UMA DÉCADA DEPOIS: enchente ainda viva na memória

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UMA DÉCADA DEPOIS: enchente ainda viva na memória

Centenas de casas alagadas, campings devastados e prejuízos milionários no campo. O dia 4 de janeiro de 2010 fica na história pela violência dos rios Forqueta e Fão. Passada exatamente uma década, saiba como estão as pessoas que viveram um dos maiores desastres naturais da história do Vale do Taquari

UMA DÉCADA DEPOIS: enchente ainda viva na memória
Vale do Taquari

Em menos de 24 horas, choveu cerca de 324 milímetros nas cabeceiras dos principais rios do Vale do Taquari. A força da água transportou centenas de toneladas de detritos que ficaram presos na ponte da Barra do Duduia, em Fontoura Xavier, criando uma espécie de “barragem natural” no Rio Fão.

Quando a estrutura ruiu, formou-se uma onda de água, árvores e detritos com até quatro metros de altura que se espalhou também pelo Rio Forqueta. Essa enxurrada passou pelos municípios de Marques de Souza e Travesseiro por volta das 18h do dia 4 de janeiro de 2010.

A explicação para um dos maiores desastres naturais do Vale do Taquari vem de um estudo coordenado pelo professor da Univates, Guilherme Garcia de Oliveira. Objetivo é compreender as causas das cheias e criar mecanismos para prevenção.

De fato, as comunidades foram pegas desprevenidas pela força da água. Centenas de casas ficaram alagadas e moradores tiveram de ser resgatados nos telhados. Os campings, símbolo de Marques de Souza, foram devastados e os prejuízos na agricultura ultrapassam os milhões de reais.

Dez anos depois da devastação, a maioria das testemunhas conseguiu recuperar os bens perdidos. Isso foi possível graças a solidariedade, como enfatiza o ex-prefeito de Marques de Souza, Rubem Kremer (in memoriam), no livro “Marques de Souza conta suas histórias sobre a enchente”, produzido pela escola Carlos Gomes.

“Nós só conseguimos superar o caos, a desesperança e as perdas materiais porque as ações de solidariedade foram um prodígio. O espírito humano falou alto”, citou em trecho do texto “Testemunha de uma grande tragédia”.

Além da enxurrada de 2010, Kremer cita como maiores tragédias do município as cheias de 1941, 1956 e 2007, além de um deslizamento de terras ocorrido em Linha Orlando e soterrado famílias, no ano de 1911.

 

“A gente nem dorme direito quando chove”

Dari Wink, 61, foi um dos 12 moradores de Marques de Souza que perdeu a casa na enxurrada. “Não sobrou nem um garfo. Até as fotos do casamento foram levadas com a água”, lamenta ao lado da esposa Mercilde, 63.

Por cerca de seis meses, o casal morou em uma residência cedida por parentes. Até cogitaram comprar um terreno em ponto mais alto da cidade, mas o preço fez os dois optarem pela reconstrução do lar no mesmo local: a Rua Alzira Lammel.

Conforme Wink, foi necessário cerca de R$ 12 mil para a obra. O custo baixo refletiu a solidariedade após a devastação. A maioria dos materiais de construção foram doados por entidades de toda a região.

Hoje, Wink até ampliou a casa que ficou grande para o casal depois da saída das filhas. Entre as lembranças do antigo imóvel, permaneceram as janelas, porta e vitro encontrados nos escombros e reaproveitados.

O casal também guarda certo trauma do acontecimento. “A gente nem dorme direito quando chove. Se for uma pancada mais forte, já preparamos nossas coisas para sair”, confessa Wink ao recordar o dia em que a força da água levou em 10 minutos o que a família construiu em uma vida.

 

 Dari Wink reconstruiu a casa destruída durante a enxurrada quase no mesmo local da Rua Alzira Lammel


Dari Wink reconstruiu a casa destruída durante a enxurrada quase no mesmo local da Rua Alzira Lammel

 

Mais de dois metros de água dentro de casa

Cerca de 325 residências foram atingidas pela cheia, conforme levantamento da administração municipal. Dessa, pelo menos 120 registraram perda total ou parcial do mobiliário. Esse foi o caso do morador Joci- mar Simonetti, 33.

Em 4 de janeiro de 2010, ele residia com os pais na Rua Arnaldo Sbaraini. Destaca que era normal a água chegar nas proximidades do pátio, entretanto naquele dia ela invadiu a propriedade. “Demorou menos de meia hora para inundar toda a casa”, conta. Os móveis da cozinha e dos quartos se perderam com a inundação.

Ainda é possível de ver a marca onde a água chegou em uma das vigas da residência de madeira. Para Simonetti, algo parecido jamais irá acontecer.

