Em meio a dor, coragem para começar

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Em meio a dor, coragem para começar

Terapia, atividades físicas, apoio da família ou dos amigos. Depois de passar por um trauma, físico ou emocional, o caminho da cura é longo, e pode se tornar exemplo de força e superação

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Em meio a dor, coragem para começar
Larissa utiliza as redes sociais para compartilhar o trauma que sofreu na infância.
Vale do Taquari

Trauma é uma sequela deixada por situações que causam sofrimento e muita dor. Seja ela física ou emocional, geram consequências e afetam o pensamento e comportamento das pessoas. Grande parte da população já enfrentou momentos potencialmente traumáticos, mas nem todos desenvolvem a perturbação.

Violência, acidente, abuso sexual ou verbal são alguns dos mais comuns. E as formas de lidar são diferentes para cada um. Alguns sintomas podem ser percebidos, como mudanças repentinas de comportamento, com a presença do medo, retraimento, dificuldades de se concentrar, de dormir à noite ou afastamento de alguém que antes era próximo.

Mudança na alimentação, falta de apetite ou compulsividade também podem ser sinais de que algum trauma ocorreu. De acordo com a psicanalista Mariana Huber, acolher é a forma ideal de lidar com a vítima ou sobrevivente. “Se uma criança te diz que foi abusada, que alguém encostou nela em lugares que não deveria, jamais diga que é uma coisa da cabeça dela. A pessoa tem que ser escutada, acolhida, protegida e afastada do abusador”, destaca a profissional.

Ela ainda ressalta que, em geral, a pessoa que sofreu algum tipo de trauma demora muito tempo para buscar ajuda. E, às vezes, mesmo com o auxílio de um profissional, ela não fala dos eventos traumáticos. “Isso porque para falar sobre suas dores, a pessoa precisa confiar. E para confiar em alguém, leva-se muito tempo”, afirma Mariana. Por isso, é necessário muita paciência. A cura ocorre a longo prazo.

Fala, culpa e sobrevivência

A dor deu espaço para um processo de cura na vida Larissa Nonnenmacher, 36. Depois de mais de três décadas, ele reconhece que a tempos deixou de ser vítima, e agora é uma sobrevivente do abuso sexual infantil. Quando ela nasceu, a mãe tinha 21 anos e o pai, 52. Na época, ele era casado, e tinha outros seis filhos. A mãe foi para Montenegro e, apesar de ainda ter contato, não contou à família quem era o pai da menina.

Foi só quando Larissa fez 4, já em Lajeado, que os avós o conheceram e que ela foi apresentada à família do pai. Aos 3, identifica sua primeira memória do abuso. De forma manipuladora, mas sutil, ela tem pelo menos 20 “fleches” do ocorrido, que durou até seus 12 anos.

Um dia, durante uma aula de matemática do colégio, uma senhora a chamou e entregou uma carta, pedindo para que Larissa a lesse em sua frente. “Naquela carta, minha irmã, que estava na Austrália, contava toda a trajetória dela. Situações de abuso pelas quais tinha passado com o meu pai, e dizia que ela sabia que eu estava passando por isso, e que podia me ajudar”, lembra. Aquela foi a primeira vez que soube nomear o que sofria com o pai.

Quando ele a buscou na escola naquele dia, Larissa pediu para ir até a casa dos avós paternos em Cruzeiro do Sul, e mostrou a carta. Ele chorou, pediu desculpas, e Larissa não contou o ocorrido para mais ninguém. Até os 14 anos quando, depois de algumas brigas com a mãe, mostrou a mensagem da irmã e foi encaminhada para o Conselho Tutelar. Um processo foi aberto, mas com as influências do pai, foi arquivado em seguida.

A história só se tornou pública em 2006, quando a irmã mais velha foi até o Serviço de Assistência Jurídica (Sajur), da Univates. O pai ficou preso em regime semiaberto até o fim da vida. Ele morreu no ano passado, e foi só então que Larissa sentiu, pelos menos um pouco, o que era a paz.

Hoje, a terapia, ioga e a conversa é o que faz Larissa ser uma sobrevivente. Apesar do trauma, ela consegue encontrar beleza e felicidade nas pequenas coisas, e quer transformar sua dor em ajuda. As amigas lhe dão força, e foram as primeiras a ouvir detalhes do que ocorreu.

