disseram, das mais de 70 atreladas ao inquérito, cinco foram ouvidas”, diz Liliany. As psicólogas contatadas ou supostas vítimas de importunação são de 12 estados. A reportagem tentou contato com o homem de Bom Retiro ao longo da semana. Nenhuma das ligações foi atendida.

Depoimento

O suspeito foi ouvido pela Polícia Civil de Bom Retiro do Sul. Conforme o delegado Juliano Stobbe, foi feita uma solicitação por parte da Delegacia de Proteção à Mulher de São Paulo. “Ele compareceu e negou os fatos.”

Na Delegacia da Mulher de Lajeado não há nenhum registro neste sentido, conta a delegada Márcia Colembergue. De acordo com ela, em situações de crime sexual pela internet, a competência da investigação recaí sobre o local onde houve o fato, onde a vítima registrou.

A primeira hipótese trabalhada pela polícia de São Paulo aponta para o crime de importunação sexual. Pelo Código Penal, caso comprovado, a punição varia de um até cinco anos de detenção.

Repercussão nacional

O alto número de profissionais que teriam sido vítimas do homem evocou um movimento em toda a classe da psicologia no país. Conselhos regionais iniciaram campanhas de conscientização, treinamentos e fóruns de debate. Serviu também para uma série de questionamentos sobre quais atendimentos são oportunos para o modo remoto e sobre os limites do sigilo da consulta.

Integrante do Conselho Regional de Psicológica do RS, Fabiane Konowaluk Santos Machado, afirma que nove em cada dez profissionais da área no país são mulheres. Na argumentação usada pelo homem, ele sempre lembrava da questão do sigilo como preceito da consulta. “A quebra desse sigilo é permitida em casos de violência, ameaça ou atentado à vida. Orientamos que as profissionais denunciem para que esses fatos possam ser investigados.”

A entidade lançou uma nota oficial aos profissionais. Pelas orientações, em caso de situação ocorrida por meio de Tecnologias da Informação e Comunicação, indica-se “printar” as telas do computador, aplicativo de conversa ou outro dispositivo, observando que apareça o número do telefone ou outra forma de contato da pessoa praticante da violência, salvando os registros das conversas, sejam os escritos, sejam os gravados em vídeo e/ou áudio.

Homem insiste para atendimento imediato pela internet. Crédito: Reprodução

“Me senti abusada, constrangida e ridicularizada”

A psicóloga de Lajeado, Zeloá Vieira Baumer, está entre as profissionais procuradas pelo suspeito. “Eu tinha dois meses de formada e muitos horários disponíveis. Era março de 2021. Ele me procurou e perguntou se eu atendia online. Depois queria saber qual era o meu Facebook e se poderia atendê-lo naquele momento.”

Ela estranhou a abordagem. “Achei que fosse uma dificuldade em se comunicar. Falou que tinha recebido o salário e que pagaria no próximo mês. Marcamos para o outro dia, para ser uma conversa inicial e eu explicar como funciona o processo terapêutico.”

No outro dia, chamou a psicóloga antes do horário combinado. “Se mostrava com muita pressa. Eu iniciei a conversa. Percebi que estava inquieto e se arrumava na cadeira para que aparecesse na tela apenas do peito para cima. Logo perguntei o motivo da procura, foi então que ele disse que as meninas não queriam se relacionar com ele por ser deficiente. Foi aí que eu entendi o que pretendia. Eu fiquei sem chão, me senti abusada, constrangida, ridicularizada e enganada.”

Zeloá manteve o sigilo sobre o fato. “Na época comentei com uma colega psicóloga que também foi procurada com ela. Só contei para minha família agora que o caso veio a tona. Trago esse relato no intuito de unir forças e acolher todas as mulheres que passaram por isso.”

Debate no Vale do Taquari

O polo regional dos Vales, representação local da psicologia, órgão vinculado ao Conselho Regional, promove em 27 de setembro um encontro para tratar desses episódios de importunação. Conforme uma das integrantes, a psicóloga Janaína Zimmer, o grupo se reúne uma vez por mês para abordar temáticas relacionadas à atuação profissional. “Precisamos debater esses assuntos, até como uma forma de nos proteger”, ressalta.


ENTREVISTA – Janaína Zimmer • psicóloga especialista em psicoterapia sistêmica familiar e conjugal. Integrante do Polo dos Vales, vinculado ao Conselho Regional de Psicologia

“Podemos quebrar o sigilo frente a situações específicas”

Crédito: Arquivo Pessoal

A Hora – As consultas remotas, por meio de tele atendimento, é um fenômeno recente. Em um primeiro momento, como avalia essa possibilidade aos profissionais da psicologia?

Janaína Zimmer – Temos uma primeira resolução, de 2012, onde se descreviam as atividades em que o psicólogo poderia atender de forma online. Também as regras para se regularizar no Conselho Federal, com base em um relatório de como ocorre esse serviço. A partir disso, o profissional passava por uma avaliação para só depois poder atender.

Em 2018, houve atualizações nas regras devido a chegada de tecnologias. Dois anos depois, a pandemia trouxe mais mudanças. Devido ao distanciamento social exigido, houve uma flexibilização nos cadastros. Claro, existe uma regulamentação dizendo o que pode e o que não pode, mas o atendimento precisava continuar. Muitas psicólogas não atendiam online. Eu era uma delas. De fato, a pandemia trouxe um grande aumento neste formato de consulta.

– Quanto aos episódios de importunação sexual, em especial este caso investigado em São Paulo, como isso alerta as profissionais?

Janaína – Estamos sempre sujeitas a isso. A grande maioria dos profissionais de psicologia no país são mulheres. Nosso trabalho é relacional, no contato com os pacientes. Precisamos nos precaver. Mas é sempre muito delicado. Por vezes, adotamos formas de proteção e, mesmo assim, passamos por situações delicadas.

É necessário pensarmos e debatermos esses assuntos. Perceber que antes de um primeiro atendimento temos de entender qual a necessidade. O WhatsApp facilita e ao mesmo tempo também limita. Quando

 

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