Jocimar Simonetti mostra altura que a água chegou em 2010. A vizinhança foi um dos pontos mais destruídos pela força da água

Jocimar Simonetti mostra altura que a água chegou em 2010. A vizinhança foi um dos pontos mais destruídos pela força da água

 

“Se falar para um estranho, ele  não     acredita”

Com nome profético, o bairro Cidade D’Água ficou submerso no dia 4 de janeiro de 2010. Morador Alexandre Wiland, 40, acompanhou o avanço do Rio Forqueta. “Em menos de 30 minutos, a água já estava por cima da BR-386. Se falar para um estranho, ele não acredita”, afirma.

Wiland estava trabalhando em uma oficina do bairro, quando notou movimentação estranha por volta das 17h50min. “A água já estava invadindo a rua”, relembra. A esposa de Wiland, Eliane Castro da Silva, estava em casa no momento. “Pensei em ir buscá-la, mas a polícia não deixava mais ninguém passar. Diziam que as pessoas seriam resgatadas”, conta.

Os minutos que se passaram são classificados como “irreais” por Wiland. Até os carros começaram a ser arrastados pela força da água, afirma.

Na última conversa telefônica com a esposa, teve a confirmação de que a água tinha invadido um metro da residência. “Depois não consegui mais ligação. Fiquei desesperado”, relata. Eliane só se salvou pois subiu na janela onde ficou por mais de três horas.

 

Cidade D'Água devastada um dia após a cheia. Para Wiland, acontecimento foi “irreal”

Cidade D’Água devastada um dia após a cheia. Para Wiland, acontecimento foi “irreal”

 

Novo cemitério em Tamanduá

As ossadas e caixões revirados ficarão guardados para sempre na memória de Ireno Dahmer, 67. O morador de Lajeado possui uma chácara ao lado do cemitério da comunidade católica São Roque de Tamanduá. 90% dos túmulos foram destruídos durante a enxurrada.

Ireno foi uma das primeiras pessoas a passar pelo local no dia seguinte. Testemunha da destruição, ele se recorda de caminhar em meio aos corpos e ossos espalhados pela estrada. “Foi uma das cenas mais horríveis que já vi”, classifica.

Hoje, o local onde eram enterrados os católicos de Tamanduá está abandonado. Apenas restos das lápides perdidos em meio ao matagal alto indicam que lá era um espaço para sepultamentos.

O novo cemitério de São Roque foi construído em um dos pontos mais altos de Tamanduá, a cerca de um quilômetro da estrutura antiga. Ao invés de enterrados, os jazigos são no estilo de gavetas.

 

 

Após destruição de túmulos em 2010, novo cemitério foi construído em um dos pontos mais altos de Tamanduá

Após destruição de túmulos em 2010, novo cemitério foi construído em um dos pontos mais altos de Tamanduá

 

A volta por cima de Kunz

R$ 3 milhões. Esse foi o prejuízo de Vernei Kunz, 55, no dia 4 de janeiro de 2010. Dos 11 pavilhões no complexo de criação de suínos, nove foram destruídos pela força do Rio Forqueta. Cerca de 3 mil porcos morreram e carcaças apareceram até presas nas árvores depois que as águas baixaram, relembra Kunz.

Para a reportagem do A Hora na época, o suinocultor afirmou que pretendia se desfazer da propriedade localizada Picada Felipe Essig, Travesseiro. A desolação passou e Kunz resolveu apostar novamente na atividade. “Tem que ter força de vontade para começar tudo de novo”, afirma.

Conforme ele, demorou mais de um ano para a remodelação da unidade produtora e reinício da criação de suínos. O trabalho foi feito por uma equipe composta por 20 pessoas. “Não ganhei nenhum real do seguro porque eles não cobrem enxurradas. Por sorte tinha recursos guardados”, relata.

Dez anos depois, o produtor de suínos reconstruiu o complexo e retomou a criação de 3,6 mil suínos. Ele é enfático sobre a possibilidade de uma nova enxurrada. “Não tem como saber se irá acontecer. Mas qualquer coisa vamos nos recuperar de novo”, garante.

Kunz teve prejuízo de R$ 3 milhões na enxurrada de 2010. Uma década depois, recuperou nove pavilhões perdidos no complexo de criação de suínos

Kunz teve prejuízo de R$ 3 milhões na enxurrada de 2010. Uma década depois, recuperou nove pavilhões perdidos no complexo de criação de suínos

 

Um baque para a Capital dos Campings 

O local onde muitas pessoas passaram o veraneio à beira do Rio Forqueta hoje serve para a criação de gados. Considerado um dos principais balneários da região, o Camping do Palm e Hepp fechou faz cerca de seis anos.

Embora o proprietário Ricardo Hepp, 57, afirme que o motivo principal para o encerramento das atividades foi a falta de mão de obra para administrar o estabelecimento familiar, a enxurrada de 2010 também pesou na decisão. “Perdemos cerca de 40 casas naquele dia, mas estava na hora de parar. A decisão da família foi unânime”, relata.

O Palm Hepp iniciou as atividades na década de 80 sob a administração do pai de Ricardo, Odécio Hepp (in memoriam). No período de 25 anos, o investimento chegou a R$ 1 milhão, tudo perdido durante a enxurrada.

