O que sobrou das balsas do passado

PRIMEIRO ELO DE LIGAÇÃO

O que sobrou das balsas do passado

A travessia pelos rios ocorre faz quase 150 anos no Vale do Taquari. Os “passos”, como eram chamados pontos onde balsas funcionavam, foram as primeiras pontes da região. Hoje, apenas uma embarcação mantém ativo o antigo sistema de transporte. Em outros municípios, barqueiros realizam a travessia de passageiros de forma não regulamentada

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Atualizado sábado,
27 de Fevereiro de 2021 às 10:30

O que sobrou das balsas do passado
Barca entre Estrela e Lajeado foi uma das primeiras instaladas na região. Conforme registros históricos, a Bacia Taquari Antas tinha mais de 50 pontos de travessia no passado ACERVO MEMORIAL DE ESTRELA
Vale do Taquari

“Na história da humanidade, o transporte por água pode ser considerado o mais antigo. Muito antes da descoberta da roda, o homem já se deslocava sobre a água com o emprego de materiais flutuantes”.

A máxima escrita por José Azambuja também foi realidade no início da colonização do Vale do Taquari. Com estradas precárias e sem pontes, as balsas foram o primeiro meio de transporte para interligar comunidades de uma margem até outro lado do rio.

Essas ligações pela água eram chamadas de passos. No livro, “O município de Estrela: histórias e crônicas”, o autor Lothar Hessel conta que o primeiro passo do Rio Taquari foi instalado em 2 de julho de 1872.

A barca movida a remo e a vara ligava as colônias de Estrela (Estrela) com o então Conventos de São Gabriel (possivelmente Lajeado). Além de passageiros, também transportava veículos para outra margem do rio, um avanço enorme no sistema logístico da época.

“A partir de então, cavalos, diligências, carroças, aranhas (veículos), bovinos, etc, puderam transpor com mais comodidade o voluntarioso rio, pelo menos num ponto”, reforçou Hessel.

Nas águas do Rio Forqueta, o primeiro passo iniciou as atividades em 21 de julho de 1890 entre Arroio do Meio e Lajeado. No livro “Arroio do Meio: 50 anos”, Lauro Nelson Fornari Thomé destaca que a embarcação funcionava em um ponto conhecido na época como “Berlim”.

Não há alusão no livro, mas provavelmente essa tenha sido a barca de Nicolau Käffer Sobrinho, que transportou pessoas e veículos na Barra do Forqueta até julho de 1939, quando foi inaugurada a histórica ponte de ferro.

Única sobrevivente

Balsa localizada entre Taquari e General Câmara é a última ainda ativa na região

Pesquisa de Airton Engster do Santos no Acervo Memorial de Estrela aponta que mais de 50 passos funcionaram na Bacia Taquari Antas. Até meados de 1960, existiam 15 balsas entre Bom Retiro do Sul e Muçum, complementa o empresário Luiz Roque Schwertner.

Esses pontos de travessia eram concedidos pelos municípios à iniciativa privada através de licitação pública. Cabia ao administrador o pagamento de um “pedágio anual” ao governo.

Atualmente, apenas uma balsa sobrevive na região e realiza travessias pelas águas entre Taquari e General Câmara. Detentor da concessão, Adroaldo da Silva Couto presta o serviço desde 1979. “Comecei com uma lancha para passageiros e depois fui evoluindo”, relembra o empresário.

A barca utilizada hoje é batizada de “Taquariense”. Tem capacidade para embarcar até 60 veículos por viagem. As 34 travessias diárias ocorrem das 5h30min até às 23h. O percurso de cerca de 500 metros pelo manancial é feito em menos de 10 minutos.

Principais usuários são caminhoneiros da empresa Duratex, conta Couto. Em épocas de corte de madeira, o fluxo pelo local aumenta consideravelmente. “No mais, o movimento diminuiu bastante. Menos pessoas estão usando a balsa”, percebe.

Para Couto, muito mais que um negócio, a embarcação se tornou serviço de utilidade pública ao manter ativa a ligação histórica entre os municípios. Se não houvesse travessia pelo rio, o deslocamento seria de mais de 40 quilômetros nas estradas.

Barqueiros como Reanto Scheid mantém o transporte de passageiros pelas águas

Barqueiro do Taquari

O passo do Costão (entre o então distrito de Arroio do Meio e Estrela) foi uma das principais ligações no início do século XX. A balsa que transportava até caminhões iniciou as atividades em 26 de junho de 1911, tendo como primeiro balseiro Manuel Pereira Maciel.

Embora o passo tenha sido desativada faz décadas, o transporte de pessoas seguiu com barqueiros no ponto onde hoje está instalado o Balneário Municipal de Arroio do Meio.

Nos últimos três anos quem realiza a travessia é Renato Scheid, 67. O serviço não é regulamentado, entretanto Scheid justifica ser necessário. “Quando morreu o último barqueiro, me pediram para continuar, pois conheço o rio. Sou eletricista aposentado e não precisaria do dinheiro, mas para ajudar eu aceitei”, comenta.

Scheid realiza sete travessias por dia de moradores de Colinas que vêm para Arroio do Meio trabalhar ou estudar. No início do mês, o movimento aumenta em função de compras ou serviços de banco.

