Ah, o engenheiro Tarcísio. Gente muito boa. Proseador. Bigodudo. Churrasqueiro de primeira. Amado da Débora, a arquiteta loira. Moram juntos no sobradinho que compraram no Universitário.
360x no Minha Casa, Minha Vida. Vieram de Bagé pra Lajeado.
Casalzinho de consultores de vendas. Chegaram faz 6 anos pra tentar a vida no Vale. Ouviram falar do tal boom imobiliário.
Filho deles é o Júnior. O Juninho. Judoquinha de 16 anos. Levemente gordinho e ligeiramente fanho. A brincadeira favorita era caçar passarinho com a pistola .40 de brinquedo que ganhara do papai Tarcísio.
Além da espoleta esfumacenta, a arminha de plástico lançava duas bolinhas de pressão por tiro. Coisa de outro mundo. Débora sentia orgulho da mira do filho.
Certeiro como Tarcísio o era.
“Juninho é um menino sério, comprometido e focado como o pai”, pensava pra si Debóra muito orgulhosa, enquanto o filho caçava passarinhos no terreno baldio do outro lado da rua.
Pelo bem da família, estavam acertados: todos votariam no Bolsonaro.
Prova disso estava no adesivo colado na caçamba da caminhote 4×4 que usavam no dia a dia e na bandeira pendurada na janela do quarto de Juninho, no segundo andar do sobrado.
“#EUVOTO. Bolsonaro – É melhor Jair se acostumando. Honestidade não é virtude. É obrigação.”
O vizinho, que morava no sobrado da esquina, nada mais era do que Luiz Carlos. Funcionário público. Muy bona gente. O primeiro a compartilhar a cuca feita pelas mãos da esposa Rejane com a vizinhança. E como fazia sucesso. Deleite. Assunto mais falado no WhatsApp da rua.
Receita da sogrinha Osvaldina – com pitadas de pimenta e canela.
Se dividir o pão já é bonito. Dividir a cuca é educativo.
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Pra Luiz Carlos, o ápice do intelectualismo era ser petista. Ou ao menos o mínimo que se esperava de um homem. O resto era bobagem ou falta de informação. Isso pra dizer o mínimo.
Pra estampar isso, mandou fazer um banner de dois por cinco do Lula é Haddad e Haddad é Lula na entrada da garagem de casa.
Para quem via de fora, do outro lado da rua, com a grade do sobrado contra o banner, a imagem de Lula se tornava um tanto quanto poética atrás das grades.
Mas foi nestas eleições de 2018 que veio o ranço e as brigas desnecessárias.
– Olha a quantidade de roupas vermelhas no varal do Luiz Marcos – dizia Débora.
– Estaciono onde e como eu quiser. Sou pagador de impostos – esbravejava Tarcísio quando percebia que Rejane o olhava de revesgueio depois de estacionar quase um metro depois do meio-fio em frente à calçada.
– Cadê os direitos humanos? Teu filho é um torturador como teu candidato! – esbraveja Luiz Marcos a Tarcísio enquanto Juninho caçava joão-de-barro.
Até quando rolava um silêncio entre uma vizinhança e outra era motivo de ranço. Ambos pensavam.
– Claro, não tem nada a dizer. Com aquele candidato não devem ter opinião mesmo.
Mas nada de conflito direto. Ninguém daria pano pra manga pro outro dizer:
– Ditador. Tu é agressivo como teu candidato. Tu é safado como teu presidente. Tu é fascista. Só tu tem razão.
O ranço tomava conta. Um respirava de esquerda. O outro expirava de direita.
A compostura e o legado da classe média seria decidido na decência do voto.
Até parece.
No aconchego do ranço
São Cristóvão

Dizem que sapato pendurado em fio de alta tensão é local de ponto de tráfico de droga. Não sei, viu. Acho que faltaria sapato na cidade