Entre a realidade e o romantismo da tradição

20 DE SETEMBRO

Entre a realidade e o romantismo da tradição

A data marca o início da Revolução Farroupilha em 1835. Mas, apesar de ser celebrada por tradicionalistas em todo o estado, ela também carrega críticas de uma guerra civil que durou dez anos, a mais longa do país

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Atualizado terça-feira,
21 de Setembro de 2021 às 13:13

Entre a realidade e o romantismo da tradição
Estado
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De um lado, o governo imperial brasileiro que passava por um hiato entre o primeiro e o segundo reinado. Do outro, a elite gaúcha insatisfeita, em especial, com os altos impostos cobrados sobre o charque. As revoltas eram vistas em diferentes regiões do país, e foi neste contexto que a Revolução Farroupilha teve início no Rio Grande do Sul, em 20 de setembro de 1835. Por 10 anos, esse era o cenário dos campos gaúchos, e o movimento que teve fim em 1845, se constituiu como a mais longa guerra civil da história do Brasil.

Na época, o Brasil era um país independente e vivia as consequências da renúncia de D. Pedro I que, em 1831, voltou a Portugal. Com 5 anos, D. Pedro II não podia assumir o império e o país passou por um período de regência, entre 1831 e 1840, com governantes que não tinham ligação com a coroa portuguesa.

No período, várias regiões estavam insatisfeitas com os governantes e se revoltaram. Na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a indignação era por parte de uma elite pecuarista que se ocupava de uma atividade econômica secundária, a produção do charque.

“O governo central das regências não alcançou esses pecuaristas com elementos que eram importantes para eles, com o financiamento do sal e uma garantia do mercado para o consumo do charque no estado”, ressalta o historiador e professor da Univates Sérgio Nunes Lopes. No período, a carne também estava sendo comprada no Uruguai e Argentina, já que a regência reduzia os impostos sobre a importação estrangeira.

“A grande pauta desse grupo de estancieiros que depois vai se rebelar militarmente era que o governo taxasse a importação do charque para que fosse possível consumir a carne daqui”, ressalta. Além disso, o governo também restringia a autonomia das províncias e centralizava o poder e os investimentos políticos e econômicos na região sudeste do país.

Uma história esquecida

Apesar de levar o nome Revolta dos Farrapos, a guerra não era dos “farroupilhas”, tampouco dos chamados “lanceiros negros”, que foram para linha de frente do combate. Mas sim da elite charqueadora, que não ia para o campo de batalha.

Em troca de lutar, foi prometido aos escravizados alforria, a liberdade após o término da guerra. “Isso efetivamente não aconteceu. Primeiro porque não houve nenhuma vitória. E havia um problema: o que fazer com os escravizados que conseguiram se estabelecer na sociedade”, explica o pesquisador.

Em novembro de 1844, um esquadrão de lanceiros negros acampados no Cerro dos Porongos foi surpreendido e arrasado pelas tropas imperiais. O chamado Massacre dos Porongos foi marcado pelo extermínio dos negros momentos antes de acabar a guerra. No episódio, mais de 100 homens foram assassinados e os que não escaparam para quilombos ou para o Uruguai foram enviados à corte, no Rio de Janeiro, onde seguiram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois.

A história conta que o então general David Canabarro teria traído as tropas negras. Com a desculpa de trocar as munições, deixou os homens desarmados, e facilitou o ataque para o império.

“De certa forma esse episódio vem sendo trabalhado, mas, especialmente para quem se preocupa com a edificação dos heróis é bastante difícil admitir que houve um massacre como esse”, destaca Lopes.

O mito de uma identidade

Mais tarde, o Movimento Farroupilha serviu de matéria prima para a fundação do mito de um sujeito riograndense chamado de gaúcho. Essa identidade, no entanto, não correspondia a todos que viviam no território no século XIX e ainda hoje não é uniforme. De acordo com o pesquisador, esse mito se caracteriza como uma generalização daqueles que nasceram no estado e que vivem em uma sociedade diversificada.

“Um povo que ocupa um determinado lugar articula alguns elementos históricos para compor um discurso sobre si, um mito fundador de uma identidade regional”, destaca.

A literatura e o cinema contribuíram para o fortalecimento dessa figura do gaúcho heróico, de bombacha e chapéu na cabeça. Por um lado, ele existiu e ainda existe, já que o estado está localizado em área de fronteiras onde ocorreram os conflitos no período de expansão do país e esse homem foi associado à terra e ao herói de guerra.

“A representação deste episódio depois de transcorrido chega narrado por aquela filosofia do positivismo, sempre criando um personagem, essa ideia de uma construção heroica dos fatos, exaltando o protagonismo dos gaúchos”, explica.

Consciência sobre o 20 de Setembro

Nesse contexto, surgiram diferentes manifestações tradicionalistas em todo o estado e, mesmo com a carga crítica atrelada à história da revolução, a tradição se torna cada vez mais forte, sobretudo no Vale do Taquari.

Lopes defende a importância desses eventos cívicos, mas acredita que eles devem ser vistos com uma perspectiva crítica, de reflexão. “Esse 20 de setembro serve para a gente se aproximar da história do nosso estado, como ele foi se constituindo como um lugar com sua identidade, seu protagonismo dentro do que era o império”, afirma.

O professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e morador de Lajeado, Jorge Luiz da Cunha também ressalta o surgimento de Movimentos Tradicionalistas Gaúchos (MTG), como uma prática folclórica criada a partir da fundação do Centro de Tradições Gaúchas 35, em Porto Alegre.

Tradicionalismo levado a sério

Apesar disso, o tradicionalismo tem ganhado cada vez mais espaço no Vale e, hoje, possui mais de 50 entidades representativas na região. O sociólogo e tradicionalista há mais de 30 anos, Jeferson Valente, 44, explica que o 20 de setembro é ainda importante porque marca o chamado mito fundador, em que o gaúcho se vê como um povo diferente, com uma cultura mais próxima do povos uruguaios e argentinos.

“O Rio Grande do Sul sempre foi uma área de fronteiras e palco de guerrilhas. Por isso temos essa consciência guerreira do povo, de apego à terra. A partir da criação dos CTGs, vamos ver esse apego com uma cultura que nos identifica como um povo diferente, com valores que caem em desuso”, ressalta. Mas, ao mesmo tempo, destaca que o tradicionalismo acompanha a modernização, especialmente nas indumentárias.

Para ele, o 20 de setembro é importante para lembrar que o povo gaúcho não é apenas pertencente ao mercado cultural, com a criação de um personagem, mas parte de uma sociedade que tem uma história e uma cultura própria. “Nós cultivamos valores, em um ambiente onde a família se sente bem, desde as crianças até os avós, com diferentes grupos sociais, faixas etárias podendo conviver em relativa harmonia”, destaca Valente.

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