Após o dia 4 de janeiro de 2010, o balneário funcionou apenas com o bar para interessados em passar o dia. Nem acampamentos mais foram permitidos, relata Ricardo.

Atualmente, a antiga caixa d’água com o nome do camping, vista até da BR-386, é o único resquício de que um dia havia um espaço de banho no local. Também há uma placa no portão informando os desa- visados do fechamento da área de lazer. “Por vários anos, as pessoas continuaram vindo. O camping era muito tradicional”, conclui Ricardo.

Quando ocorreu a enxurrada, Marques de Souza tinha sete campings. Hoje apenas quatro seguem em atividade.

 

Placa indica aos desavisados o fechamento do camping Palm e Hepp, em Marques de Souza

Placa indica aos desavisados o fechamento do camping Palm e Hepp, em Marques de Souza

Camping do Stakão totalmente recuperado

Localizado no centro de Marques de Souza, o Camping do Stakão teve barracas e casas destruídas. Prejuízo na época foi estimado em R$ 100 mil pelo então proprietário, Dorival Stake (in memoriam).

“É desolador, aqui fica uma parte da minha vida”, lamentou Stake para a reportagem do A Hora um dia após a enchente. Imagens da época mostram casas destroçadas, móveis espalhados pela área verde do camping e até carros amontoados.

Meses após o desastre natural, as casas e barracas começaram a ser reconstruídas pelos proprietários que pagam aluguel pelo espaço. O balneário é fechado apenas para os donos de barraca.

Conforme a atual administradora, Giani Biasebetti, o camping conta com 85 barracas e 20 casas, a mesma quantidade que existia em 2010. Os responsáveis pela área de lazer também trabalharam para reflorestar a beira do rio.

 

Mudança na vegetação e estrutura do Camping do Stakão, uma década depois da cheia do Rio Forqueta

Mudança na vegetação e estrutura do Camping do Stakão, uma década depois da cheia do Rio Forqueta

 

“Voltamos para a época das barracas”

Germano Hepp, 73, imaginava tirar a aposentadoria do camping que leva o seu nome, em Marques de Souza. Em cerca de três décadas, o morador de Linha Perau edificou mais de 50 casas às margens do Forqueta.

Depois da enxurrada de janeiro de 2010, restaram apenas 15. Até parte do bar foi destruído. “Anoiteceu com o camping inundado. A gente só escutava o barulho da água arrastando as construções”, relembra um dos filhos de Germano, Marco Hepp, 51. Prejuízo da família foi avaliado em R$ 800 mil.

O cenário um dia após a enchente é classificado por Marco como “um campo de guerra”, com árvores e entulhos espalhados por todo local. “Por 30 minutos nos lamentamos em meio às casas destruídas. Depois começamos a reconstrução”, conta.

Por questões ambientais, a família não pode reconstruir as casas de alvenaria. Elas foram substituídas por moradias com lonas e pelo espaço destinado a acampamentos ou pessoas interessadas em passar o dia no balneário. “Foi como se estivéssemos nos primórdios do camping. Voltamos para a época das barracas”, relembra.

Com a idade avançada de Germano, Marco e o irmão Erasmo administram o empreendimento. Para Marco, é possível afirmar que dez anos depois, o camping conseguiu superar a devastação que sofreu em 2010.

Casas destruídas foram substituídas por moradias de lona em função da legislação

Casas destruídas foram substituídas por moradias de lona em função da legislação

 

 

Área de lazer em reconstrução

Bar, galpão, duas canchas de boxa cobertas, banheiros, duas casas de material e duas de lona. Essa era a estrutura do Camping do Írio, em Travesseiro. Tudo foi levado pela força da água do dia 4 de janeiro de 2010. “Não sobrou nem a sombra. Até as árvores foram arrancadas”, lamenta Herton Scherer, 40.

A família havia feito até empréstimo para investir na estruturação do balneário e ficou endividada após o desastre natural. O recomeço foi com um singelo bar feito paenas de madeira e lona. “Apenas o pessoal mais próximo voltou a frequentar. Com o tempo conseguimos investir mais recursos”, relata.

Atualmente, Herton estima que 60% da estrutura de 2010 foi recuperada. Um novo bar e galpão foram construídos com alvenaria e cerca de 20 barracas de lona edificadas nas proximidades do rio. A sombra também voltou graças as árvores replantadas pela família.

Herton destaca que o balneário que re- cebe cerca de 300 visitantes por semana no veraneio está em reconstrução. “Toda temporada investimentos em algo”. Expectativa para os próximos anos é tornar a estrutura ainda maior do que em 2010.

Camping do Írio recebe investimentos anuais e se recupera com o passar do tempo

Camping do Írio recebe investimentos anuais e se recupera com o passar do tempo

 

REPORTAGEM: FÁBIO ALEX KUHN

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