Desde fevereiro, ela também participa de um grupo de apoio online, e foi a partir desses encontros que decidiu compartilhar sua história. Larissa quer criar uma rede de apoio semelhante em Lajeado, para pessoas que passam por trauma de abuso, e suas mães e responsáveis.

“É tudo muito fresco, por isso estou fazendo isso, e entendo que conversar é curativo”. Por enquanto, é por meio do Instagram @larissa_nnn, que ela conta sua história de cura, que é lenta, e vai durar a vida toda.

Vida nova e nova vida

Felipe Ritter era um jovem saudável e que adorava jogar futebol. Fazia pouco tempo que tinha começado a trabalhar na copa do Hospital Bruno Born quando sofreu um grave acidente de carro, em novembro de 2004. Ele não lembra nada do momento, apenas alguns flashes, que ele não sabe que são reais ou sonhos. Seis meses depois, Ritter despertou do coma.

Logo que acordou, ele estava com os músculos contraídos e com o lado direito todo paralizado. “Eu me vi em uma situação em que eu nunca ia voltar a ser uma pessoa normal. Eu me via muito mal. Quando eu acordei… Foi uma coisa horrível”, conta.

Crédito: Arquivo Pessoal

Ele começou todos os processos de recuperação, incluindo a fisioterapia, mas não percebia diferença alguma. “Eu dizia para minha mãe que ela podia botar meus tênis fora, que eu nunca mais ia andar”, lembra. A força para continuar veio da notícia que a namorada carregava com ela: Felipe seria pai nos próximos meses.

“Se não fosse meu filho, o Miguel, eu não estaria aqui agora. Isso eu posso afirmar”, diz. As memórias daquele período são conturbadas e muita coisa se apagou das lembranças. O que Felipe não esquece é que foi do filho que veio o impulso para continuar nas fisioterapias e se esforçar ao máximo para melhorar.

“Eu tenho foto dele bem baixinho, pequeno, cabeludinho, e eu em volta dele, de bengala. Eu ainda estava bem mal na época. Eu de bengala e ele agitando”, lembra. Em julho, Miguel faz 15 anos. Felipe sente que ele ainda não tem dimensão da importância que teve na vida do pai, mas reforça que ainda hoje a relação é de muito companheirismo.

Além do filho, ele cita os amigos e a família como grandes motivadores da sua superação. “Bem no início, quando eu ainda tava muito mal, meus colegas iam lá em casa e diziam ‘vamos alemão! te mexe!’”, conta. Para ele, foram esses laços fraternos o tônico da cura.

Felipe só voltou a trabalhar em 2014, dez anos depois do acidente, e em uma nova função: na rouparia do HBB. Hoje, ele não sente medo de andar de carro, mas ainda não consegue dirigir, porque precisa de um automóvel adaptado. Todos os dias, vai a pé para o trabalho e vive feliz fazendo suas caminhadas.

ENTREVISTA – Celina Darde é psicoterapeuta

“Nem sempre um evento configura um trauma, depende muito das condições emocionais de cada um”

Qual o primeiro passo que deve ser tomado depois de passar por um trauma?

Do ponto de vista de tratamento, é importante oferecer recursos positivos para que a pessoa se sinta segura e acolhida. Assim, preparada para iniciar o tratamento de reprocessamento de memórias, ressignificando suas emoções negativas a respeito de si mesma.

Existem fases de superação? Quais são e o que fazer em cada fase?

Melhor perceber como um processo pessoal. Entender o que significou para a vítima, o quanto impactou na sua vida. Nem sempre um evento configura um trauma, depende muito das condições emocionais de cada um.

Tratar é muito importante. Evitação é um mecanismo de defesa e não é o melhor caminho, levando em consideração que o trauma deixa marcas na mente, cérebro e na nossa relação com as sensações corporais.

Se nos sentíamos sozinhos, precisamos de uma sensação de bem estar acompanhados. Se estávamos com medo, precisamos de proteção. Se tivermos vergonha, precisamos de aceitação. Se fomos feridos, precisamos de conforto. É como se a parte de nós que experimentou a ruptura original da segurança estivesse esperando desde então a chegada do reparo.


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