Entre os passageiros fixos de Scheid está Ernani Gerhardt, 58. Desde outubro de 1984, o técnico de manutenção da Neugebauer usa o rio como meio de locomoção. “Para mim se tornou algo normal, é como andar de bicicleta ou ir de a pé ao trabalho”, relaciona.

A rapidez e economia são vantagens do transporte alternativo, percebe Gerhardt. Atravessando o rio, ele leva cerca de 30 minutos para chegar ao trabalho em um percurso de quatro quilômetros. Se tivesse que passar pela BR-386 e ERS-130, o trajeto seria de 25 quilômetros.

Outra vantagem, segundo Gerhardt, é a segurança. Embora não seja regulamentada, o passageiro destaca que nunca presenciou acidentes nas águas e acredita que o trânsito das rodovias se tornou mais perigoso que a travessia no rio.


Saudade da balsa

Desde novembro de 2015, a balsa de Santa Tereza parou de atravessar o rio até a Linha Alegre, em Muçum. A embarcação foi a última a encerrar as atividades no Vale do Taquari.

Reportagem do A Hora em maio de 2016 noticiava o fim das travessias após 15 anos. Antigo proprietário, Paulo Villa, 57, havia comprado a balsa em 2001. No auge, chegava a realizar 50 travessias por semana. Quando parou, eram menos de 20.

Conforme relatado à reportagem na época, Villa pretendia vender o meio de transporte por um preço “camarada”, desde que o comprador mantivesse os serviços. Não houve interessados. “Ofereci de graça para o meu irmão e meu vizinho. Ninguém quis. No fim, vendi para Santa Catarina”, relata.

Atualmente, as placas ainda indicam a localização da balsa que não existe mais. Muitos turistas param na casa da família Villa com intuito de passar para o outro lado do rio. “As pessoas sentem saudade. Ficou ruim para todo mundo sem a balsa”, lamenta.

A retomada da embarcação pautou as eleições e foi promessa de um dos candidatos em 2020. Villa acredita na possibilidade da balsa voltar a funcionar. Entretanto, ao invés de transportar pessoas, poderia ser atrativo turístico da pequena cidade de 1,7 mil habitantes.


Passo do Corvo

Mato toma conta da estrada utilizada no passado para se chegar até a balsa

Passo do Corvo era o nome da travessia na então Fazenda São Caetano (Arroio do Meio) ao distrito do Corvo (Colinas). Essa ligação foi criada no início do século XX, conforme o historiador Lothar Hessel.

Em um artigo ao jornal O Paladino, Hassel classificou o Passo do Corvo como uma das ligações mais movimentadas da região por unir “todo o vale do Arroio da Seca à fértil várzea de São Caetano”.

A barca transportava pedestres e outros mamíferos, veículos de tração animal e até caminhões de carga. Albino Schuh se tornou o barqueiro mais conhecido desse passo. Ele é descrito por Hassel como um “negrão corpulento e bem-humorado que falava tanto o português quanto o alemão”.

Após décadas sem a balsa, a antiga estrada até a beira do rio ficou tomada pela capoeira e é utilizada apenas por carroças. Única lembrança dos tempos de travessia é o nome da comunidade arroio-meense, batizada de Passo do Corvo.

Irônico que o próprio distrito de Corvo passou a se chamar Colinas após a emancipação. “Pode ser um nome esquisito, mas a gente tem orgulho dele,” afirmou o morador José Schmitz em entrevista ao A Hora em setembro de 2016.


Passo de Estrela

ACERVO MEMORIAL DE ESTRELA

Outra comunidade que ainda mantém no nome a herança das travessias é o Passo de Estrela. A balsa funcionou no local até setembro de 1962, ano em que foi inaugurada a ponte entre Estrela e Lajeado.

Conforme pesquisa de Airton Engster dos Santos, no Acervo Memorial de Estrela, a embarcação tinha capacidade para transportar 20 mil quilos. O limite foi testado em 1943, com um trator, um caminhão e diversas pessoas colocadas na balsa. Em função do passo, a comunidade teve no passado armazéns, trapiche e hotel.

Após o fim da barca, o sistema de transporte de passageiros ainda resistiu por anos. Reportagem do A Hora de julho de 2008 contava a história da família Petter, que gerenciava um barquinho no Passo de Estrela.

Na época, cerca de 40 pessoas eram transportadas por dia em 25 viagens. O barco tinha capacidade para levar até 11 passageiros (20 mil quilos). Com o passar dos anos, o serviço de transporte foi finalizado.


Balsa de Roca Sales funcionou até 1986, ano da construção da ponte

Balsa de Roca Sales

Antes da inauguração da enorme ponte entre Roca Sales e Encantado, em 1986, uma balsa com transporte de passageiros e veículos era responsável por ligar os dois municípios.

Foi na embarcação que o consultor de empresas, Fernando Röhsig, teve a primeira fonte de renda. Na época com cerca de 10 anos, comercializava picolés durante as travessias. “Vendia uns 40 de manhã e mais uns 40 a tarde”, conta.

Entre os fatos que marcaram Röhsig estavam as piadas de “tem picolé de gelo”. Também se recorda da inexistência de coletes aos passageiros. “Eu nem sabia nadar e estava na balsa”, relata. Graças ao trabalho de verão, Röhsig conseguiu comprar uma bicicleta.

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